Vida de Silêncio
Reflexão do
Padre José Inácio do Vale sobre o silêncio conforme a Palavra de Deus e
os ensinamentos dos santos, incluindo Santa Teresa de Jesus, São João da
Cruz e Santa Teresinha do Menino Jesus.
Dizem os ditados populares:
“Quem fala muito dá bom dia a cavalo”.
“Peixe morre pela boca”.
“Caveira, quem te matou? — Foi a língua”.
“O falador não sabe escutar”.
“Uma língua distinta não vai com o estúpido” (Pr 17,7).
“Mesmo o tolo, quando se cala, passa por sábio, por inteligente, aquele que
fecha os lábios” (Pr 17,28).
“A boca do insensato é a sua ruína, e seus lábios, uma armadilha para sua vida”
(Pr 18,7).
Como é terrível a pessoa não aprender a se calar. E é catastrófico quem não
sabe escutar. Para saber falar e escutar a pessoa precisa rigorosamente da
pedagogia abissal do clima silencioso. O oceano do silêncio é arte do sábio.
“Cale-se o tumulto da carne, calem-se as imagens da terra, das águas e dos
ares, calem-se os próprios céus que ouçamos o Verbo não pela linguagem da carne
nem pela voz de uma anjo… mas Aquele mesmo que amamos através dessas
realidades, ouçamos-Lo sem essas realidades”, dizia santo Agostinho de Hipona
(354-300).
O magistral silêncio nos ensina escutar a poderosa Palavra de Deus. A
disciplina do silêncio nos ensina preparar o coração para escutar a voz do
Senhor Deus e colocá-la em prática. Sem o silêncio, solidão, não há oração,
meditação, mística e contemplação. Não existe espiritualidade sem o silêncio e
nem silêncio sem espiritualidade. Sem os dois a vida é um inferno e o barulho
da guerra é eterno.
A doutrina do silêncio nos livra da ilusão, fantasia do monólogo, do falastrão
e do ridículo. Protege-nos da cultura da palavra vazia, do espetáculo grotesco
do reality show. Essa santa doutrina nos guarda de vivermos expostos à poluição
sonora do mundo interior e exterior. Sem o sagrado silêncio o ser humano se
expõe à insensatez da conversa sem vitalidade. A banalização da dignidade
humana, relacionamentos superficiais, e o culto à idolatria é o resultado da
exclusão do divino silêncio em nossa era pós-moderna. O coração dessa gente não
quer escutar a voz do bom Deus e sim, o barulho enlouquecedor dos tambores em
louvor aos seus ídolos. Sem escutar a belíssima voz de Deus no silêncio, não
temos vida e nenhum sentido transcendental.
No século XI Guiges II o monge cartuxo, escreve:
“Quem não observa o silêncio não pode ouvir. Aquele que fala… Que a terra de
minha alma se cale na tua presença, Senhor, a fim de que eu ouça o que diz em
mim o Senhor meu Deus, pois as palavras que Vós murmurais não podem ser ouvidas
se não num profundo silêncio”.
O silêncio na história
Disse o Papa Paulo VI: “Ó silêncio de Nazaré, ensina-nos o recolhimento,
a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras
dos verdadeiros mestres”. “Ensina-nos a necessidade e o valor dos que só Deus
vê no segredo” (Das alocuções do Papa Paulo VI – alocução pronunciada em Nazaré
a 05/11/1964).
Realmente, o silêncio tem muito a nos ensinar. Tenhamos consciência diante de
um estudo do mais alto nível. Humildade é essencial como porta de entrada. A
sua jornada é infinita no amor e para o Amor Eterno.
O salmista fala do silêncio de Deus: “Ó Deus, não fiques calado, não fiques
mudo e inerte, ó Deus” (Sl 83,2).
O silêncio da criação: “Ora, a terra estava vazia e vagas, as trevas cobriam o
abismo, é um vento de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2).
O silêncio da Palavra e das visões de Deus: “Raramente o Senhor falava e as
visões não eram frequentes (1Sm 3,1.2; 2 Cr 15, 3.4).
O silêncio de Deus diante da maldade dos ímpios: “Teus olhos são puro demais
para ver o mal, tu não podes contemplar a opressão. Por que contemplar os
traidores, silencias quando um ímpio devora alguém mais justo do que ele?” (Hab
1,13).
