PERGUNTE E
RESPONDEREMOS 402/Novembro 1995
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Novidade:
"A RELIGIÃO DE JESUS, O JUDEU" por
Geza Vermes
Em síntese: O livro de Geza Vermes
tenta provar que Jesus não fundou o Cristianismo: terá sido um judeu fiel à Lei
de Moisés, que esperava para breve a irrupção do Reino de Deus. Os escritos de São
João e São Paulo,, que apresentam elevada Cristologia, não seriam dignos de
crédito; mais fidedignos seriam os três Evangelhos Sinóticos, embora
interpolados por sentenças do Cristianismo.
A
propósito vão registrados os critérios que defendem a credibilidade tanto dos
Evangelhos como das cartas paulinas. De modo especial São João se distingue
como o mais preciso dos evangelistas em matéria de topografia e cronologia,
apesar de suas profundas reflexões cristológicas. Quanto a São Paulo e aos
demais judeus, deve-se notar que não estavam
predispostos a admitir Deus feito homem, e homem pregado à Cruz para salvar a
humanidade; o próprio Paulo afirma que tal proposição é escandalosa para um
judeu, e desvairada para um grego (cf. 1Cor 1,23); se,
apesar de tudo, São Paulo e os cristãos oriundos do judaísmo passaram a
professar tais artigos de fé, só o fizeram movidos pela evidência dos fatos e
argumentos respectivos. Quanto aos Sinóticos, não deixam de apresentar
passagens que professam a Divindade de Jesus e que, corroboradas pelos sinais
ou milagres do Senhor, constituíram a base da fé cristã em Jesus Deus e Homem.
Em suma, o livro de Geza Vermes é arbitrário; parte de uma tese predefinida, a
partir da qual o autor relê os Evangelhos de maneira unilateral.
* * *
O Prof. Geza Vermes
pertence ao corpo docente da Universidade de Oxford (Inglaterra), onde leciona Estudos Judaicos; é
também membro da Academia Britânica. Na qualidade de judeu, apresenta Jesus
como um judeu fiel à Lei de Moisés, embora tivesse suas concepções
escatológicas (relativas à irrupção do Reino de Deus) pessoais. O Cristianismo
seria algo alheio às intenções de Jesus, devido à obra de São João e São Paulo.
É o que o autor procura demonstrar no seu livro "A Religião de Jesus, o
Judeu", Ed. Imago, Rio de Janeiro 1995.
A seguir, examinaremos mais
atentamente a tese do autor e lhe teceremos alguns comentários.
1. A TESE DO AUTOR
1. Geza Vermes sintetiza seu
pensamento em mais de uma passagem do seu livro, como se pode perceber:
"Esta é, pois, da maneira
mais resumida, a religião de Jesus, o judeu:
Um poderoso 'médico' de
doentes físicos e mentais, amigo dos pecadores, ele era um pregador de grande
magnetismo sobre o que se esconde no coração da Torá, incondicionalmente
engajado na salvação, não de comunidades mas de pessoas necessitadas.
Ele também tinha consciência
da aproximação do fim dos tempos e, em momento conhecido apenas por Deus, da
iminente intervenção do Pai nosso que está no céu e que logo deveria ser
revelado o temível e justo Juiz, Senhor dos Mundos" (pp.188).
"A religião de Jesus é
autenticamente judaica. Mas mesmo assim, sua própria espécie de judaísmo
demonstra traços específicos parcialmente atribuíveis ao espírito
escatológico-apocalíptico que permeava a idade na qual ele viveu e, em parte,
no nível subjetivo, à sua própria maneira de pensar" (p.169).
"Se Jesus realmente
acreditava que o Reino de Deus estava próximo - e toda a evidência disponível
aponta que ele assumiu todos os riscos a este respeito - sua convicção de que
restava muito pouco tempo para que as pessoas alterassem seu rumo e se
dedicassem sem reservas a 'buscar o Reino', permeava todos os seus atos e definía a natureza específica da
devoção que procurava inculcar. Diferentemente da visão religiosa que considera o
futuro garantido e a vida num contexto grupal solidamente estabelecido, o ardor escatológico exige uma completa ruptura com
o passado, concentrando-se exclusivamente no momento presente e agindo não em
perspectiva comunitária, mas pessoal" (p.175).
