PERGUNTE
E RESPONDEREMOS 393 – fevereiro 1995
"Sê
fiel até a morte..." (Ap 2,10):
"O
SIM E O SANGUE"
por
Olivo Cesca
Em síntese: O
Pe. Franz Reinisch (1903-1942), palotino, é o "mártir da
consciência". Intimado a prestar juramento de fidelidade a Adolf Hitler, recusou-se
peremptoriamente a fazê-lo, embora o quisessem persuadir a tanto os seus
confrades. Na verdade, tal juramento se confundia com o da fidelidade à pátria,
que, em guerra, apelava para a colaboração dos seus filhos. O Pe. Reinisch,
após muito hesitar e rezar, julgou que não podia servir à causa de Hitler e,
por isto, foi decapitado heroicamente. Levara uma juventude empolgada pelo
namoro, a música e a dança, mas a devoção à Virgem Santíssima, invocada sob o
título de "Mãe três vezes admirável" em Schoenstatt (Alemanha) o
fortaleceu inquebrantavelmente. Atualmente está em curso o seu processo de
Beatificação.
Num
momento da história em que tanto se lamenta a falta de Ética ou a capitulação
de tantas pessoas frente aos desafios do dever e da coerência, é oportuno citar
vultos que se distinguiram precisamente pela fidelidade incondicional aos
ditames da consciência bem formada. Entre eles está Franz Reinisch, sacerdote
palotino decapitado em Brandenburg, perto de Berlim, aos 21/8/1942, por haver
recusado juramento de fidelidade a Adolf Hitler. Ver o Editorial deste
fascículo (p. 49).
A
seguir, vão esboçados os principais traços da personalidade e da vida desse
herói de Cristo, a partir do livro de Olivo Cesca: "O
Sim e o Sangue".
Ed. Pallotti, Santa Maria (RS).
1. TRAÇOS BIOGRÁFICOS
Franz
nasceu a 19/2/1903 em Feldkirch (Áustria), como o segundo filho de autêntica
família católica.
Em
idade juvenil enamorou-se por uma jovem, com à qual pensava em casar-se. Começou
a estudar Direito na Universidade de Innsbruck,
onde se distinguiu por sua inteligência, sua boa aparência, suas vestes
impecáveis, sua veia de músico e poeta. Gostava muito de dançar, mas não
tolerava brincadeiras de baixo teor.
Em
1923 recebeu um convite para fazer um retiro de oito dias em Wylen (Suíça). Os
primeiros dias de silêncio foram enfadonhos para quem vinha do tumulto da vida
universitária; mas no final Franz começou a descobrir a presença de Deus, que
lhe dirigia seus apelos. Teve então início a segunda fase de sua vida, que
terminaria com o martírio.
Foi
continuar seus estudos de Direito em Kiel (Alemanha). As aulas de Medicina Legal
colocaram-lhe então ante os olhos a perversidade e as mazelas dos homens.
Recordava mais tarde esta experiência, ao escrever:
"Eu
via a miséria moral e religiosa dessa grande cidade portuária (Kiel) com os
olhos do retiro inaciano. Irrompeu então em mim o forte desejo de conquistar
almas para Cristo. Em julho de 1923 voltei para casa com a firme decisão de me
tornar sacerdote".
Despediu-se
de sua namorada e começou os estudos eclesiásticos de Filosofia e Teologia,
sendo finalmente ordenado presbítero aos 29/6/1928. Era padre diocesano, quando
se sentiu atraído pela Sociedade do Apostolado Católico, fundada por São
Vicente Pallotti. Assim descreve ele a sua chegada à casa de Noviciado em Untermezbach
(Baviera):
"Depois
de recebido cordialmente pelo Padre Mestre, fui por ele conduzido ao meu quarto
no terceiro andar. Cama, mesa, cadeira, crucifixo, um fogareiro de ferro e uma
pequena mala constituíam meu inventário e minha mobília. O padre me fez sentar,
e logo o atalhei à minha maneira tirolesa: 'Reverendo, convido-o a fumar um
cigarro, para brindar a minha chegada'. Mas qual não foi a minha surpresa ao
ouvi-lo dizer: 'O sr. quer ter a bondade de me entregar os seus cigarros? Em
nosso Noviciado é proibido fumar’ — Olhei-o petrificado, como se tivesse sido atingido
por um raio. Num esforço heróico fui desembolsando os cigarros. Uns 150. Depois
deitei-me, morto de cansaço e de susto".
