EPÍSTOLA DE SÃO PAULO AOS HEBREUS
Entre as catorze cartas do epistolado paulino, a que se
costuma intitular “aos hebreus” é a mais singular de todas. Falta-lhe o
habitual cabeçalho "Paulo apóstolo etc."; tem assunto e tom de carta
somente no último capítulo (13), no qual o remetente fala de si próprio em primeira pessoa,
mas sem mencionar nome algum (v. 22; cf. 2Tes
3,17; 1Cor 16,21; Fim 19). No
restante, ora apresenta desenvolvimento dialético de um tratado, ora o estilo
oratório de uma homilia; usa, ademais, uma linguagem e um estilo todo próprio,
o mais aproximado do grego clássico, entre os escritores do Novo Testamento.
Também na tradição esta Carta seguiu um roteiro todo
particular. Como nenhuma outra, possui a mais antiga atestação, que vem do
século I e se encontra na Carta de S. Clemente Romano aos coríntios, não porém
mediante citações expressas ou menção do nome do autor, mas por identidade de
pensamento ou através de frases extraídas sem modificação nenhuma, às vezes
misturadas com outras da Bíblia, e sem qualquer distinção. Ela é admitida pelos
mais antigos escritores da escola alexandrina entre os escritos inspirados no
Novo Testamento, mas no que concerne ao autor, manifestam-se dúvidas e
flutuações. Julga-se que tenha sido concebida por S. Paulo, mas redigida por
outro, como, por exemplo, S. Lucas, ou até mesmo o já citado Clemente Romano;
ou ainda que, escrita por S. Paulo em hebraico (ou aramaico), haja sido depois
traduzida por um especialista grego (Eusébio, História
Eclesiástica, III, 38; VI, 14,25).
Orígenes, o maior escritor sobre a
Bíblia, da idade antiga, depois de expor os vários elementos e juízos sobre a
questão, concluiu: "para expressar o meu parecer, diria que os pensamentos
são do Apóstolo [Paulo], mas... quem
a redigiu, só Deus o sabe" (Apud Eusébio no último lugar citado).
Há muitas outras sombras na Igreja latina. Dir-se-ia que
depois do citado Clemente Romano a presente epístola caiu no esquecimento. O
cânon de Muratori e Vitorino de Petau (+304) fazem o elenco das epístolas de são Paulo, silenciando sobre
essa aos hebreus e observam que são apenas sete as que o Apóstolo dirige às
igrejas inteiras (não a pessoas particulares), e assim, implicitamente,
excluem-na dos Livros Sagrados. Santo Irineu, Bispo de Lião, e S. Cipriano, de
Cartago, jamais a citam em seus escritos. Tertuliano (séc. III) e Gregório de
Elvira (séc. IV, fim) conhecem-na e citam-na com o nome de S. Barnabé.
Finalmente, S. Jerônimo, ainda no séc. V, escreve que "o costume dos
latinos não admite a Epístola aos hebreus entre as canônicas" (Carta, 129,3;
Com. a Is 6,2).
Todavia, entre os gregos chegou-se logo à unanimidade em
considerar a Epístola aos hebreus como escrito canônico e de S. Paulo, e, por
influência dos Padres gregos, também os latinos, na segunda metade do século IV
e na primeira do V, convieram, bem como os sírios e outros orientais, na mesma
opinião. As vicissitudes transcorridas, porém, e a natureza do assunto
apresentam ainda aos modernos várias questões, das quais falaremos depois de
termos tomado conhecimento geral da epístola, na seguinte exposição esquemática
de sua finalidade, argumento e divisão.
A Epístola aos hebreus é definida pelo seu próprio autor
como "um discurso de exortação" (13,22).
Exortar os seus destinatários a
perseverarem firmemente na fé cristã, a não se deixarem vencer pela tentação de
regressarem à fé do judaísmo incrédulo de que haviam saído; confortá-los nas
dificuldades que deviam enfrentar e nas vexações que suportavam da parte de
seus antigos correligionários; encorajá-los na luta pela aquisição dos bens que
Jesus Cristo prometeu aos fiéis: tal é a finalidade que se propõe o remetente e
que estabelece o argumento de seu escrito.
