PERGUNTE E RESPONDEREMOS 500 – fevereiro 2004
Utilizar
as Escrituras:
COMO
CRISTIANIZAR OS SALMOS?
Em
síntese: Os salmos, redigidos por um orante singular
ou por um grupo de orantes judeus, foram repetidos por todo o povo israelita
como oração da comunidade, que procurava atualizar o texto sagrado. Na
plenitude dos tempos Jesus não só rezou os salmos, mas viu neles uma profecia
de sua obra messiânica; assim os salmos, longe de perder seu valor, foram sendo
mais e mais valorizados. A Igreja, como Corpo de Cristo, continua a rezar os
salmos, pois nela se desenvolve a obra da Redenção.
Rezar
os salmos é enfaticamente recomendado. Talvez muitos os recitem com respeito,
mas sem conseguir fazer deles a expressão de sua oração, ora porque os salmos
levam a recuar a uma época muito remota em que eram conhecidos Gebal, Amon,
Amalec, o rei de Basã, estranhos a nós, ora porque a linguagem dos salmos é
violenta, imprecatória, cheia de imagens insólitas ao cristão ocidental. Pergunta-se:
como será possível a um cristão orar com tais textos? Não seria talvez mais
natural relegá-los para o arquivo dos livros que se veneram, mas que já não se
usam por estarem ultrapassados?
A
questão é importante e merece atenção. Comecemos por examinar
1.
A história dos salmos
1.1. O tempo anterior a Cristo
Os
salmos foram redigidos de sorte a desdobrar-se, "crescer", à medida
que se desdobrasse a história do povo de Deus ([1]).
1.
Este princípio parecia evidente já aos antigos judeus: os hinos compostos por
um salmista (Davi, por exemplo) em circunstâncias particulares de sua vida
(perseguição de Saul, revolta de Absalão, arrependimento de adultério, etc.)
eram adotados pelo povo e repetidos no culto público, através dos séculos, como
expressão da coletividade, de todo o povo messiânico. E, para melhor servirem
ao uso público, alguns salmos receberam mesmo, da parte de autores inspirados,
acréscimos oportunos; assim no SI 51, cântico da penitência de Davi (ca. de
1000 a.C.), os dois últimos versículos foram ajuntados no tempo de exílio
(587-538 a.C), quando o povo inteiro queria exprimir seus sentimentos de
contrição, prolongando os de Davi.
Eis
os versículos finais (20 e 21 do salmo 51: "Faze o bem a Sião por teu
favor: reconstrói as muralhas de Jerusalém. Então te agradarás dos sacrifícios
de justiça - holocaustos e ofertas totais - e em teu altar se oferecerão
novilhos".
Ora
Davi não pode ter escrito tais versículos, pois supõem a época do exílio
(587-538 a.C), quando os muros de Jerusalém foram derrubados pelos invasores
babilônios e o culto do Senhor Deus foi interrompido no templo. Foram, pois, os
judeus orantes do século VI a.C. que os acrescentaram ao salmo 51 para fazer
deste a sua oração atualizada.
Note-se
que algo de análogo se dá no fim do salmo 69: o pedido de socorro de um orante
singular termina nos vv. 36s com uma prece em favor do povo exilado:
"Sim,
Deus vai salvar Sion, vai reconstruir as cidades de Judá. Habitarão lá e a
possuirão. A descendência de seus servos a herdará, e nela habitarão os que
amam seu nome".
Os
judeus, pois, julgavam natural não só repetir os salmos, mas adaptá-los a
situações posteriores do povo, a fim de serem sempre a expressão viva de sua
alma religiosa.
1.2.
A plenitude dos tempos
Veio
a plenitude dos tempos. Jesus não pôs os salmos de lado, mas utilizou-os em
duplo sentido:
1)
Jesus, como homem, recitou os salmos, fazendo
passar por eles os sentimentos de seu coração humano; deu-lhes assim um suporte
ou um sujeito mais denso e mais rico de afetos. Eis as passagens em que os
evangelistas referem que Jesus recitou os salmos:
"Meu
Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (SI 22, 2). Cf. Mt 27, 46.