Franz
tentou fugir da casa do Noviciado, julgando que não se adaptaria a regime tão
austero, mas, por si mesmo, com a graça de Deus, voltou atrás. Finalmente aos
8/12/1930 proferiu seus primeiros votos religiosos. De então por diante, a vida
de Franz foi inteiramente dedicada ao ministério sacerdotal. Concebeu especial
devoção a Maria Santíssima, três vezes admirável, como era invocada no
santuário de Schoenstatt, e consagrou-se à Virgem-Mãe.
A
situação política da Alemanha foi-se modificando com a ascensão de Adolf Hitler
e do Partido Nacional-Socialista, impregnado de concepções racistas e imperialistas.
Hitler elaborou um programa de trinta pontos para a "Igreja Nacional do Reich",
dentre os quais se destacam:
"5
— A Igreja Nacional dispõe-se a exterminar irrevogavelmente as crenças cristãs
estranhas e estrangeiras, trazidas para a Alemanha no malfadado ano de 800.([1])
7
— A Igreja Nacional não tem escribas, pastores, capelães ou padres, mas
oradores do Reich para
falar em seu nome,
13
— A Igreja Nacional exige a imediata cessão da publicação e difusão da Bíblia
na Alemanha.
19
— Sobre os altares não deve haver nada além de Mein
Kampf (Minha Luta), para a nação germânica e,
portanto, para Deus o livro mais sagrado, e, à esquerda do altar, uma espada.
30
— A Cruz cristã deve ser removida de todas as igrejas, catedrais e capelas e há
de ser substituída pelo único símbolo inconquistável — a suástica" (L. William
Schirer, Ascensão e Queda do III Reich,
vol. I, 4a. ed., p.358).
Ao
19/3/1941, Franz Reinisch recebeu a comunicação de que se devia preparar para
servir em breve no Exército alemão. Esta notícia suscitou-lhe um drama de consciência,
que muito o fez sofrer: o recrutamento implicava juramento de fidelidade à
bandeira do III Reich e a Adolf Hitler. A Igreja não proibia aos sacerdotes e
fiéis prestar tal juramento, porque de certo modo equivalia a jurar fidelidade
à pátria em guerra e necessitada da colaboração de seus cidadãos. Eis por que o
clero mesmo se submetia à exigência. Todavia Franz, depois de muito rezar e
refletir, resolveu não ceder; furtar-se-ia ao juramento, mesmo que isto lhe
acarretasse as mais dolorosas conseqüências. Seus confrades, vendo o perigo de
morte que ele assim atraía sobre si, tudo fizeram para demovê-lo da
resistência. Franz sabia que era homem fraco e que poderia não agüentar os
horríveis vexames que o aguardavam. Rezava, porém, e mantinha firme o seu propósito,
que ele assim justificava:
"A
minha consciência não me permite obedecer a uma autoridade que só trouxe ao
mundo perseguição e chacina. Em hipótese alguma é autoridade querida por Deus.
Por isto nunca prestarei juramento a esse Governo niilista, que se apossou do
poder pela violência, pela fraude e pela mentira... Em
assuntos disciplinares vigora sempre a obediência, mas nas coisas do espírito
entra também a consciência".
Franz
falava em público contra as teses de nacional-socialismo. Isto lhe valeu a
ordem de não mais pregar e a vigilância da Gestapo.