2. Firmes estes princípios, Geza
Vermes procura mostrar, no decorrer do seu livro, que Jesus foi fiel à Lei e às
tradições judaicas, sem pretender opor-se a elas, ao contrário do Jesus dos
Evangelhos Sinóticos (Mt, Mc e Lc); embora os julgue deteriorados pelo
Cristianismo(1), acredita que contêm episódios fidedignos em maior escala do
que o Evangelho de João e as cartas paulinas (cf. p.83, nota 9):
"A representação geral de
Jesus que emerge dos Evangelhos Sinóticos é a de um judeu que observa as
principais práticas religiosas de sua nação... Importante é a impressão geral transmitida
pelos narradores, principalmente porque confuta com a antipatia da igreja paulina por todas as formas de
judaização'" (p.21).
(1) O autor se mostra muito cético em
relação dos próprios Sinóticos ao aceitar (a quanto parece) a posição de Bultmann, segundo a qual são "muito
poucos" os casos em que se pode atribuir a Jesus alguma sentença com
alguma medida de certeza" (p. 83, nota 9).
Como se vê, o autor contrapõe
os Sinóticos e Paulo; este terá apresentado um Jesus antijudaico, ao contrário dos Sinóticos,
tidos como mais fiéis à realidade histórica.
Em particular, notem-se os seguintes tópicos:
- em Mt 5, 21-48, onde se lêem seis antíteses: "Ouvistes o que foi dito aos antigos...
Eu, porém, vos digo...", o autor julga que "de modo nenhum podem ser
identificados como um ataque frontal de Jesus à Lei de Moisés ou ao judaísmo
tradicional" (p.42);
-
Jesus
não foi contrário ao divórcio (cf. Mt 19,3), lê-se à p. 39;
-
Jesus
não declarou puros todos os alimentos; cf. p. 31 e Mc 7,19;
-
"a
suposta menção de Jesus, na última ceia, de não tornar a beber vinho até sua
chegada 'ao Reino de Deus' (Mc 14, 25; Lc 22,16) provoca ... a sensação de uma
'lenda de culto' sem base histórica" (p. 131);
-
às
pp. 131 s G. Vermes fala do "costumeiro exagero de Jesus em retratar seu
próprio sucesso".
3. O que Jesus tinha de
próprio, era a expectativa da irrupção do Reino de Deus para breve.
Compartilhava assim as teses escatológicas de muitos contemporâneos seus.
Por isto a pregação de Jesus era incisiva e calorosa. Todavia Jesus se enganou:
"O Reino de Deus que Jesus firmemente acreditava 'estar próximo', não se concretizou em seu curto espaço de vida. Ele não se encontrava à frente de seus adeptos para
prestar homenagens
ao Rei dos Reis e ser acolhido por ele. Morreu, ao invés, numa cruz
romana, em agonia, traído por todos os seus discípulos pusilânimes,
desassistído a não ser - como é relatado - por algumas poucas mulheres e
escarnecido por circunstantes cruéis e estúpidos...
Sem presumir saber o que se
passava na mente agonizante de Jesus, não pode ser muito errado imaginar que,
mesmo a caminho do Gólgota, mesmo na cruz, sua emuná (fidelidade) permaneceu firme
até o terrível momento em que percebeu que Deus o tinha abandonado e gemeu: 'Eloi, Eloi, lama sabachtani'?, o que significa: 'Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?' (Mc 15, 34). - Com este grito de desespero, vindo do
coração partido de um homem de fé, ele 'exalou o último suspiro' (Mc 15.
37)" (p.189).
Todavia a imagem de Jesus não
morreu na mente dos discípulos. Estes o ressuscitaram não corporalmente, mas em sua pregação, fazendo
de Jesus o Cristo, ou seja, do judeu fiel a Moisés o Cristo (Messias), fundador
de uma religião impregnada de helenismo, que, segundo São Paulo, rompeu
seu vínculo com a Lei de Moisés:
"Apesar do pesado golpe
nos seus seguidores por sua execução, os discípulos logo se convenceram de que
Jesus não tinha morrido, mas continuava a viver, já que, em seu nome,
conseguiam sucesso como operadores de curas, exorcistas e pregadores. Esperando seu
iminente retorno na glória, pois sua mensagem escatológica permanecia viva, e assistidos,
antes de serem encobertos pelo gênio estrangeiro de Paulo de Tarso, eles continuaram
entusiasticamente
o que
acreditavam ser a própria missão de Jesus, pregando o Evangelho como se fosse o
de Jesus e fundando a religião que veio a ser conhecida como o
cristianismo" (p. 189).