"Em
tuas mãos entrego o meu espírito" (SI 31, 5). Cf. Lc 23, 46.
Cf.
Mt 26,30: "Tendo dito o hino (isto é, o Hallel pascoal ou S1112-117),
saíram".
Certamente
ainda no Templo, nas festas judaicas, por ocasião das peregrinações a
Jerusalém, em sua vida particular de oração, Cristo rezou os salmos como a
gente de seu povo.
Recitando
os salmos, Jesus lhes conferiu significado ainda mais rico e valor novo.
Significado
mais rico. Com efeito. Ao passo que, no Antigo Testamento,
o saltério era cantado por indivíduos que, em grau maior ou menor,
representavam o Messias ([2]),
os salmos, recitados por Cristo, tornaram-se a expressão daquele que preenchia
as imagens da antiga Lei. Jesus adotou as palavras do saltério àquelas
circunstâncias de sua vida que eram análogas às dos salmistas e às do povo
israelita (perseguição, vitória, agradecimento etc); havia mesmo muita coisa no
livro dos salmos que só podia ser adequadamente proferida pela pessoa do Messias
([3]).
Valor
novo. O Senhor viveu com estas palavras na mente
e nos lábios as diversas fases da vida humana, fazendo de tais cantos a expressão
do homem típico, modelo, que, atravessando as nossas vicissitudes, se
santifica, se oferece ao Pai.
2)
Jesus quis, mediante os salmos, elucidar certos
episódios de sua vida terrestre, como, por exemplo,
a sua Paixão e ressurreição. Ele as apresentou como cumprimento daquilo que os
salmos prediziam e os discípulos até então não compreendiam. Vejam-se os
seguintes textos:
Lc
24, 44: "Era necessário que se cumprisse tudo
que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos
salmos".
Os
Evangelistas narram que Jesus referiu a Si explicitamente os seguintes
versículos:
S1118,
22s: "A pedra que os construtores
rejeitaram, tornou-se pedra angular. Isto foi feito pelo Senhor, e é coisa
admirável aos nossos olhos". Cf. Mt21, 42.
S1110,1:
"O Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à minha
direita, até que faça dos teus inimigos o supedâneo de teus pés". Cf. Mt 22,
44.
SI
8, 3: "Da boca das crianças e dos que ainda
são amamentados, produzistes um louvor para Vós". Cf. Mt 21, 16.
S1118,
26: "Bendito o que vem em nome do
Senhor", dirão os Judeus quando virem o Cristo em sua segunda vinda. Cf.
Mt 23, 39.
Desta
forma na plenitude dos tempos o saltério ainda adquiriu nova atualidade. Há,
conseqüentemente dois tipos de oração especialmente caros ao cristão: o saltério
que Jesus rezou e elucidou, e o Pai-Nosso, que Ele ensinou aos discípulos.
1.3.
O tempo da Igreja
Terminada a sua obra na carne, o Senhor
subiu aos céus. Deixou, porém, na terra a sua Igreja, na qual Ele continua
presente e ativo, à semelhança da cabeça que está unida ao corpo e a ele
comunica a sua vida. A Igreja é, pois, a continuadora do Messias e de sua obra;
a este título também prossegue nela a história do povo de Deus iniciada no
Antigo Testamento (o verdadeiro Israel, somos nós, cristãos, conforme Rm 9,
6-8). Conscientes disto, os cristãos, desde os seus primórdios, continuaram a
cantar os salmos, adaptando-os, é claro, às circunstâncias da vida da Igreja e
de sua vida pessoal ([4]).
Deste modo, faziam, também eles, "crescer" o saltério, dando-lhe ulteriores
aplicações; faziam-no ressoar dentro das realidades pujantes e vibrantes do
Novo Testamento, realidades que desdobram e estendem a obra de Cristo e que são
a consumação das instituições da antiga Lei ([5]).
