PERGUNTE
E RESPONDEREMOS 393 – fevereiro 1995
Pode-se crer?
AS REVELAÇÕES A MARIA VALTORTA
Em
síntese: O livro "Sabedoria
Divina", portador de revelações que Jesus teria feito a Maria Valtorta,
não parece corresponder aos ensinamentos e ao linguajar de Jesus conhecidos
através dos Evangelhos. O texto em pauta é vasado em estilo passional e
pretende revelar minúcias para as quais não há fundamento sólido. Um dos pontos
mais vulneráveis do livro é a afirmação de que Judas está certamente no
inferno; ora a Teologia é propensa a crer que Deus não nos quis revelar a sorte
póstuma de nenhuma criatura humana. O inferno existe, sim, mas nem o texto de
Mt 26,24; Mc 14,21 implica na revelação de que Judas foi condenado ao inferno.
Nenhuma criatura pode perceber o que se dá no íntimo da consciência do mais
empedernido suicida antes de exalar o último suspiro.
Entre
as diversas pessoas que afirmam ter recebido mensagens divinas em nosso século,
acha-se a Sra. Maria Valtorta Fioravanzi. Deixou cerca de quinze mil páginas de
caderno sobre a vida de Jesus Cristo, como também comentários bíblicos e outras
obras menores, todas redigidas — como dizia a vidente — por revelação do
próprio Cristo.
Dado
que hoje em dia não são poucos os casos similares, a Igreja é especialmente
cautelosa ao avaliar tais revelações; facilmente podem corresponder a certa
efervescência "mística", que procura sua expressão própria, de origem
meramente humana.
Maria
Valtorta é famosa. Muitos de seus textos, redigidos originariamente em
italiano, foram traduzidos para o espanhol. Procuraremos, a seguir, analisar o
conteúdo de algumas "revelações" tais como se encontram no livro
"Sabiduria Divina dictada a Maria Valtorta" (exemplar dito "de
apostolado"), edição autorizada pelo Centro Editoriale Valtortiano de
Isola de Liri (FR), Itália.
1. QUEM FOI MARIA VALTORTA?
Maria
nasceu aos 14/03/1897 em Caserta (Itália Meridional). Estudou em colégio de
Religiosas, revelando-se inteligente e enérgica, como também dotada de grande
capacidade intuitiva. Foi vítima de mãe muito severa e de pai demasiadamente
condescendente — o que muito a fez sofrer. A genitora, por duas vezes, impediu
que realizasse o seu desejo de casar-se; além do quê, deu ocasião a que
sofresse um golpe na coluna vertebral em 17/03/1920. A partir de 19/04/1934 não mais
se levantou da cama.
Maria
tinha um diretor espiritual, que a incitou a escrever a sua autobiografia. De
1943 a 1947 a atividade literária da enferma foi muito intensa, prolongando-se
até 1953; além de obras de espiritualidade, escreveu cartas, que a punham em
contato com muitas pessoas e atestam o seu elevado senso humanitário.
Fez
votos de virgindade, pobreza e obediência nas Ordens Terceiras de São Francisco
e dos Servos de Maria; ofereceu-se a Jesus Sacramentado como vítima do Amor
Misericordioso. Dizia ser o instrumento ou a pena nas mãos de Deus para
transmitir aos homens algumas luzes sobre as verdades da fé.
Em
1956 Maria começou a se recolher em retiro silencioso, que podia ser a sua
misteriosa resposta aos apelos de Deus. Veio a falecerem 12/10/ 1961, com 65
anos de idade e 28 de enfermidade. Os seus restos mortais repousam na capela do
claustro da Basílica da Anunciação em Florença.
Pergunta-se:
2. QUE DIZER DA ESPIRITUALIDADE DE
MARIA VALTORTA?
O
livro "Sabiduria Divina" aborda temas de espiritualidade como amor,
oração, graça de Deus, Eucaristia, perdão das ofensas, sangue de Cristo, Santo
Rosário... Jesus é apresentado como autor dos oráculos em frases vivazes,
solenes e densas. Os dizeres tendem para a severidade. Chamam especialmente a
atenção os capítulos concernentes ao purgatório, ao inferno e a Lúcifer (pp.
74-89); sugerem algumas reflexões.
2.1. Que se pode dizer sobre Judas?
O texto é peremptório em relação a Judas,
que é tido como o maior de todos os pecadores, condenado ao inferno:
"Se
ele foi o sacrílego por excelência,
eu não o sou. Se ele foi o injusto por excelência, eu não o sou. Se ele foi
quem derramou, com desprezo, seu sangue, eu não o faço. Perdoar a Judas seria
sacrilégio contra a minha Divindade por ele atraiçoada; seria injustiça para
com todos os demais homens, sempre menos culpados do que ele, e que também são
castigados por seus pecados; seria desprezar meu sangue; em suma, seria violar
minhas leis" (p. 80).