A ausência dos verdadeiros profetas e a fartura dos falsos profetas
barulhentos, sempre vão surgir em oposição ao silêncio divino. Vejamos um pouco
desse contexto: “Amós respondeu e disse a Amasias: Não sou profeta, nem filho
de profetas; eu sou um vaqueiro e um cultivador de sicômoro” (Am 7,14). “Seus
profetas vaticinam por dinheiro” (Mq 3,11). “Seus profetas são
aventureiros, homens de traição” (Sl 3,4).
Deus permitiu o silêncio profético de Malaquias a João Batista. “A Lei e os
Profetas duraram até João” (Lc 16,16).
O silêncio de Moisés no monte (Ex 24,18).
O silêncio de Elias do deserto a caverna do monte Horeb (1 Rs 19,4-8).
O silêncio de João batista. “O menino crescia e se fortalecia em Espírito. E
habitava nos desertos, até o dia em que se manifestou à Israel” (Lc 1,80). “A
Palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto” (Lc 3,1-3).
O silêncio da Virgem Maria. “Considerava cuidadosamente todos esses
acontecimentos e os meditava em seu coração”. “Conservava a lembrança de todos
esses fatos em seu coração” (Lc 2,19.51).
O silêncio do esposo castíssimo de Maria: “José, seu esposo, sendo justo e não
querendo denunciá-la publicamente, resolveu repudia-la, em segredo” (Mt 1,19).
São José é o agente secreto de Deus para salvar a Sagrada Família. A primazia
do silêncio reina na vida desse santo Patriarca. “São José foi o homem mais
puro em sua virgindade, mais profundo em sua humildade, mais ardente na
caridade, mais elevado na contemplação”, afirma São Bernardino de Sena (1380 –
1444).
O silêncio da profetisa Ana. “Não deixava o templo, servindo a Deus dia e noite
com jejuns e orações” (Lc 2, 36.37).
O silêncio de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dos 12 aos 30 anos (Lc 2,42; 3,23). Os
40 dias no deserto (Mt 4,1-11). Diante de Pôncio Pilatos (Mt 27,14). Este silêncio
foi para se cumprir à profecia do Servo Sofredor em Isaías 53,7: “Como uma
ovelha que permanece muda na presença dos seus tosquiadores ele não abriu a
boca”. Os 40 dias antes da ascensão ao céu (At 1,1-11). Cristo viveu a rica
virtude do silêncio e da solidão (Mt 14,23; Mc 1,35). Escreve o renomado
teólogo beneditino Dom Estêvão Bettencourt: “Com seu silêncio Jesus assumiu
mais plenamente o seu plano de se entregar por amor à humanidade” (2).
O silêncio de São Paulo Apóstolo. “At 9,9). A solidão do deserto (Gl 1,16 – 21;
2,1).
O silêncio de Epafras, fiel ministro de Cristo. Santo homem da oração
intercessória (Cl 1,7.8; 4,12.13).
“Verifica-se que não faltam no Novo Testamento recomendações do silêncio como
valor construtivo”, diz Dom Estêvão Bettencourt.
Na História da Igreja
Os santos fazem parte da grande riqueza da Santa Madre Igreja. Seus exemplos
são dignos de serem seguidos por toda nossa vida. O Deus da graça deu para sua
Igreja homens santos e mulheres santas para mostrar e viver conosco a sua
presença. A graça é dom de Deus. Por meio dela e da fé, somos salvos e
santificados. Na Igreja tudo acontece por graça do bom Deus.
Lactâncio (260 – 325), apologista cristão declarava com categoria: “Somente a
Igreja sustenta tudo”.
Santo Hipólito de Roma (160 – 235), grande sacerdote e muito culto disse: “A
Igreja é o local onde floresce o Espírito”.
Santo Irineu de Lião (140? – 203), é o mais famosos dos escritores
cristãos de fins do segundo século pertencente ao grupo dos polemistas, acabou
morrendo mártir. Escreve: “Onde está a Igreja, aí está o Espírito Santo de
Deus, aí estão a Igreja e o tesouro de todas as graças”.
Vamos aprender com os grandes mestres do silêncio. Esses homens e mulheres
imbuídos pela graça do silêncio deixaram para nós ensinamentos que é difícil de
explicitar. Vamos apenas mencioná-los alguns e algumas…
Santo Antão (251 -356). Pai dos monges. Estrela do deserto do Egito. Morreu com
105 anos de idade. Disse: “O monge é como o peixe: este morre, saindo da água;
aquele morre, deixando a solidão”.
