PERGUNTE
E RESPONDEREMOS 383 – abril 1994
A Descoberta de um
Mundo:
"A
INQUISIÇÃO EM SEU MUNDO"
por João Bernardino Gonzaga
Em
síntese: O Prof. João Bernardino
Gonzaga expõe aos leitores traços típicos do mundo medieval e pós-medieval, em
que funcionou a Inquisição. Evidencia, mediante pesquisa do Direito Penal da
Idade Média, que os procedimentos da Inquisição eram os do Direito Civil da
época, de modo que não causavam estranheza nem aos sábios nem ao povo simples.
Apesar disso, nota-se que a Inquisição, não raro, abrandou a jurisprudência do
seu tempo; soube abrir exceções em favor dos condenados e os seus juízes
tentaram comportar-se com honestidade e retidão de intenções, certos de que os
bens espirituais são mais valiosos do que os materiais e, por isso, merecem
todo o zelo da parte de quem os professa.
As páginas que se seguem, reproduzem trechos do livro do
Prof. J. B. Gonzaga, livro de leitura altamente proveitosa, pois põe em relevo
vários traços da vida medieval e pós-medieval que são desconhecidos do homem
contemporâneo e habilitam a compreender melhor o fenômeno
"Inquisição".
Foi
publicada em sete edições sucessivas (ou dezenas de milhares de exemplares) no
ano de 1993 a obra do Prof. Dr. João Bernardino Gonzaga intitulada "A
Inquisição em seu Mundo" ([1]).
Trata-se de um estudo que não se contenta com o relato de fatos, mas procura
compreendê-los, seguindo uma sábia lei de historiografia: coloquem-se os fatos
pretéritos no seu respectivo contexto.histórico, a fim que o estudioso os possa
entender a partir dos parâmetros dos respectivos protagonistas, em vez de os
julgar a partir de premissas estranhas aos antigos. 0 Prof. João Bernardino
aplicou essa norma ao fenômeno "Inquisição", executando assim uma
tarefa, de certo modo,inédita e altamente benemérita,
pois esclarece enormemente uma fase da história mal entendida por muitos
observadores. Isto não quer dizer que o autor inocente, por completo, os homens
que promoveram a Inquisição, mas significa que o procedimento que causa
estranheza aos observadores de hoje, não a causava aos respectivos atores.
É
de notar que a Inquisição se desenvolveu em três fases sucessivas:
1) A
Inquisição Medieval, do século XII ao século XV, voltada contra os cátaros (que
saqueavam fazendas e aldeias por motivos filosófico-religiosos) e, depois,
contra outros tipos de erros religiosos.
2)
A Inquisição Romana, dirigida contra as
idéias paganizantes e reformadoras dos séculos XVI/XVII.
3)
A Inquisição Espanhola, do século XV ao
século XIX, visava aos judeus e muçulmanos da península ibérica, sob a direção
prepotente dos monarcas espanhóis, que, servindo-se de um instrumento
religioso, queriam unificar a população de Espanha e Portugal.
Percorramos
as principais páginas do livro que põem em foco a mentalidade e a vida d; ;
pessoas que viveram o fenômeno "Inquisição" ou viveram na época da.
Inquisição. — Visto que nos interessamos pelo quadro geral ou a moldura em que
se desenvolveram os fatos, os tópicos seguintes se referirão à vida civil e à
jurisprudência civil dos séculos passados e não diretamente à Inquisição.
1. UNIÃO DE
IGREJA E ESTADO
Logo
na Apresentação do livro, á p. 15, lê-se:
"A
Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico; sempre teve a
participação (e participação de vulto crescente) do poder régio, pois os
assuntos religiosos eram, na Antiguidade e na Idade Média, assuntos de
interesse do Estado; a repressão das heresias (especialmente dos cátaros, que
pilhavam e saqueavam as fazendas) era praticada também pelo braço secular, que
muitas vezes abusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais o
poder régio se ingeria no tribunal da Inquisição, servindo-se da religião para
fins políticos. Dois casos significativos a tal propósito foram: 1) em 1312 a
condenação dos Templários, contra os quais o rei Filipe IV o Belo da França
(1285-1314) moveu a Inquisição, desejoso de possuir os bens da Ordem dos
Templários, quando condenada e abolida; 2) em 1431 a condenação de Joana d'Arc,
a jovem guerreira que incomodava a Coroa da Inglaterra pelo seu zelo cristão e
patriótico.
