PERGUNTE
E RESPONDEREMOS 522 – dezembro 2005
O direito
à vida:
"ABORTISTA":
PALAVRA PROIBIDA?
Tem
sido candente o debate em torno do aborto. Aspecto muito significativo da
questão foi a condenação do Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, Presidente do Comitê
Pró-Vida de Anápolis (GO), a
pagar elevada multa por ter qualificado de
"abortista" uma senhora que propugna a
implantação do aborto no Brasil.
A
tal respeito o Dr. Olavo de Carvalho escreveu o artigo abaixo, publicado no
DIÁRIO DO COMÉRCIO de 22/08/05. A
linguagem é veemente, tencionando pôr em relevo o despropósito da sentença
judiciária.
Absurdo
monumental
Olavo de
Carvalho, de Washington DC
Enquanto
o povo inteiro se emociona com a mirabolante sucessão de escândalos do
Mensalão, outros acontecimentos, mais discretos porém ainda mais reveladores da
ruína moral e intelectual da nação, podem passar totalmente despercebidos.
Escolhi
este porque é, em si, um monumento ao desastre.
O
leitor sabe que quem torce pelo Flamengo é flamenguista, quem vota no Maluf é
malufista, quem se dói de amores por Lula é lulista, quem quer ver o comunismo
implantado no mundo é comunista. Mas, segundo decisão unânime da Primeira Turma
Recursal dos Juizados Especiais do DF, quem defende a prática do aborto não
pode ser chamado de abortista. Ah, isso não. O Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, do
Pró-Vida de Anápolis, GO, entidade que luta contra a legalização do aborto, foi
condenado a pagar R$ 4.250,00 de
multa por ter designado com esse termo uma notória defensora (bem subsidiada
pela fundação MacArthur, é claro) do direito de matar bebês
no ventre de suas mães, em quantidade
ilimitada, a mero pedido das ditas cujas. Pior: o sacerdote foi informado pela
autoridade judicial de que doravante deve abster-se
de usar a palavra proibida não só ao falar
da mencionada senhora, ou senhorita, mas de qualquer outra pessoa, por mais
abor(CENSURADO)ista que seja.
Não
sei o nome dos juízes que compõem a Turma. Mas sei que das duas uma: ou a
proibição que baixaram se aplica a todos os cidadãos brasileiros ou
exclusivamente ao Pe. Lodi. Na primeira hipótese, os signatários dessa nojeira
ultrapassaram formidavelmente suas atribuições
de magistrados e se autopromoveram a legisladores, com o agravante de que
usaram dessa inexistente prerrogativa para instaurar, pela primeira vez na
História universal da jurisprudência, a proibição de palavras (e logo de um
termo banal do idioma, consagrado em dicionários e em pelo menos 24 mil
citações no Google). Na segunda, terão negado a um cidadão em particular o
direito de livre expressão desfrutado por todos os demais, configurando o mais
descarado episódio de discriminação pessoal já registrado nos anais do hospício
judicial brasileiro.
Num
caso, usurpam a autoridade do Congresso e a usam para baixar uma lei digna da
Rainha de Copas. Noutro, infringem a Constituição que lhes incumbe defender.
Bem,
uma ordem que tem dois significados possíveis, antagônicos entre si e cada um
absurdo em si mesmo, é, com toda a evidência, uma ordem sem significado nenhum.
Como
obedecê-la, portanto? Obedecer a uma ordem é traduzir o seu significado em
atos. Não havendo significado, a obediência é impossível. Ninguém pode se
curvar a ela sem anular, no ato, os princípios constitucionais e legais que
fundamentam a autoridade mesma de quem a emitiu.
Aos
juízes da
Turma Recursal cabe, portanto, a invenção desta novidade jurídica absoluta: a
sentença auto-anulatória.
Se
pretendem seriamente que ela seja cumprida, portanto, os magistrados
brasileiros violam não somente um dos princípios fundamentais do Direito, que
reza "ad impossibilia nemo tenetur" (ninguém
é obrigado a fazer o impossível), mas também as leis da lógica elementar, a
ordem causal da
ação humana e, enfim, a estrutura inteira da realidade. Perto disso, aquele
famoso prefeito de cidade do interior que mandou revogar a lei da gravidade foi
um primor de modéstia, já que suspendeu somente uma das leis da mecânica
clássica, deixando o resto da ordem universal em paz. O próprio Deus jamais
sonhou remexer tão fundo os pilares do cosmos como o pretenderam os meritíssimos,
já que anunciou desfazer no Juízo Final tão-somente o universo corpóreo
presentemente conhecido, conservando intactos o
princípio de identidade e os nexos de causa e efeito, sem o que não poderia
julgar os vivos e muito menos os mortos. Sto. Tomás
de Aquino ensinava
que a onipotência divina não tem limites externos, mas os tem internos: não
pode anular-se a si própria, decretando uma absurdidade intrínseca. Para os juízes
da Turma Recursal, isso não é obstáculo de maneira
alguma.
Se
os leitores pensam que a comédia parou por aí, enganam-se. Uma sentença que não
tem sentido lógico requer interpretação psicológica. Mas quando tentamos sondar
a obscuridade mental
de onde suas excelências extraíram o fruto patético de suas caraminholações,
defrontamo-nos com uma dificuldade insuperável: ou esses juízes
compreendem o sentido do que assinaram, ou então
assinaram a esmo, de supetão, num
arrebatamento paroxístico
que só poderia alegar em defesa própria o atenuante da insanidade. No primeiro
caso, são um grupo revolucionário místico-gnóstico
pelo menos tão perigoso quanto o
de Jim Jones, empenhado
em corrigir os erros do Todo-Poderoso mediante
a supressão da realidade. No segundo, estão absolutamente incapacitados para a
função judicial ou aliás para qualquer outra, sendo obrigação da corregedoria
removê-los imediatamente do cargo e devolvê-los aos
cuidados de suas respectivas mães, para que estas apliquem nos seus bumbuns os
corretivos requeridos em casos de molecagem intolerável.
Incapaz
de atinar com algum sentido lógico ou psicológico na enormidade judiciária
brasiliense, acredito no entanto que posso encontrar para ela uma explicação
sociológica: Suas Excelências são o produto acabado da universidade brasileira.
Quatro décadas de desconstrucionismo, multiculturalismo, "direito
alternativo", teologia da libertação e slogans politicamente corretos, sem
nenhum contrapeso de racionalidade científica e educação clássica, bastam para
infundir em pessoas clinicamente sãs a doença espiritual do irracionalismo anticósmico,
de modo que, continuando a agir de maneira normal no
dia a dia, são subitamente atacadas de autodivinização aguda quando no
exercício de alguma função que lhes pareça ter relevância ideológica. Aí, sem a
menor hesitação de consciência, passam a exigir que dois mais dois dêem cinco,
que os pássaros voem para trás, que as vacas produzam vinho francês em vez de
leite e que a soma dos ângulos internos dos triângulos dê 127,5. E fazem tudo
isso acreditando cumprir uma alta missão ético-social.
Já vamos para a terceira geração de estudantes
brasileiros afetados por essa grotesca deformidade do espírito. Não é de
espantar que, elevados ao cargo de magistrados, esses meninos tenham alguma
dificuldade de discernir entre a toga judicial e a capa do Super-Homem.
Olavo
de Carvalho