São Basílio Magno (330 – 379). Pai do monasticismo oriental, bispo, teólogo e
Doutor da Igreja. São Basílio é o primeiro Padre da Igreja a fazer um tratado
sobre o Espírito Santo. Também é o Teólogo da Santíssima Trindade. Está escrito
em sua Regra: “O silêncio traz consigo o esquecimento da vida anterior, em
consequência da interrupção, e proporciona lazer para o aprendizado do bem”
(3).
Santo Agostinho de Hipona (354 430). Grande Teólogo, filósofo, moralista,
apologista, bispo, fundador, escritor e Doutor da Igreja. É denominado de
“Doutor da Graça”, pois como ninguém soube compreender o poder da maravilhosa
graça de Deus. Diz: “Orando a Deus, com palavras ou em silêncio, clamemos a Ele
com o coração”.
São Bento de Núrsia (480 – 547). Pai dos monges do Ocidente. Poucas figuras
históricas terão causado tanta influência sobre os destinos das pessoas como
São Bento. Este será sempre lembrado pela sua famosa Regra e pela fundação do
mosteiro de Monte Cassino. São Bento será sempre atual pela sua equanimidade.
Que é um mosteiro beneditino? Uma escola de serviço do Senhor (Prol. 45). Quais
são as principais disciplinas desta escola? A oração, o trabalho e a ascese.
Sobre a importância do silêncio a Regra é clara: “Façamos o que diz o profeta:
“Eu disse, guardarei os meus caminhos, a fim de não pecar pela língua; pus uma
guarda em minha boca, fiquei mudo, humilde e permaneci calado, mesmo quanto ás
coisas boas” (6,1).
São Bruno († 1101). Fundador da Ordem Cartusiana. Onde buscar a Deus? Como? A resposta
de São Bruno ao fundar o mosteiro Cartuxo foi: “No silêncio total”. Na cartuxa
a vida é comum na alimentação, habitação, sob uma mesma regra; mas o silêncio
total faz da vida comum um retiro individual. Na graça da radicalidade do
silêncio e da solidão, os monges cartuxos se entregam a Deus com ardente amor e
testemunham ao mundo materialista e hedonista a transcendência do Criador, e em
suas celas dedicam as suas vidas em oração pela humanidade. “Na Cartuxa se
adquire aquele olhar límpido cuja visão clara fere de amores o Esposo, e cuja
pureza permite ver a Deus. Aqui se vive num descanso sem ociosidade e se
repousa numa atividade tranquila” (São Bruno, Carta a Raul).
Tomás de Kempis (1380 – 1471). Prior agostiniano e autor da obra monumental:
“Imitação de Cristo”. Grande místico na direção espiritual. Nos ensina: “É mais
fácil calar-se por completo do que falar sem se exceder… Ninguém fala com
segurança a não ser aquele que espontaneamente se cala”.
Santa Teresa de Ávila (1515 -1582). Grande mística, reformadora da Ordem
Carmelita e a primeira mulher a ser declarada “Doutora da Igreja”. “Sem a
oração, a reflexão, a meditação, quem nos estimulará a amar o Senhor”?
“Procurai viver sempre no silêncio e na esperança”, exorta-nos Santa Teresa.
São João da Cruz (1542 – 1591). Grande mestre da mística cristã. Junto com
Santa Teresa, reformador do Carmelo masculino. Ambos deram origem aos
carmelitas descalços. É Doutor da Igreja. O mestre ensina: “Adquire-se a
sabedoria através do amor, do silêncio e da mortificação; grande sabedoria é
saber calar e não se inserir em ditos ou fatos e na vida alheia”.
Santa Teresinha do Menino Jesus (1873 – 1897). Fez-se freira carmelita aos 16
anos, no Carmelo de Lisieux, França. A sua autobiografia: “História de uma Alma”,
tornou-se o manual de espiritualidade para o mundo inteiro. Conhecida como
“Infância Espiritual”. Santa Teresinha é padroeira das missões e Doutora da
Igreja. Em Santa Teresinha contemplamos o silêncio eloquente em prol da
salvação das almas. O seu lema era: “Amar Jesus e fazer com que Ele seja amado
por todos”. Disse: “Quero passar o meu céu fazendo o bem na terra”. Santa
Teresinha é uma das santas mais conhecida, mais amada, mais seguida e mais… O
Papa Pio X proclamou: “a maior santa dos tempos modernos”. Escreve à sua irmã
Celina em peregrinação a Paray: “Você sabe: eu não vejo o Sagrado Coração como
todo mundo. Penso que o coração de meu Esposo é só meu como o meu é só dele, e
lhe falo então na solidão desse delicioso coração a coração, esperando contemplá-lo
um dia face a face”.