Aliás,
quanto mais a história avançava, tanto mais absolutistas se tornavam os reis do
Ocidente europeu, de tal modo que não podiam tolerar outra instância judiciária
autônoma (a eclesiástica) ao lado da instância judiciária civil; esta deveria
mais e mais valer-se dos tribunais eclesiásticos para implantar os interesses
dos monarcas. A prepotência começou com Filipe IV o Belo da França e atingiu o
seu auge na Espanha e em Portugal a partir do século XVI; o desejo de unificar
a população da península ibérica, composta de cristãos, judeus e muçulmanos,
levou os reis daqueles dois países a pedir e obter do Papa a instalação da
Inquisição em seus territórios; os soberanos acionavam a Inquisição segundo os
seus propósitos, mediante homens por eles nomeados, provocando sérios conflitos
com a Santa Sé, que mais de uma vez se recusou a reconhecer o procedimento da
Inquisição na península ibérica; aliás, no final da vigência desta Instituição,
já não se dizia Inquisição Eclesiástica, mas sim Inquisição Régia."
2. A JUSTIÇA CRIMINAL COMUM
O
Capítulo 1 do livro põe em foco os princípios que inspiraram a pesquisa do
Prof. João Bernardino:
"As
censuras apresentadas contra a Inquisição giram, invariável e incansavelmente,
em torno das idéias de intolerância, prepotência, crueldade; mas, ao assim
descrevê-la, os críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que
ela viveu. Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida
pelos padrões da atualidade, se torna incompreensível e repulsiva para o
espectador de hoje.
Sucede
porém que esse fenômeno foi produto da sua época, inserido num clima religioso
e em certas condições de vida, submetido â força dos costumes e de toda uma
formação cultural e mental, fatores que forçosamente tiveram de moldar o seu
comportamento. Por isso entendemos indispensável suprir grave lacuna: antes de
examinar a Inquisição, é preciso conhecer de perto o mundo que a envolveu, tão
diferente do nosso. Sobretudo, não nos olvidemos de que o Santo Ofício equivaleu
a uma Justiça Criminal, de sorte que não é possível entendermos o seu
procedimento sem preliminarmente saber como atuava a Justiça Criminal comum, ou
laica, que lhe foi contemporânea e que lhe serviu de modelo. Esta era uma
Justiça assinalada por profundo atraso, com métodos toscos e violentos, mas por
todos encarada com naturalidade, aprovada e defendida pelos mais sábios
juristas de então" (p. 21).
3. REGIME DE
CRISTANDADE
É
importante notar a diferença entre o mundo de hoje e o medieval no tocante à
cosmovisão ou à filosofia de vida: ao passo que em nossos dias se admite o
pluralismo, segundo o qual vivem lado a lado pacificamente cristãos, judeus,
muçulmanos, ocultistas, ateus. . ., na Idade Média tal pluralismo era
inconcebível; quem não fosse cristão fiel, era suspeito de estar possesso do
demônio e infenso à sociedade; daí a motivação própria que levava os medievais
a inquirir os dissidentes da fé crista. — São estas as palavras do Prof. João
Bernardino:
"Na
Europa ocidental, após a queda do Império Romano, a única instituição poderosa
e universal era a Igreja. Ser membro dessa associação era teoricamente voluntário
e praticamente obrigatório. Ser desligado de sua comunhão era castigo tamanho
que, até o século XVI, os próprios reis temiam diante da ameaça de excomunhão.