Na
terça-feira de Páscoa de 1942 recebeu a convocação militar. Rendeu-se ao
chamado intencionalmente com um dia de atraso, ou seja, aos 14/4/1942. Na
Secção de Recrutamento em Bad Kissingen, interpelado pelo sargento, respondeu:
"Quero deixar bem claro que não penso absolutamente em me tornar soldado,
prestando juramento ao nazismo". Estas palavras deram início à etapa final
do seu Calvário. Foi levado de instância a instância, interrogado ora com
agressividade, ora com brandura e polidez por oficiais da Justiça e das Forças
Armadas, no sentido de renunciar à resistência. Também os confrades e os
capelães militares que o abordavam, lhe diziam que se rendesse, pois ainda
poderia trabalhar muito por Cristo e pela Igreja se ficasse em vida junto aos
seus. Nada, porém, o abalava. Foi, portanto, encarcerado. O capelão da prisão
de Berlim-Tegel, Pe. Kreutzberg, aos 21/6/42 levou-lhe o Santíssimo Sacramento
para a cela solitária, de modo que Reinisch pôde aí instalar um minúsculo
oratório e comungar freqüentemente. O mesmo capelão lhe sugeriu que pusesse por
escrito seus pensamentos naqueles dias sinistros, a fim de reconfortar os
futuros leitores — coisa que Franz Reinisch, depois de hesitar, resolveu fazer.
Dos
episódios finais de sua vida, sejam destacados os dois seguintes:
Voltando
à prisão, certa vez, após um interrogatório judiciário em Berlim, Franz
Reinisch tinha a seu lado, no carro, um soldado que fora condenado a quatro
meses de prisão. Tomado por uma crise nervosa, chorava convulsivamente:
"Em casa tínhamos uma vida familiar maravilhosa! Sou católico... Tinha que
acontecer isto!"
Observando
a calma do Pe. Reinisch, perguntou: "Que pena recebeu o Sr? — Pena de
morte! — Misericórdia! exclamou o bom soldado, juntando as mãos. Pena de morte?
Mas isto é terrível! Como pode estar tão calmo? Qual a sua profissão? — Padre católico!".
Houve uma pausa e ele continuou com um suspiro: "Meu Deus, como é bom
termos padres católicos!"
Doutra
feita, perguntou-lhe um sargento: "Quem é o sr.? — Católico. Quero dizer:
que profissão? — Padre católico! — Padre católico? Ah, vocês deviam ser
largados nus numa resteva de trigo ou, melhor ainda, 'balanceados' nos postes
ou explodidos com dinamite". Tais ofensas não afetavam Reinisch. A morte
estava à espreita... em breve ele passaria pelo seu limiar, e tudo o que era do
mundo se apagaria. Também aprendera que existe um acordo misterioso entre amor
e sofrimento e que uma humilhação unida à humilhação de Jesus obtém graças de
humildade para os orgulhosos.
Tudo
indicava que ele morreria no dia 15 de agosto, festa da Assunção da SS. Virgem,
de quem era fervoroso devoto. Todavia somente aos 20/8/1942, à tarde, chegou a
notícia de que soara o momento final:sete condenados seriam executados na
madrugada seguinte; o ex-soldado Reinisch, precisamente às 4h 56 min, por crime
de deserção. Foi-lhes dado algo para comer e fumar. Reinisch teve como vigia
pessoal um sargento que, dias antes, lhe dissera: "Rezar não adianta!".
Durante a noite, perguntou ao guarda o que desejava dizer com aquelas palavras:
"Desejo dizer, respondeu o sargento, que está na hora de pôr fim a essa
fita. Você precisa de compreender que ainda tem todos os trunfos na mão e
poderá salvar a pele a qualquer momento. Mas, para isto, tem que deixar suas
birras e aceitar o juramento, como todos os seus colegas aceitaram. Rezar,
rezar, não adianta!".
O
capelão passou com Reinisch boa parte da noite, tomando o lugar do guarda.
Juntos leram trechos da Bíblia e rezaram. Finalmente Franz redigiu sua carta de
despedida:
"Apenas
seis horas me separam da morte. Como anseio por experimentar a verdade da
palavra do Senhor: 'Felizes os olhos que vêem o que vós vedes' (Lc 10, 23). Eu
te amo. Tu sabes tudo. Sabes também que te amo. Bom Pastor! Leva-me a bons
prados. Maria, Rainha do céu. Virgem e Mãe, vem e leva-me. Corro para ti de
braços abertos. Tu minha mãe, eu teu filho...