São Pio de Pietrelcina (1887-1968). O santo dos estigmas de Cristo nos tempos
modernos. O Papa Paulo VI disse no dia 20 de fevereiro de 1971, dirigindo-se
aos Superiores da Ordem dos Capuchinhos: “Era um homem de oração e sofrimento”.
Padre Pio era um sacerdote tornado pela mística abissal. Vida profunda de
oração, de silêncio e de solidão. Os sofrimentos levaram padre Pio ao claustro
da intimidade com Deus. Esse filho espiritual de São Francisco tem muito que
nos ensinar por meios de sinais, prodígios e maravilhas divinas. Ensina o
santo: “Na solidão o Senhor nos fala”. “A meditação não é um meio para chegar a
Deus, mas um fim. A finalidade da meditação é o amor a Deus e ao próximo”.
Em busca do silêncio
Toda pessoa deve buscar uma vida de silêncio, solidão, oração, jejum e
meditação. Ninguém pode ter medo dessa experiência sublime, avassaladora que
infundi a alma. A nossa vida deve ter a inflação dessa magnífica experiência.
Larguemos tudo que atrapalha, o medo, o pecado, a ignorância, a falta de tempo,
o condicionamento do mundo capitalista, da superficialidade, da mediocridade e
do vazio.
O sistema é um terrível monstro que trabalha sem fim para não deixar tempo para
Deus. Daí: infelicidade, doenças, drogas, depressão e morte. Temos que vencer
todos os obstáculos, não aceitar a ideologia do sistema e seguir o santo
conselho de Cristo: “Lançar a rede em águas mais profundas”. “Tamanha foi à
quantidade de peixes que as redes se rompiam” (Cf Lc 5,4-6). Quantidade de dons
espirituais, sinais miraculosos, tem o Divino Espírito Santo para nos dar. Para
isso, temos que romper com o nosso sistema mundano de viver.
O preclaro mestre da espiritualidade cristã, o canadense Dr. James M. Houston,
nos exorta de modo magistral: “Temos a tendência de viver do lado externo da
vida. Tudo gira em torno de desempenho, de como podemos impressionar outras
pessoas. Como cristãos, estamos mais preocupados com a promoção de nossa fé do
que a sua prática privada. A atividade é mais significativa que a
espiritualidade. Temos medo de ouvir Deus porque estamos preocupados com o que
as outras pessoas vão pensar. Faz-nos ter medo do isolamento, de encararmos a
Deus sozinhos ou na verdade de encararmos nossos sentimentos interiores de
culpa e de auto-traição”.
Realmente, diante dessa exortação, temos que mudar a nossa “vidinha”
rasa, fria, tímida e pessimista. Temos que sair da piscina velada para
mergulhar em oceanos de grandes revelações. É urgente a mudança da veleidade
para a dimensão venusta do espírito. Quem não muda, morre espiritualmente. Esta
pode ser evitada com a vida do silêncio, da oração e da comunhão plena
com o bom Deus.
Conclusão
Temos consciência do recolhimento que pede a nossa alma. O silêncio é seu
espaço real. Aqui ela tramita no amor transcendental do seu Senhor.
Há uma forte necessidade de um tempo ou de um tempo inteiro para o encontro
conosco e com Deus na solidão.
Na verdade, esse tempo é um milagre. O encontro é o renascer, do novo ser, da
esperança.
Dentro desse contexto, a pessoa encontra resposta para sua verdadeira vocação.
O Espírito Santo usa dessa espiritualidade para guiar a pessoa em toda verdade.
Nessa caminhada o Divino Consolador vai iluminando a alma para concreta
felicidade. A confiança nessa doutrina é a virtude de pessoas realizadas pela
fé na solidez do Evangelho da Vida.
A vida de silêncio é a vida com Cristo. Cristo soube escutar o Pai e realizou o
seu projeto. Agora, vamos escutar o Filho e realizar a nossa missão ativa ou
contemplativa. E, em tudo o sagrado silêncio.
Referências
bibliográficas
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Autor: Padre José Inácio do Vale