Da menor das aldeias, com sua igreja paroquial, á maior das cidades, com sua
catedral, suas numerosas igrejas, seus mosteiros e santuários, a Igreja estava
visivelmente presente em todas as comunidades: suas torres eram o primeiro
objeto que o viajante divisava no horizonte e sua cruz era o último símbolo
levantado diante dos olhos do agonizante.
"Numa
cultura assinalada por espantosas diversidades de dialeto, direito, culinária,
pesos e medidas, cunhagem, a Igreja oferecia uma morada comum, na verdade um
abrigo universal: o mesmo credo, os mesmos ofícios, as mesmas missas,
realizadas com os mesmos gestos, na mesma ordem, para o mesmo fim, de um a
outro extremo da Europa. Nunca a rigorosa uniformidade romana serviu melhor à
humanidade que durante esse período. Nos ofícios mais importantes da vida, até
a menor das aldeias achava-se no plano de uma metrópole. A Igreja Universal
dava a todas as comunidades, pequenas e grandes, um propósito comum"
(Lewis Mumford, op.
cit., págs. 290-1).
Torna-se
difícil, se não impossível, para o homem de hoje sentir em seu coração o que se
passava naqueles tempos. . . O mundo terreno possui demasiados atrativos, as
pessoas vivem ocupadas demais, a preocupação econômica tende a tudo dominar. A
intensa propaganda consumista leva à ânsia de prazeres e de bens materiais,
antepondo-se à imagem do sobrenatural.
Antes,
ao inverso, a simplicidade da vida, a tenaz pregação catequista feita pela
Igreja, as idéias de Deus, da morte, de céu e de inferno sempre presentes, tudo
isso envolvia o indivíduo numa atmosfera de forte religiosidade. A Igreja se
revelava por toda parte, com sua pompa, com seus solenes
ritos litúrgicos, com procissões, festas, penitências, peregrinações. Junto ao
povo estavam bispos, padres, freiras, monges, frades, pequenos curas de aldeia,
ocupando-se das escolas, das universidades, dos hospitais, dos asilos. Os
estabelecimentos religiosos em geral constituíam o repositório da cultura e das
artes, pintura, escultura, arquitetura, música. A inteira existência dos homens
era ritmada pelo calendário cristão, cada dia com o seu santo; pelos ritos
religiosos; pelos sinos que repicavam, desde o amanhecer até a hora da Ave
Maria" (pp. 59s).
"Era
incomum, quase inconcebível, na época, uma sociedade religiosamente pluralista,
cada grupo com sua crença, seus templos e seus cultos, todos convivendo
harmonicamente em.clima de liberdade e mútuo respeito. Isso só se tornou
realmente viável há muito pouco tempo, na História da humanidade" (p. 61).
4. DEFESA DA
SOCIEDADE
Os tribunais costumavam julgar com rigor as
pessoas acusadas; os procedimentos aplicados aos réus ou aos pretensos réus
eram duros e severos. Para explicá-lo, nota o prof. J. B. Gonzaga:
"A proliferação de crimes constituía
verdadeira calamidade. Não havia nenhuma segurança nos campos, nas estradas,
nas cidades. Tudo se achava infestado por legiões de assaltantes, muitas vezes
organizados em bandos de assassinos, de ladrões, trapaceiros, prostitutas,
mendigos, etc. As crises periódicas por que passava a agricultura, despejavam
nas cidades multidões de desempregados e de miseráveis. As freqüentes guerras
produziam populações errantes; a soldadesca de mercenários, nos intervalos
entre os combates, não tendo o que fazer, se entregava a assaltos e a
pilhagens.
Escusa
enfim desdobrar todo o triste panorama, que facilmente imaginamos, daqueles
tempos confusos. Concomitantemente, inexistia qualquer política social eficaz.
Coube então à Justiça Penal a tarefa de suprir essa falha, contendo os insatisfeitos
e ordenando a sociedade; o que ela fez através do terror.
Dispõe
o Estado hoje de certos recursos que o ajudam no trabalho de proteção social
contra a delinqüência.
A
moderna Criminologia desvenda as forças criminógenas e indica os meios de enfrentá-las.