Ou ainda:
"Incapazes de considerar
Jesus em nenhum outro contexto a não ser no do esperado Messias, a primeira
geração dos cristãos reinterpretou a noção do redentor de Israel, o Ungido de Deus, à luz
da vida de Jesus, um Cristo crucificado e ressurrecto que, após uma curta e
esotérica existência de pós-ressurreição sobre a terra, ascendeu a seu trono
celestial" (p.193).
4. Em conseqüência, os
ensinamentos do judeu Jesus terão sido reinterpretados para atender aos horizontes
novos que se descortinavam aos olhos dos cristãos:
a)
a
pregação de que estava iminente a irrupção do Reino de Deus neste mundo foi-se
tornando sempre mais vaga, de modo que hoje ainda ocorre, mas sem previsão de
data: os cristãos esperam "a nova vinda de Cristo na glória" (p.194);
b)
"A
religião puramente teocêntrica de Jesus tornou-se uma fé cristocêntrica, na
qual o Pai Celeste não tem mais, praticamente, nenhum papel" (p.194). A
morte redentora de Cristo é instância mediadora obrigatória para que os homens
cheguem ao Pai, libertos do pecado que resultou da queda do primeiro homem no
Éden (p.194);
c)
A
Torá judaica foi posta de lado como "instrumento de morte",
principalmente por efeito da pregação de São Paulo: será exagerado sugerir que
oceanos separam o Evangelho Cristão de Paulo da religião de Jesus, o
judeu?" (p.194s);
d)
Conseqüentemente,
foi surgindo, entre os cristãos, um sentimento de rejeição ao judaísmo. São
Paulo ainda terá sido moderado neste sentido, pois, "apesar de duros
comentários polêmicos contra o judaísmo," esperava a conversão dos judeus
a Cristo (cf. Rm 11,26). São João, porém, terá sido muito mais radical,
julgando os judeus "filhos do demônio" (Jo 8,44); daí terá tido
origem o anti-semitismo "tanto moderno quanto medieval, que direta ou
indiretamente conduz ao holocausto" (p.195).
Em
conseqüência afirma Geza Vermes:
"Embora não totalmente desconectados, a religião de Jesus e o
cristianismo são tão basicamente diferentes em forma, propósito e orientação
que seria historicamente pouco seguro fazer derivar o último diretamente do
primeiro e
atribuir
as mudanças a uma evolução doutrinal direta" (p.196).
Para G. Vermes, o problema
hoje se coloca nestes termos: o cristianismo paulino-joanístico precisa de se
defrontar não tanto com o ateísmo ou o materialismo, mas, sim, muito mais, com as
três antigas testemunhas Mateus, Marcos e Lucas, através dos quais fala o
principal desafiante, Jesus, o judeu" (p.197).
Pergunta-se agora:
2. QUE DIZER?
Vêm a propósito quatro observações: 2.1. A criteriologia do autor
Quem percorre a obra de Geza
Vermes, verifica que o autor conhece profundamente os escritos rabínicos, que ele cita frequentemente para recolocar Jesus em seu
contexto histórico. Sob este aspecto, a leitura do livro de G. Vermes é assaz interessante e instrutiva. Não
se pode negar, porém, que o autor é movido por forte preconceito; ele tem uma tese predefinida (Jesus não fundou o
Cristianismo), em função da qual ele lê os Evangelhos. Isto o leva a negar a
autenticidade dos escritos de São João e São Paulo, como vimos; quanto aos
Sinóticos, Vermes os crê mais fidedignos, embora também interpolados por glosas cristãs numa ou
noutra passagem. Estas afirmações são arbitrárias, como se depreenderá do que
vai exposto a seguir.
