PERGUNTE E RESPONDEREMOS 382 – março 1994
Entrevista rumorosa:
O PAPA E O COMUNISMO
Em
síntese: O Papa João Paulo II fez
declarações à imprensa italiana, que no Brasil suscitaram mal-entendidos. O
Pontífice não propugna o comunismo materialista, mas verifica que no cerne deste
há "sementes de verdade", isto é, a tese de que é preciso combater as
injustiças sociais, debelando a miséria e a fome das camadas mais modestas da
população. O Papa criticou tanto o comunismo ateu quanto o capitalismo
selvagem, pois ambos são materialistas e desumanos, o primeiro colocando a
coletividade acima do indivíduo, o segundo esquecendo a coletividade em favor
do indivíduo, mas ambos conculcando a dignidade e os direitos da pessoa humana.
A
01/11/93 a imprensa brasileira deu notícia de uma entrevista concedida pelo
Papa João Paulo II á jornalista Jas Gawronski, do jornal La Stampa, de Milão,
sobre a situação sócio-econômico-política do mundo de nossos tempos. Os poucos
trechos dessa entrevista publicados no Brasil podiam dar a entender que o Papa
favorecia o comunismo; foi, aliás, nesse sentido que não poucos leitores
interpretaram as palavras do S. Padre. Todavia, quem lê a íntegra das
declarações (1), verifica que o Pontífice está longe de propugnar o socialismo
real. Ao contrario, toma posição eqüidistante deste e do capitalismo selvagem,
como se depreenderá dos segmentos da entrevista que vão abaixo transcritos.
(1) A entrevista foi publicada em sua íntegra pelo jornal "O Estado de São Paulo", edição de 4/11 /1993.
1. TRECHOS
RELEVANTES
1.1. Guerra
Defensiva
A
repórter começa por perguntar se o Papa preconiza uma intervenção militar na
ex-lugoslávia. — Responde o Pontífice:
"A
posição da Santa Sé tem sido sempre a de evitar guerras fratricidas. Quando a Eslovênia,
a Croácia e depois a Bósnia decidiram promover plebiscitos sobre a questão da
independência e escolheram trilhar esta via, estavam plenamente dentro dos seus
direitos.. ."
O
que o Papa deseja é que esses direitos sejam respeitados e defendidos contra
injustos agressores:
"Em
casos de agressão, é necessário negar ao agressor a possibilidade de causar
danos. . . Guerra justa é somente a de autodefesa. Toda nação tem o direito de
se defender. O princípio já foi formulado por S. Agostinho e foi reafirmado
pelo Concilio Vaticano II."
De
fato, a Constituição Gaudium et Spes do Concilio, em seu no 79,
assim se exprime:
"Uma
vez esgotados todos os recursos de negociação pacífica, não se poderá negar aos
Governos o direito de legítima defesa. Os chefes de Estado e todos aqueles que
participam da responsabilidade da vida pública, têm o dever de salvaguardar os
povos que lhes são confiados, dirigindo com seriedade assuntos tão
sérios."
1.2. Comunismo e
Capitalismo
A
seguir, o Papa é levado a falar sobre comunismo e capitalismo. E diz:
"O
comunismo teve sucesso neste século como reação contra certo tipo de
capitalismo desenfreado e selvagem. Basta ler as encíclicas sociais,
especialmente a primeira, a Rerum Novarum, na qual Leão XIII descreve a
situação dos trabalhadores naquela época (1891). Marx também a descreveu a seu
modo. Aquela era, sem dúvida, a realidade social; foi conseqüência dos
princípios do capitalismo ultraliberal. Portanto, uma reação contra aquela
realidade cresceu e obteve o apoio de muita gente — não só dentro da classe
trabalhadora, mas também entre os intelectuais. Muitos deles pensaram que o
comunismo conseguiria melhorar a qualidade da vida. . . Depois constataram que
a realidade era diferente daquela que haviam imaginado. Alguns deles, os mais
corajosos e os mais jovens, começaram a se distanciar do poder e a se
transferir para a oposição. Claro que foi um ato legítimo lutar contra o
sistema injusto e totalitário, que se definia como socialista ou comunista.
Mas
também é verdade, como diz Leão XIII, que existem sementes de verdade mesmo no
programa socialista. É óbvio que essas sementes não devem ser destruídas, não
se devem perder nos ventos. . .
No
comunismo existe preocupação com a comunidade, ao passo que o capitalismo é
individualista. Todavia, essa preocupação, em países sujeitos ao socialismo
real, cobrou um preço muito alto: a degradação, em muitos aspectos, da vida dos
cidadãos.
Os
proponentes do capitalismo em suas modalidades extremas tendem a ignorarias boas
coisas alcançadas pelo comunismo — os esforços para acabar com o desemprego, a
preocupação com os pobres. Todavia, no sistema do socialismo real, a proteção
excessiva dada pelo Estado também produziu resultados negativos. A iniciativa
privada desapareceu, a inércia e a passividade se generalizaram. Agora, no novo
sistema , as pessoas não têm experiência ou capacidade para agir por conta
própria, e não estão habituadas à responsabilidade pessoal. . . A transição de
um sistema para o outro é muito difícil. Ela também tem alto preço: aumento da
pobreza, o desemprego e a miséria humana."
O
S. Padre se refere à situação de certo mal-estar hoje existente nos países que
se emanciparam do comunismo: falta capacidade de iniciativa, os jovens não
foram treinados para assumir a liderança; esta retorna quase naturalmente aos
antigos chefes comunistas, que são quase as únicas pessoas dotadas de estudo e
cultura.