Integram-na a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia e Psiquiatria criminais.
.. Todos os países possuem uma Polícia formada
por profissionais especializados no combate à criminalidade. As cidades são bem
organizadas, as ruas possuem nomes, as casas têm números. . .
Consequentemente,
espera-se hoje que a possibilidade mais fácil de serem descobertos e punidos
contenha muitos delinqüentes potenciais, de sorte que as penas podem ser mais
brandas, isto é, podem ser adequadas, com justiça, à gravidade de cada
infração.
Sucede,
porém, que todas as mencionadas ciências e técnicas que auxiliam no combate à
criminalidade são recentíssimas, começaram a surgir há pouco mais de um século.
Antes, se não houvesse prisão em flagrante, as autoridades ficavam diante de
imensa dificuldade para descobrir e prender os autores dos crimes" (pp.
48s).
5. CONDIÇÕES DE
VIDA DAS POPULAÇÕES
Os
métodos judiciais da Idade Média eram rudes. "Isto só pode ter existido e
ter sido absorvido pela sociedade, porque as pessoas, no seu dia-a-dia, levavam
vida extremamente dura" (p. 51). Continua o Prof. Gonzaga:
"Estudando
a típica cidade européia ao término da era feudal, observa Max Savelle que,
para sua defesa, ela era sempre rodeada de muralhas. 'Como as muralhas fixavam
limites ao crescimento exterior da cidade, os edifícios no seu interior se
amontoavam uns sobre os outros. Por ser difícil o espaço, as ruas eram
estreitas. Muitas vezes a lei determinava que uma rua devia ser bastante larga
para permitir que uma pessoa andasse a cavalo no seu centro, levando uma lança
atravessada na extensão da largura. Isso estava longe de ser uma medida
generosa, mas os construtores se empoleiravam mesmo sobre essa estreita
dimensão, fazendo com que os andares superiores de suas casas se projetassem
sobre a rua. E, como as casas normalmente se erguiam à altura de quatro ou
cinco andares, isto redundava em que o sol escassamente chegava a alcançar o
leito do logradouro' (Max Savelle, História da Civilização Mundial, vol. 2, p.
207).
Com
o progressivo desenvolvimento urbano, daí por diante as condições se foram
tornando crescentemente piores. Ruas sombrias e imundas, com os esgotos
correndo a céu aberto. Nelas, os moradores das casas jogavam seus dejetos, o
lixo, as sobras da cozinha, formando-se uma massa de podridão, revolvida pelos
cães, gatos, porcos e ratos que infestavam a cidade. O mau cheiro se espalhava
por toda parte; as enfermidades endêmicas e epidêmicas tinham livre curso,
varrendo famílias inteiras" (p. 51).
6. A
MEDICINA
A
dureza de vida, derivada de precárias condições arquitetônicas, era aumentada
pelo caráter rudimentar da Medicina da época. Eis o que observa o Prof. J. B.
Gonzaga:
"Ficamos
perplexos ao imaginar hoje a cena de um magistrado daquelas épocas.. homem
supostamente culto e sensível, ordenando e presenciando a tortura do acusado
que se acha à sua mercê. Sucede entretanto que esse juiz, por hipótese, na
véspera daquele dia vira sua filha, menina ainda e inocente, ter uma perna
esmagada e por isso amputada, sem anestesia, pelo cirurgião-barbeiro. Ou, mais
prosaicamente, ele próprio tivera de sofrer, a frio, a extração de um dente
molar infeccionado. Por que, então, se iria compadecer diante de um criminoso
que presumivelmente merecia a tortura?
A
arte de curar cabia aos médicos, chamados "físicos", que haviam para
isso freqüentado cursos regulares. Abaixo deles situavam-se os
"cirurgiões-barbeiros", homens que, com a prática, haviam adquirido
aptidão para realizar alguns atos cirúrgicos: amputação de membros, ressecção,
desarticulação, redução de fraturas, lancetamento de abscessos e tumores, etc.,
inclusive, às vezes, sutura de órgãos internos rompidos. As guerras, gerando
legiões de estropiados, foram grandes fornecedoras de trabalho para esses
profissionais.