2.2. A historicidade do Quarto Evangelho
O quarto Evangelho é, de
todos, o mais teológico ou o que mais põe em relevo a dignidade única ou a
Divindade de Jesus Cristo; os sermões de Jesus, nesse Evangelho, recorrem a um
vocabulário diferente do dos Sinóticos; daí concluírem alguns estudiosos que
quem está falando não é Jesus, mas o autor mesmo do Quarto Evangelho, tido como
filósofo helenista e não como o Apóstolo São João. Ora a propósito da historicidade e credibilidade do quarto
Evangelho podem ser feitas as seguintes ponderações, que evidenciam a
gratuidade da recusa da autoria joanéia;
1) Em Jo 21, 24 se lê: "Este (aquele que
Jesus amava) é o discípulo que dá testemunho de tais fatos e os escreveu e
sabemos que o seu testemunho é verídico". Desde os séculos II e III a tradição se manifestou com
firmeza sobre a identidade do discípulo que Jesus amava: S. Ireneu, Polícrates de Éfeso, Clemente
de Alexandria, o Cânon de Muratori atribuem o quarto Evangelho ao apóstolo
São João, tido como o discípulo que Jesus amava. Raros foram os contraditores
desta tese, podendo-se citar, entre os poucos, o presbítero Caio (início do século III), que julgava haver contradição
entre o quarto Evangelho e os Sinóticos.
2)
O
quarto Evangelho data do fim do século I, como geralmente se reconhece. Ora desde 70 Jerusalém
se encontrava destruída, em poder dos romanos; os judeus haviam sido expulsos
da sua terra; a vida do povo de Israel, com seus costumes, seus personagens
típicos, seus partidos políticos e religiosos havia cessado... Não obstante,
verifica-se que o quarto Evangelho é muito preciso - muito mais preciso do que
os Sinóticos - quando se trata de topografia (itinerários e cidades, com seus
nomes exatos) e cronologia (indicação de dias, horas e festas) ([1]).
Tais indicações foram comprovadas como autênticas pelas escavações
arqueológicas feitas nos dois últimos séculos. O autor do quarto Evangelho não
terá inventado tais elementos historiográficos, mas exprime uma tradição
anterior, que retrocede até os próprios fatos ou o próprio Jesus mediante uma
testemunha direta. De resto, os vocábulos testemunho e testemunha (martyrion e martyréo) são muito freqüentes no quarto
Evangelho ([2]), dando a entender que os
relatos se reduzem, em última análise, a alguém que viu e ouviu e guardou viva
a lembrança dos fatos ocorridos em ambiente palestinense.
3)
Observa-se,
aliás, que o autor do quarto Evangelho, em mais de uma ocasião, faz questão de
dizer enfaticamente que ele viu o que narra e o transmite com fidelidade . É o
que se depreende logo no prólogo da obra, onde se lê: "O Verbo se fez
carne... E vimos a sua glória" (Jo 1,14). No final, ao narrar a transfixão
do lado de Jesus crucificado, afirma com muito empenho: "Aquele que viu,
dá testemunho e o seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que diz a verdade,
para que também vós creais, pois isso aconteceu para que se cumprisse a
Escritura..." (Jo 19,35s).
Afirmações paralelas se
encontram no prólogo da primeira carta de João, que se pode considerar como
obra do autor mesmo do quarto Evangelho: "O que era desde o princípio, o
que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas
mãos apalparam do Verbo da Vida - porque a Vida se manifestou; nós a vimos e
lhe damos testemunho, e vos anunciamos esta Vida eterna, que estava voltada
para o Pai e nos apareceu - o que vimos e ouvimos, nós vo-lo anunciamos" (Jo 1,1-3).
4)
É
de notar outrossim que o quarto Evangelho, embora cite os nomes dos Apóstolos, mais
freqüentemente do que os Sinóticos, jamais se refere a João, filho de Zebedeu e irmão de Tiago. Este
silêncio se torna misterioso e incompreensível, caso não se identifique "o
discípulo que Jesus amava" com o Apóstolo João. Não se exclui, de resto,
que os discípulos do evangelista tenham posto o remate ao relato do Mestre; é o
que se depreende da cláusula final do livro em Jo 21,24: "Este é o
discípulo que dá testemunho".