1.3. O Capitalismo
Atual
"Segundo
penso, na raiz de muitos dos sérios problemas sociais e humanos que afligem a
Europa e o mundo de hoje, se encontram as manifestações distorcidas do
capitalismo. Claro que o capitalismo atual não é o mesmo capitalismo dos tempos
de Leão XIII. Ele mudou e, em grande parte, por causa da influência do
pensamento socialista. 0 capitalismo atual criou malhas de segurança social
graças aos movimentos sindicais. Pôs em prática políticas sociais e é
acompanhado pelo Estado e pelos sindicatos. Em alguns países, porém, permaneceu
em seu estado selvagem, quase como era no século passado."
O
Papa lembra assim que o capitalismo ultraliberal e selvagem foi mitigado por
leis que regulam o sistema capitalista, dando garantias ao trabalhador, como
férias remuneradas, 13o salário, salário-família,
salário-desemprego. Desta maneira, o Pontífice distingue entre o capitalismo
selvagem ou liberal, cujo único critério é o lucro e a prepotência econômica,
com detrimento do trabalhador e da pessoa humana, e o capitalismo moderado, que
reconhece limites ao lucro ditados pelo respeito ao trabalhador, que deve ser
promovido pelo seu trabalho e não escravizado.
1.4. O Papa e o Terceiro
Mundo
"Compreendo
o que a exploração significa e me coloco inequivocamente do lado dos pobres,
dos deserdados, dos oprimidos, dos marginalizados e dos indefesos. Os poderosos
deste mundo nem sempre encaram favoravelmente um Papa deste tipo. As vezes, até
o desaprovam por causa de sua posição em matéria de princípios morais. Pedem,
por exemplo, autorização para praticar o aborto, medidas anticoncepcionais, o
divórcio — coisas que o Papa não pode conceder porque o encargo que lhe foi confiado
por Deus é o de defender a pessoa humana, em sua dignidade e seus direitos
fundamentais, dos quais o mais importante é o direito á vida.
Hoje
tenho a impressão de que tudo se reduziu simplesmente à dimensão econômica ou
virtualmente a isso. A esta altura, a Igreja e o Papa com seus Bispos se
defrontam com uma grande tarefa e desafios: defender e estimular outras
dimensões e outros valores, muitas vezes esquecidos, é esta
uma mensagem premente, que nem todos estão dispostos a ouvir e, entre os que a
ouvem, nem todos a levam a sério."
1.5. Os Valores
Morais
"O
Leste Europeu amadureceu. . . na luta contra o totalitarismo marxista. . . No
Leste foi preservada uma outra dimensão do espírito humano. Talvez seja este um
dos motivos pelos quais um Papa polonês foi eleito quinze anos atrás. Certos
valores estavam menos depreciados no Leste. Se um homem vive num sistema programaticamente
ateu, mesmo num país como a Polônia, acaba por constatar melhor o que a
religião significa. Acaba ficando ciente daquilo que os do Ocidente nem sempre
percebem. Deus é a origem da dignidade do homem, a extrema, única e absoluta
fonte dela. O homem no Leste estava ciente disto; o prisioneiro nos campos de
concentração estava ciente disto; Soljenitsyn estava ciente disso. No Ocidente
isto não é considerado tão claramente."
1.6. Os Cristãos e a
Política
"Os
cristãos, como cidadãos, podem e devem agir politicamente. Isto significa agir
de modo a dar uma dimensão de sua fé, de suas próprias convicções à vida
social. Por que deveriam eles permanecer à margem ? — E evidente que existem
tendências que visam a encerrar o Cristianismo exclusivamente dentro da esfera
do pessoal e forçar todos os cristãos a permanecer no silêncio."
2. REFLETINDO
Como
se vê, o Papa aponta tanto os males do comunismo, que exagera os valores
coletivos com detrimento da pessoa humana, da sua originalidade e liberdade,
como os males do capitalismo desenfreado ou selvagem, que também conculca o ser
humano em favor do lucro econômico do indivíduo ou do grupo particular.
A
expressão "sementes de verdade (no comunismo)" faz eco á locução
grega usada pelos escritores cristãos dos três primeiros séculos quando se
referiam à cultura pagã: embora a condenassem por seus mitos e seus costumes
libertinos; reconheciam nela "sementes do Verbo (lógoi spermatikoí)"
ou sementes de verdade, que podiam ser cabeça de ponte para a conversão dos
pagãos ao Cristianismo.
O
Papa está longe de aprovar o comunismo como tal; muito ao contrário, condena o
seu materialismo. Reconhece, porém, que o homem, vivendo sob o regime ateu
socialista, pôde perceber melhor a grandeza e o valor da Religião e da Fé em
Deus; o contraste e a luta contra o materialismo puseram em plena evidência
toda a riqueza espiritual da religião. Ao contrário, no Ocidente a falta de
contraste pôde levar a um amolecimento daninho da têmpera religiosa; o
hedonismo, o comodismo, a ambição, a procura do ter mais (em lugar do ser mais)
têm desfibrado o homem ocidental, levando-o à degradação de si mesmo. Não é o
Estado, mas é o indivíduo que se destrói no Ocidente sob o peso de suas paixões
e cobiças (tenha-se em vista o Brasil de nossos dias).
São
estas as observações que a Igreja sabiamente propõe, preconizando a fidelidade
ao Evangelho. Esta põe Deus e os bens espirituais no ápice da escala de valores
e assim é capaz de proporcionar ao homem o domínio necessário para dizer Não ao
imperialismo dos bens materiais, que tanto o socialismo real como o capitalismo
selvagem apregoam para a desgraça da humanidade.
Dom
Estêvão Bettencourt