A
anestesia e as regras de assepsia somente viram a difundir-se na segunda metade
do século XIX. Antes, operava-se 'a frio', sendo muito eventuais e precários os
recursos anestésicos. O paciente era amarrado e contido pelos auxiliares do
cirurgião e este devia possuir rija têmpera e coração duro para intervir ao som
de lancinantes gritos de dor. Nenhum cuidado de higiene era tomado: o operador
atuava vestido com suas roupas normais e sequer lavava as mãos e os
instrumentos utilizados. Findo o ato, a ferida era coberta com óleo fervente,
para deter a hemorragia e evitar a infecção; a qual, todavia, sobrevinha quase
invariavelmente. Em conseqüência, a porcentagem de óbitos era muito
elevada" (pp. 55s).
7. A TORTURA
A
tortura era um processo aplicado pela Justiça civil medieval, de acordo com o
costume de legislações muito antigas:
"Parece
que, em maior ou menor grau, essa violência foi utilizada por todos os povos da
Antiguidade. O texto mais velho que dela nos dá notícia acha-se em fragmento
egípcio relativo a um caso de profanadores de túmulos, no qual aparece
consignado que 'se procedeu às correspondentes averiguações, enquanto os
suspeitos eram golpeados com bastões nos pés e nas mãos'.
Dir-se-á
que a tortura talvez constitua eterna fatalidade do gênero humano e que
prossegue hoje existindo. Sim, é exato, basta lembrar o que ocorreu nos regimes
totalitários da Alemanha nazista, da Itália fascista, da Rússia comunista. Os
franceses supliciaram prisioneiros na guerra de libertação da Argélia. Os
agentes policiais, mesmo em países civilizados, continuam utilizando tal
recurso, e célebre ficou, nesse sentido, o Third degree da polícia
norte-americana.
Sucede
todavia que hoje a tortura só se pratica clandestinamente, com repulsa do
Direito e da opinião pública. As leis modernas a qualificam como crime,
ameaçando com severíssimas penas seus autores. Mesmo quando adotada por
governos autoritários, ela se faz oficiosamente, às ocultas, e tem a sua
existência negada.
Nos
séculos passados, ao contrário, os suplícios foram pacificamente aceitos, como
recurso normal da Justiça, e regulamentados pelo legislador. Na Espanha, em
meados do século XIII, Afonso X, o Sábio, tranqüilizava seus súditos explicando
no Código das Sete Partidas que a tortura se justificava porque fora adotada
pelos sábios antigos (ou seja, pelos juristas romanos). Part. VII, tít. 30, De
Los Tormentos: 'Porende tenieron por bien los sábios antiguos que fizieron
tormentar a los ornes, por que pudiessen saber la verdad ende dellos'.
Na
Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal, por toda parte torturavam-se
normalmente os acusados e, às vezes, também as testemunhas não merecedoras de
fé. Em França, as Ordenações de 1254 e todas as subseqüentes adotaram
oficialmente a questão, ou interrogatório com tormentos" (p. 32).
Acrescente-se
o seguinte traço muito importante:
"Os
historiadores estão de inteiro acordo sobre o fato de que o povo em geral, de
todas as classes sociais, aceitava pacificamente os rigores do sistema
repressivo, encarando-os com absoluta naturalidade, como algo normal e
necessário.
Os
grandes juristas da época, homens respeitados pelo saber e prudência,
estruturaram e defenderam a inquisitio, com suas denúncias anônimas,
seus processos secretos, o sistema das provas legais, a tortura. Tudo isso foi
aprovado pelos Mestres Bartolo e Baldo, no século XIV; por Angelus de Aretio,
no século XV; no século XVI, por Hippolytus de Marsiliis, Julius Clarus,
Farinacius, Menochius, na ltália, Carpzov e Schwarzenberg na Alemanha"
(p.47).