5)
Os
discursos atribuídos a Jesus no quarto Evangelho têm causado embaraço aos
estudiosos, pois se tem a impressão de que o autor do Evangelho coloca nos
lábios de Jesus o seu modo de falar pessoal. -Este fato não obriga a dizer que
se trata de discursos fictícios, construídos pelo autor do Evangelho. Com
efeito; considere-se que há dois tipos de memória: a memória mecânica, que é a do gravador (muito
exata, mas muito fria e objetiva) e a memória vivencial. Esta última é a recordação do
passado por parte de quem tomou parte nesse passado e se sente interpelado por
ele. À guisa de exemplo, podemos citar o seguinte fato: um noticiário de rádio
anuncia que N.N. faleceu em desastre de aviação; quem ouve a notícia, pode
ficar-lhe indiferente, por não conhecer o falecido; mas pode também ir procurar
o seu irmão para dizer-lhe: "Nosso grande amigo faleceu em desastre de
aviação"; N.N. (designação fria) é substituído por "nosso grande
amigo" (designação vivencial e calorosa). No primeiro caso, tem-se a memória
mecânica, impessoal, objetiva. No segundo caso, a mesma notícia é formulada com
outra roupagem, ou seja, em termos vivenciais, da parte de quem está
intimamente interessado no acontecimento. As palavras mudam para dar tonalidade
mais viva à notícia, mas esta fica sendo a mesma em ambos os casos.
Estes dados permitem afirmar a
historicidade
e a
credibilidade do quarto Evangelho. É de redação mais tardia que os Sinóticos.
Supõe uma reflexão aprofundada sobre a mensagem de Jesus; a vivência de alguns
decênios terá proporcionado a João e à sua escola uma experiência íntima do ser
cristão. Daí o cunho teológico do quarto Evangelho, que paradoxalmente é também
o Evangelho mais voltado para as minúcias topográficas e cronológicas; este
fato bem mostra que, nas suas meditações teológicas, o evangelista não se
distanciou da realidade histórica, mas, ao contrário, quis guardar contato
constante com as fontes do Cristianismo ou com Jesus e os feitos de sua vida
pública. Em conseqüência, não há por que não tomar o quarto Evangelho como
documento fidedigno, que vem ilustrar as origens do Cristianismo.
2.3. A Fidelidade de São Paulo a Cristo
As epístolas de São Paulo
chamam a atenção pela elevada teologia que elas desenvolvem, apresentando Jesus
como Cabeça da Igreja (cf. 1Cor 12, 12-27) ou Aquele que pelo sangue da sua
Cruz reconcilia com o Pai e entre si todas as criaturas da terra e dos céus
(cf. Cl 1, 20).
Surpresos por tão profundas
reflexões teológicas, há autores, como G. Vermes, que supõem tenha São Paulo
recorrido a conceitos do pensamento grego, alheios a Jesus, para escrever suas
epístolas. - Respondemos: São Paulo começou a redigir em 51/52 e terminou em
67; por conseguinte, o seu epistolario está muito próximo dos anos de
vida pública de Jesus (27-30 provavelmente); em tão breve intervalo não se
terão infiltrado no pensamento paulino, formado nas escolas do judaísmo,
noções pagãs, avessas à genuína fé de Israel. São Paulo quis guardar fidelidade ao
seu povo, consciente de que não estava traindo as suas tradições religiosas e
nacionais, mas, ao contrário, as levava à plenitude; cf. Rm 9, 1-5.
Ademais pode-se dizer: São
Paulo, como aliás todos os judeus, devia nutrir uma aversão natural à concepção
de um Deus feito homem..., e, como homem, pregado à Cruz para salvar a
humanidade. Com efeito; o judaísmo, nos últimos séculos antes de Cristo,
professava enfaticamente a transcendência de Deus; nem sequer pronunciava o
santo nome Javé por receio de o profanar; em conseqüência não passava
pela mente de um israelita a idéia de um Deus feito homem e morto na Cruz...;
São Paulo mesmo observa que tal concepção é escandalosa para os judeus, como é
louca para os gregos (cf. 1Cor 1, 23). Donde se conclui que o Apóstolo só a
pôde professar porque se lhe impôs com evidência, não porque a tenha ido
procurar, por iniciativa própria, em fontes helenistas. De resto, é notória a
resistência dos próprios Apóstolos a crer na Ressurreição de Jesus; a prisão e
a morte do Mestre os desconsertaram, de modo que fugiram e dificilmente se
renderam à evidência da Ressurreição; tenha-se em vista especialmente o caso de
Tomé
em Jo 20,
19-29.