Os
Padres atestam quão difuso e familiar aos cristãos era o uso dos salmos. Assim
S. Jerônimo (+420).
"Na
aldeia de Cristo (Belém) há plena rusticidade, e, fora dos salmos, reina o
silêncio. Em qualquer parte para onde te voltes, o lavrador, dirigindo o arado,
canta o Aleluia; o ceifador, em meio ao suor, se estimula com os salmos; e o vinhateiro,
enquanto poda a vinha com a foice curva, canta algo de Davi" (ep. 46, 11
PL 22, 491).
S.
Ambrósio (t 397) refere em Milão:
"O
salmo é cantado pelos Imperadores, executado com júbilo pelo povo. Cada qual se
empenha por proferir o (salmo) que a todos aproveita. Nas casas canta-se o
salmo; fora de casa refere-se o que há no salmo. Ouve-se o salmo sem cansaço;
conserva-se na memória com deleite. O salmo une os dissidentes, consocia os
discordantes, reconcilia os ofendidos" (In Ps 1, 9 PL 14, 968).
Sidônio
Apolinário (+480), na Gália, e S.
Agostinho (+430), na África, narram que os remadores,
para trabalharem em ritmo, faziam ressoar até a beira-mar o canto do Aleluia.
Nem
se poderia conceber outra atitude dos cristãos diante do saltério, pois, como
diz Pannier, "este livro, além da inspiração que lhe é comum com todos os
livros da Escritura, teve o privilégio de ser a oração mesma de Cristo; por
assim dizer, ainda está todo impregnado dos sentimentos mesmos de Jesus; só se
lhe pode comparar a oração dominical (Pai nosso)". Por conseguinte,
"compreende-se que a Igreja tenha sempre procurado unir-se aos pensamentos
e afetos do Filho de Deus, retomando o saltério como principal oração sua"
(Dictionnaire de la Bible V 833).
À
luz do que acaba de ser dito, compreende-se bem o empenho atual da Santa Igreja
em avivar nos fiéis o uso dos salmos e do Ofício Divino (cf. Constituição Sacrosanctum
Concilium 83-101).
E
não será difícil aos nossos cristãos - antes acarretar-lhes-á imenso deleite e
fruto espiritual - corresponder a esta diretriz.
Para
isto, requer-se tomem consciência viva de que cada batizado, em seu aspecto
primário, à luz de Deus, é um membro de Cristo. Em conseqüência, Cristo de
certo modo continua a viver nele (cf. Gl 2, 20); em todos os atos, grandes ou
pequenos, religiosos ou profanos, que realize com a graça santificante, é a
vida de Cristo que nele se afirma, é a obra da Redenção que se desdobra. É esta
uma verdade fecunda para orientar o cristão na vida prática; principalmente nas
horas de sofrimento, quando parece prostrado, inutilizado, recorde-se, com S.
Paulo, de que é então de modo especial que Cristo a ele estende a sua Paixão,
essa Paixão que foi vitória, salvação para o mundo (cf. Cl 1, 24).
E,
ao passar diariamente por vitórias ou reveses, faça o cristão que o saltério acompanhe
cada uma das fases de sua vida. Nos salmos ele encontra
as palavras que Cristo consagrou por seu uso, quando nos precedia na terra
atravessando nossas vicissitudes; no saltério o fiel encontra os sentimentos de
Cristo, que se fez nosso Irmão mais velho e exemplar (cf. Rm 8, 29), sentimentos
que, conforme S. Paulo (Fl 2, 5), cada um de nós deve reproduzir, na alegria e
na tristeza, no louvor e na súplica... Não há situação da vida humana que não
encontre no saltério a sua expressão adequada diante de Deus; o saltério a
transforma em oração ([6]).
