PERGUNTE E RESPONDEREMOS 003 – março 1958
A Papisa
Joana
HISTÓRIA
DO CRISTIANISMO
MIRO
SANTOS (Rio de Janeiro): “Houve mesmo na série dos Papas uma Papisa?”
1)
Duas são as versões da história, ou melhor (como se depreenderá abaixo), da
lenda da Papisa Joana.
A mais divulgada refere que uma jovem de Mogúncia (Alemanha), vestida de homem,
foi por seu amante levada a Atenas, onde granjeou grande erudição :
transferiu-se para Roma, aí exerceu o magistério, chegando finalmente a se
tornar Papa com o nome de João Ânglico, logo depois de Leão IV (falecido em
855). Aconteceu, porém, que um dia, caminhando de São Pedro para a Basílica do
Latrão, deu à luz e morreu... Teria governado a Igreja durante dois anos e
meio.
Eis outra forma da mesma lenda, também consignada nos manuscritos medievais: uma
mulher, cujo nome não é indicado, ter-se-ia apresentado em público como varão,
tornando-se sucessivamente escrivão da Cúria Romana, Cardeal e Papa. Um dia,
porém, quando andava a cavalo, teria dado à luz, morrendo então apedrejada pelo
povo. A data deste «pontificado» é diversamente indicada pelos manuscritos:
depois de Urbano II (falecido em 1099), dizem uns: depois de Sérgio III
(falecido em 914), referem outros.
Nos séculos XIV e XV a história gozava de crédito mais ou menos geral: no domo
de Sena, por exemplo, em cerca de 1400, foram erguidos os bustos dos Papas,
entre os quais o da Papisa Joana. No Concilio de Constança (1414-1418), o herege
João Hus citou a Papisa Joana sem sofrer contestação alguma. Humanistas e
adversários da Igreja muito exploraram a narrativa.
2) Apesar de ligeiras dúvidas sobre a veracidade dessa história proferidas
desde o século XIII, somente a partir de meados do século XVI se reconheceu o
caráter lendário da mesma, devendo-se citar, entre os que a desmascararam e denunciaram,
o autor protestante D. Blondel (“Familier
esclaircissement de la question, si une femme a esté assise au siège papal de
Rome entre Léon IV et Benoit III”. Amsterdam 1647) e o erudito Ignaz
von Dellinger («Die Papstfabeln des
Mittelalters». Stuttgart 1890), o qual não era muito amigo do
Papado, pois se separou de Roma por não querer reconhecer a infalibilidade
pontifícia definida em 1870.
As razões por que não se admite mais a «história» da Papisa Joana são:
a) as incertezas e
vacilações das diversas versões, principalmente ao assinalarem a data do pretenso
episódio;
b) o fato de que
ate meados do século XIII a extraordinária e interessante história da Papisa
Joana (que teria vivido no período dos séculos IX, X, XI) é totalmente ignorada
pelos cronistas medievais. Os primeiros que a referem, são o dominicano João de
Mailly, na sua «Chronica universalis Mettensis» redigida por volta de 1250, e
seu confrade Martinho Polono (+1279), autor de «Chronicon pontificum T
imperatorum». Averiguou-se que os relatos da lenda encontrados em documentos
mais antigos do que estes foram interpolados depois do século XIII;
c) a série dos
Papas, como hoje é conhecida, não admite interrupção entre Leão IV e Bento III
(séc. IX), como tão pouco a admite entre Pontífices dos séculos X/XI.
3. Como então se
explica o surto e a propagação da lenda de Joana?
Julga-se que a historieta é uma alusão às tristes condições em que se achava o
Papado no século X: vários pontífices caíram então sob a influência de três
mulheres prepotentes em Roma — Teodora, esposa de Teofilacto, e suas filhas
Teodora e Marócia. Na mesma época houve sete Papas com o nome de João: João IX
(898-900), João X (914-929), João XI (931- 935), João XII (955-964), João XIII
(965-972), João XIV (983-984), João XV (985-996), sendo que a respeito de João
XI escreveu um cronista seu contemporâneo: «Foi subjugado em Roma pela
prepotência de uma mulher» (Bento de S. André de Sorate, Chronicon, em
«Monumenta Germaniae Histórica» III 714). Tal fase difícil da história do
Papado terá sido ilustrada de maneira muito eloquente pela narrativa fictícia
de que uma mulher chegou a subir ao trono pontifício...
A lenda foi reforçada pela existência de uma estátua de mulher com uma criança
nas mãos, que na Idade Média se achava junto à igreja de São Clemente em Roma.
Essa estátua seria, conforme os cronistas medievais, a da Papisa Joana; estaria
acompanhada de uma inscrição, da qual quatro variantes nos são referidas pelos
historiadores da Idade Média:
«Parce pater patrum papissae prodito partum»,
«Parce pater patrum
papissae prodere partum»,
«Papa pater patrum
papissae pandito partum»,
«Papa pater patrum
peperit papissa papelluim.
Ora os arqueólogos
admitem seja a estátua mencionada a que se encontra hoje no Museu Chiaramonti de
Roma; seria uma estátua de origem pagã a representar talvez Juno que amamenta
Hércules.
As diversas formas da inscrição acima parecem não ser mais do que tentativas
medievais para reconstituir uma frase fragmentária assim encontrada:
P. . , PATER PATRUM
P P P.
Sabe-se que Pater
Patrum era título característico dos sacerdotes de Mitra (justamente debaixo da
igreja de São Clemente foi encontrado grandioso santuário de Mitra). Mais
ainda: sabe-se que a abreviação P P P é frequente na epigrafia latina,
significando muitas vezes própria pecunia
posuit, ou seja, construiu à custa
própria. Donde se concluí com verossimilhança que a «estátua da
Papisa Joana» não é senão uma efígie em uso no culto de Mitra, custeada e
colocada no santuário respectivo pelo sacerdote pagão P... (talvez Papirus) em
inícios da era cristã. A inscrição abreviada e mutilada pela injúria dos
tempos, prestando-se a interpretações diversas, teria dado lugar às conjeturas
dos poetas medievais que corroboravam a lenda da Papisa Joana.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)