2.4. A Tradição Sinótica (Mt, Mc, Lc)
Os Evangelhos Sinóticos são
menos dados à reflexão teológica do que São João e São Paulo. Por isto Vermes
os aceita com mais facilidade, embora os julgue também interpolados por tradições cristãs.
-
Não
há dúvida, os Sinóticos são mais sóbrios em teologia. Mas pode-se afirmar que
são perpassados pela consciência da Divindade de Jesus. Assim em Mt 11, 27; Lc 10, 22s Jesus afirma: "Tudo me
foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém
conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar".
Este texto afirma a paridade de Jesus com Deus Pai; Ele é tão santo e perfeito
que somente o Pai o conhece adequadamente e vice-versa;
- em Mt 16,16 Pedro confessa: "Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo", confissão de fé que Jesus confirma como
tendo sido inspirada pelo próprio Pai Celeste;
- em Mt 14, 33 algo de semelhante ocorre:
"Os Apóstolos que estavam no barco, prostraram-se diante dele, dizendo:
'Verdadeiramente tu és o Filho de Deus!'";
- em Mt 22, 41-46; Mc 12, 35-37;
Lc 20, 41- 44 Jesus mostra ser o Senhor de Davi, e não apenas o Filho de Davi: Senhor
como Deus, Filho como homem;
- em Mt 26, 63s o Sumo Sacerdote conjurou Jesus a responder à pergunta:
"És o Cristo, o Filho de Deus?". Ao que Jesus respondeu afirmativamente:
"Tu o disseste. Aliás, eu vos digo que, de ora em diante, vereis o Filho do Homem sentado à
direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu". A afirmação de Jesus
foi entendida como blasfêmia ou como usurpação de um título divino e como
causa de morte para o Senhor;
- em Mc 2, 28 Jesus se diz "Senhor do
sábado", ou seja, "Senhor do dia do Senhor (Javé)". Assim Ele é o próprio Senhor a
quem se consagra um dia por semana;
- em Mc 1,1 lê-se: "Princípio do
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus". Certos manuscritos antigos
omitem Filho
de Deus; todavia
a maioria deles abona esta declaração de fé do Evangelista.
Em suma, há
continuidade entre o Jesus do quarto Evangelho e o Jesus dos Sinóticos. A
elaboração teológica que naquele se encontra, está na linha do testemunho dos
Sinóticos.
Geza Vermes
refere-se aos textos de Mateus aqui citados, procurando reduzi-los a expressões
usuais no Antigo Testamento; tenta assim esvaziá-los do seu conteúdo teológico
em prol da Divindade de Jesus. Observamos, porém, que os dizeres
de Jesus não teriam produzido o efeito que produziram se não tivessem
tido a capacidade de impressionar os discípulos de maneira nova ou inédita;
além do quê foram corroborados por sinais ou milagres, cuja realidade histórica
é reconhecida pela crítica objetiva e serena. Ver E. Bettencourt,
"Os Milagres de Jesus: História ou Mito?", Ed. Escola "Mater
Ecclesiae", Caixa postal 1362, 20001-970 Rio (RJ).
Aliás, os críticos cristãos
estipularam critérios para se reconhecer a autenticidade de sentenças e feitos
atribuídos a Jesus nos Evangelhos, critérios de cuja aplicação resulta um
balanço positivo em favor da autenticidade historiográfica desses livros sagrados. - A
origem e a credibilidade dos Evangelhos têm sido frequentemente estudadas em PR; Ver:
PR 376/1993, pp. 406-420
(comentário do livro de John P. Meier: Um Judeu Marginal. Repensando o
Jesus Histórico, Ed. Imago, Rio de Janeiro 1992).
PR
318/1988, pp. 489-501;
PR 281/1985, pp. 284-299.
Ver outrossim F. Lambiasi, Autenticidade Histórica dos
Evangelhos. Ed. Paulinas.