Queridos
pais, separo-me de vocês apenas corporalmente. Mais uma vez quero agradecer, porque
na terra foram meus maiores benfeitores. Eu me sinto e quero permanecer perto
de vocês, pois o céu e a terra não estão longe um do outro. Temos o céu na
terra quando vivemos em Deus, em estado de graça. Por isto alegrem-se quando
receberem esta carta. Ficarão sabendo então que eu sou eternamente feliz".
Franz
fez sua última Confissão sacramental pouco antes da meia-noite. Recebeu a
Eucaristia. E rezou intensamente, aproveitando as últimas horas deste tempo de
preparação para o encontro definitivo com o Senhor. Os condenados receberam, em
dado momento, a ordem de entregar todos os seus pertences; Franz passou às mãos
do capelão o paninho em que guardara a S. Eucaristia, um pequeno Crucifixo, o
terço, os livros emprestados e a carta. Pelas três e meia da madrugada, os
condenados descalçaram sapatos e meias, recebendo em troca sandálias. Um paletó
foi-lhes jogado sobre os ombros, de modo que ficavam livres os braços. As mãos
foram algemadas por trás das costas. Saíram das respectivas celas e foram
ter em fila diante da ante-câmara da morte. Nesta havia uma mesa, à qual se
sentavam o juiz e o promotor; à esquerda, ficava o oficial encarregado da
documentação; sobre a mesa, achavam-se duas velas e uma cruz. Ainda se
encontravam ali os sargentos, o médico legista e os ministros religiosos
(católico e protestante).
Chegara
o derradeiro momento de Reinisch. Beijou pela última vez o Crucifixo e murmurou
uma prece. Abriu-se a porta da ante-câmara; os dois sargentos o levaram até a
presença do juiz. Ele ainda podia salvar a vida, caso dissesse: "Sim,
presto juramento!". Mas isto não lhe passava pela cabeça. Respondeu
firmemente a todas as perguntas, aparentando calma e segurança em sua atitude inquebrantável.
Seu olhar pousou mais uma vez no Crucificado: "Ele me amou e se entregou
por mim" (Gl 2,20)... "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida por seus amigos" (Jo 15,13).
Cavernosa,
ressoou no silêncio da sala esta ordem: "Carrasco, cumpra sua tarefa!".
Abriu-se a cortina do fundo da sala, deixando à vista a câmara mortuária com o
seu único móvel: o cadafalso. No mesmo instante, os dois algozes agarraram o
réu pelos braços e o levaram para dentro. Arrancaram-lhe o paletó dos ombros e
o deitaram sobre o patíbulo. Acionaram a alavanca, a navalha desceu e...
separou a cabeça do tronco.
A
cortina, que se fechara no momento da execução, voltou a abrir-se. O carrasco
avançou, tirou a cartola (que ele trazia na cabeça, enquanto trajava uma
casaca) e, com profunda cerimoniosidade e um modesto sorriso de satisfação pelo
dever cumprido, anunciou: "A ordem foi cumprida". O médico entrou e
verificou a morte: cabeça e tronco foram depositados num caixão. Limpou-se às
pressas o sangue e... era a vez da vítima seguinte! Jorrara o sangue vigoroso
de um mártir, que morria por absoluta fidelidade a Cristo e ao seu Reino.
2. REFLETINDO. . .
O
relato é impressionante. Mostra que é possível ser fiel a Cristo e à voz da
consciência, mesmo após uma juventude empolgada pelos atrativos deste mundo. O
Pe. Franz Reinisch realizou o ideal que sintetiza a grandeza de uma
personalidade forte: "Frangor, non
flector. Quebro-me, mas não me dobro". O seu
testemunho de "mártir da consciência", que até os amigos mais
próximos quiseram dissuadir, torna-se especialmente significativo: "Mesmo
depois de morto, ele ainda fala" (Hb 11,4), a tal ponto que está em curso
o seu processo de Beatificação.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)