8. A INQUISIÇÃO
NO SEU CONTEXTO
O
quadro geral até aqui descrito elucida, de certo modo, a mentalidade e os
costumes dos homens que viveram a Inquisição, seja como juízes, seja como réus.
A Inquisição teve seu surto em tal ambiente. Não é nosso propósito, neste artigo,
descrever as origens e os procedimentos específicos da Inquisição, pois isto
foi feito em PR 220/1978, pp. 152-155; 240/1979, p. 529 e no nosso Curso de
História da Igreja por Correspondência, Módulos 32 e 33.
Importa,
porém, destacar as ponderações do Prof. João Bernardino:
"A
Inquisição equiparou-se a uma Justiça Penal, de sorte que naturalmente adotou
os modelos que vigiam nos tribunais laicos. Eram métodos processuais que
mereciam total beneplácito dos mais renomados juristas e que estavam de acordo
com os costumes. Os homens que compunham a Igreja eram homens daquele tempo e
não podiam deixar de submeter-se às suas influências. . .
O
procedimento dos tribunais inquisitoriais é, para a mentalidade atual,
inaceitável; mas, apesar disso, representou um abrandamento perante o que se
passava nos seus congêneres do Estado. Não podemos julgar o que eles fizeram
sem os focalizar como órgãos condizentes com certo teor de vida, investidos de
uma missão sobrenatural e cristã a cumprir, que se ocupavam de crimes, a seus
olhos, gravíssimos, e que terão agido, em regra, com zelo, equilíbrio e
honestidade. Mister se faz acautelar-nos contra aqueles que, no afã de denegrir
a Igreja Católica, procuram criar escândalos, só descrevem as exceções e não as
regras, os abusos e não os usos. A se crer nesses detratores da Inquisição,
todo o mal estaria com os seus juízes, todo o bem com os seus réus" (pp.
119s).
Mais
adiante ainda escreve o autor:
"Um
aspecto a destacar é que, mesmo quando as regras penais da Igreja tendiam para
o rigor, este, na prática, costumava ser com freqüência mitigado.
Mostra-o
muito bem, comprovadamente, Jean Giraud (1). "As penas da Inquisição eram
freqüentemente atenuadas ou até apagadas. Não se deve crer, por exemplo, que
todo herege que figura nos Registros como condenado ao 'muro perpétuo' haja
permanecido na prisão o resto dos seus dias. Mesmo os mais severos
Inquisidores, como Bernardo de Caux, seguiram tal orientação. Em 1246, esse
juiz condenou à prisão perpétua um herege relapso, mas na própria sentença
acrescentou que, sendo o pai do culpado bom católico, velho e doente, seu filho
podia permanecer junto a ele, enquanto vivo fosse, para lhe prestar cuidados.
Quando os detentos caiam doentes, obtinham permissão para se ir tratar fora da prisão
ou junto às suas famílias. Freqüentemente também os inquisidores concediam
atenuações e comutações de pena; por exemplo, a prisão era substituída por uma
multa, ou uma peregrinação, etc. Essa pena flexível decorria forçosamente do
caráter medicinal que lhe atribuía a Igreja" (p. 136).
1 Jean Guiraud, Inquisition, no Dictionnaire
Apologétique de la foi Catholoque, sob
a direção de A. D'Alès, tomo II, cols. 878s
CONCLUSÃO
O
livro do Prof. J. B. Gonzaga é sério e imparcial. Descreve a rudez de vida dos
medievais e pós-medievais, que esclarece o fenômeno "Inquisição".
Não
poderíamos, porém, encerrar esta resenha sem registrar que, apesar de tudo, a
vida dos medievais tinha sua alegria, seus cantos, suas danças, suas festas com
espetáculos, sua poesia. "Por toda parte floresceram as artes, a pintura,
a escultura, a arquitetura, a música, a literatura, o teatro" (p. 56).
A
obra do Prof. João Bernardino Gonzaga merece a gratidão dos estudiosos,
interessados em ultrapassar as noções e julgamentos superficiais.