Assim,
em qualquer cristão que reze os salmos, pode-se dizer que Cristo prolonga a
prece que outrora em sua carne mortal Ele dirigia ao Pai; o Espírito de Cristo
geme nos membros do Cristo Místico (Rm 8, 26), como outrora suplicava no Cristo
Cabeça (Hb 5, 7), servindo-se até das mesmas fórmulas ([7]).
Conscientes
disto, os fiéis não deixarão de fazer largo uso desses textos veneráveis, que
os põem em tão íntima comunhão de oração com Cristo e, mediante Cristo, em
comunhão de vida com as três Pessoas divinas!
2. Como
recitar cristãmente?
O
cristão pode rezar os salmos - que são sempre ORAÇÃO DA IGREJA - segundo três
modalidades:
Oração
da Igreja:
a)
com Cristo ao Pai;
b)
a Cristo (-> ao Pai);
c)
ao Pai a respeito de Cristo.
Examinemos
cada qual dessas modalidades.
1)
Oração com Cristo ao Pai. Esta
atitude supõe a imagem de Cristo Cabeça do Corpo que é a Igreja. Cristo
continua na terra a rezar os salmos, porque continua a sua obra redentora,
pregando a Boa Nova, padecendo e morrendo na fidelidade a sua missão. Tal
modalidade corresponde ao estilo da oração litúrgica: ao Pai pelo Filho no
Espírito Santo. Assim principalmente os salmos de angústia e súplica sejam rezados:
SI 56.57.58.59...
2)
Oração a Cristo, que, como Mediador, leva as orações dos
homens ao Pai. É a prece da Esposa (Igreja) ao
Esposo (Cristo). Embora a oração a Jesus seja mais rara na Liturgia da Igreja,
ela encontra respaldo na própria Escritura; com efeito, São Lucas apresenta o
primeiro mártir Sto. Estêvão a pronunciar na hora da morte as mesmas palavras
que Jesus crucificado proferiu com a diferença, porém, de que Jesus se dirige
ao Pai, ao passo que Estêvão se dirige a Jesus. Vejam-se os textos:
Lc
23, 34: Disse Jesus: "Pai, perdoa-lhes porque
não sabem o que fazem".
Lc
23, 46: Disse ainda Jesus: "Pai, em tuas mãos
entrego o meu espírito".
Em
paralelo Sto. Estevão vê na glória do céu Jesus de pé à direita de Deus (At 7,
55) e exclama:
At
7, 59: "Senhor Jesus, recebe o meu
espírito".
"Senhor,
não lhes leves em conta este pecado".
A
oração a Jesus tornou-se muito freqüente na piedade popular; é válida contanto
que não se esqueça que o Pai é o Alfa e o Ômega, para o qual converge toda a
piedade cristã, seja explícita, seja implicitamente.
3)
Oração ao Pai a respeito de Cristo. Esta
modalidade aplica-se aos salmos ditos "históricos" ou que referem as
grandes linhas da história do povo de Israel (SI 78.105.106.. 136); falam da
travessia do Mar Vermelho, da passagem pelo deserto, do maná... Estas
realidades são consideradas pelo cristão como imagens e sinais de maiores dons
que haviam de ser concedidos aos homens mediante a obra redentora de Cristo:
Batismo, Eucaristia, filiação divina... Em conseqüência o cristão reza os
salmos históricos louvando o Pai por quanto recebeu através do Batismo, da
Eucaristia e demais dádivas próprias da vida cristã.
Quanto
às imprecações (ou o desejar o mal...), podem ser
tranqüilamente recitadas pelos cristãos, que as dirigem não contra pessoas más,
e sim contra coisas (instituições, obras, movimentos...) más. Ensina S.
Agostinho: "Odeia o pecado, mas ama o pecador". Na verdade, o cristão
deseja que pereça o mal ou o pecado, mas se salve o pecador.
É,
pois, nestes termos que o fiel católico pode cristianizar os salmos e rezá-los
vivamente com toda a Igreja.
Dom
Estêvão Bettencourt