Ora
é difícil crer que Jesus tenha dito tais palavras. Sem dúvida, o pecado de
Judas foi muito grave; mas os bons teólogos julgam que não temos revelação
alguma sobre a sorte póstuma de quem quer que seja. A existência do inferno foi
revelada por Cristo nos Evangelhos (cf. Mt 25,31-46; Mc 9,42-48...), mas a
revelação de que determinada pessoa está no inferno parece fugir aos desígnios
de Cristo. Nem mesmo a frase de Mt 26,24; Mc 14,21 pode ser tida como anúncio
da condenação de Judas ao inferno.([1])
2.2.
Penas e local do inferno
O
texto refere que as penas do inferno serão mais dolorosas após o juízo final,
porque os réprobos perderão a possibilidade de ver novos condenados associar-se
ao seu destino; entrementes, enquanto corre a história deste mundo, os réprobos
se consolariam, de algum modo, por saberem que outras vítimas do pecado vêm a
compartilhar a sua triste sorte:
"Depois do tremendo Juízo, mais impiedosa será aquela
morada de pranto e tormento, porque o poder condenar os viventes e ver novos
condenados precipitar-se no abismo (coisas que redundam em infernal consolação)
já não serão possíveis e a porta do reino maldito de Satanás será fechada à
chave e trancada por meus anjos, para sempre, para sempre, para sempre, um
sempre cujo número de anos não tem números" (pp. 80s).
Ora
o modo de falar passional e o estilo imaginoso deste trecho não condizem com o
pensamento de Cristo. Certamente Jesus não foi "bonachão", mas também
não se pode crer que tenha usado linguagem tão carregada de fantasia e
repetições... 0 texto atrás transcrito sugere que o inferno seja um lugar, uma
prisão, cujas portas podem ser definitivamente aferrolhadas pelos anjos bons.
Aliás, a topografia do inferno não é estranha no caso, visto que à p. 81 está
dito que o "purgatório é um lugar". — Ademais a Teologia ensina que
não há alteração das penas do inferno, pois elas dependem unicamente da
gravidade dos pecados de cada réprobo.
2.3.
A topografia do limbo
Quando
o texto de 1Pd 3,19 afirma que Jesus foi ter à prisão anunciar aos justos do
Antigo Testamento a realização da obra da Redenção, está usando uma imagem
corrente entre os judeus. Estes imaginavam que debaixo da Terra (plana) havia
um compartimento reservado aos mortos (cheol); a margem ou orla superior desse
compartimento, chamada limbo, era destinada aos justos do Antigo Testamento;
para lá terá descido Jesus após morrer na Cruz e antes de ressuscitar. Ora tal
compartimento subterrâneo não existe; o limbo dos justos do Antigo Testamento é
um estado e não um lugar, como também o inferno é um estado e não um lugar.
Apesar disto, lê-se à p. 84:
"Eu vos digo: Eu, que também criei aquele lugar,
quando desci ali para trazer do limbo aqueles que aguardavam a minha vinda,
senti horror, eu. Deus, daquele horror; e, se não fosse coisa feita por Deus e,
por conseguinte, imutável (porque perfeita), eu o faria menos atroz, porque sou
o Amor e me senti dolorido por causa daquele horror".
O
texto parece identificar o chamado "limbo dos Pais" (estado dos
justos que aguardavam a Redenção, sem sofrer castigo) com o inferno,
atribuindo àquele estado os tormentos característicos do inferno. Na verdade, o
inferno, sim, é estado doloroso para os réprobos, ao passo que o limbo dos Pais
era um estado de paz e expectativa sem dor (ao contrário, com a alegria
decorrente da certeza da salvação). O limbo dos Pais deixou de existir após a
Redenção realizada por Cristo, enquanto o inferno dura para sempre; Deus não o
criou, mas deve-se dizer que é cada réprobo quem cria o inferno para si, na
medida em que diz Não a Deus, o Sumo Bem.
2.4.
Outras impropriedades
Outras
várias imprecisões de linguagem se podem apontar no livro "Sabiduria
Divina"; assim
à
p. 85: "Satanás tem mais êxito do que Deus. Suas conquistas são mais
numerosas do que as minhas (de Jesus)"; à p. 86: até os sete anos de idade
Satanás é menos astucioso para com as crianças: "Quando uma criatura
começa a saber querer, a saber pensar, ou seja, depois dos sete anos, ele
intensifica sua atenção e inicia sua doutrinação".
Em
suma, o livro em pauta, embora não contenha heresia alguma (as falhas apontadas
podem ser tidas como linguagem meramente popular, poética, dantesca...), não
parece ser genuíno, pois atribui ao Senhor Jesus um linguajar impróprio,
veículo de conceitos que de certo modo desfiguram a mensagem cristã. Não há
dúvida, a maioria das páginas do livro é muito aproveitável como estímulo a uma
vida piedosa; todavia pode-se crer que os seus dizeres não ultrapassam o
talento de uma pessoa fervorosa, mas carente de precisão teológica.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)