A fim de conseguir o escopo que se propôs, o autor apresenta
aos leitores, na parte mais ampla e substancial da epístola (1,1-10.18),
um único tema, grandioso: a
excelência da religião cristã sobre a judaica. Demonstra-a em três pontos: o
fundador, o sacerdócio, o rito sacrificai, isto é, a pessoa de Jesus Cristo, a sua
dignidade sacerdotal, o seu sacerdócio.
Dessa demonstração, ou em conexão com ela, inferem-se, na
segunda partem (10,19-12,28), vários motivos complementares de perseverança na fé cristã.
O último capítulo (13) contém recomendações de caráter particular.
A doutrina dessa carta, como se vê, é cristocêntrica, isto
é, gravita em torno da pessoa de Jesus Cristo e dela se irradia. Está, além
disso, totalmente fundada no Antigo Testamento, interpretado à luz da revelação
cristã. Tem muita analogia com a doutrina de S. Paulo. O leitor atento notará
aí a ocorrência freqüente de idéias, muitas vezes mesmo de expressões, já
encontradas nas epístolas precedentes do Apóstolo. Mas não lhe passarão
despercebidas também diferenças de relevo ou quanto ao modo de apresentar as
mesmas idéias.
Por exemplo, na presente epístola (cc.
1-2) os espíritos inferiores a
Jesus não têm senão um nome, um mesmo grau: "os anjos". S. Paulo
distingue os principados, as potestades, as dominações, os tronos (Col
1,16; Ef 1,21). Para S. Paulo a
"ressurreição" ou o "ressuscitar" de Jesus ocupa o primeiro
lugar em freqüência e em importância na economia da salvação. Em Hebreus é
mencionada uma única vez com um vocábulo diferente (13,20).
Especial nessa epístola é, entre todos os escritos
neotestamentários, a figura dominante de Jesus sacerdote e vítima (4,14-10,18),
tema central, amplamente
desenvolvido. As outras epístolas paulinas possuem a • esse respeito apenas
duas lacônicas frases: "Cristo ê o cordeiro pascal imolado por nós" (1Cor
5,7) e "se entregou a si
mesmo por nós a Deus, como oferenda e hóstia de suave odor" (Ef
5,2), e nem sequer uma vez traz
a palavra "sacerdote" e "sacerdócio". Mais próxima da
concepção de Hebr 9,11-12,24 é a visão do cordeiro de pé no céu "como imolado",
em Apoc 5,6-13.
Do que vimos expondo a respeito dessa epístola surgem quatro
questões: 1? Ê inspirada e parte integrante da Sagrada Escritura?
(canonicidade). — 2? Quem é seu autor? (autenticidade). — 3-
Quem são os "hebreus" aos
quais ele se dirige? (destinatários). — 4? Quando foi escrita? (data).
1.
Quanto à canonicidade ou inspiração
da epístola, nenhuma dúvida podia subsistir depois do reconhecimento unânime
que alcançou em tempo relativamente breve na antiga Igreja. Em todo o caso, foi ela solenemente ratificada pelo sagrado
Concílio de Trento (sessão IV, decreto de 8
de abril de 1546),
que coloca nominalmente "ad
Hebraeos" entre as "Escrituras canônicas" do Novo Testamento.
2. No que concerne ao autor, a atribuição constante a S.
Paulo na tradição oriental e o exame interno da própria epístola dão-nos a certeza
de que de algum modo ela promana do Apóstolo, e neste sentido o Tridentino
coloca-a, como última, entre as "14 epístolas de Paulo Apóstolo". Com isso, porém, não se
diz que ela deva ser considerada "não só concebida e inspirada, mas também
redigida por S. Paulo na forma que chegou até nós". Assim sentenciou a
Pontifícia Comissão Bíblica na Resposta de 24
de junho de 1914,
no III. Pode-se, pois,
atribuir a redação dela a algum dos colaboradores de Paulo no apostolado.
3.
Os destinatários eram cristãos oriundos
do judaísmo, pois a carta, inteiramente impregnada de citações e de alusões aos
Livros Sagrados do Antigo Testamento, supõe que eles tenham um perfeito
conhecimento do mesmo, como não podiam ter os fiéis convertidos do gentilismo.
Pelas alusões que o autor faz ao passado deles (2,3-4;6,9-10;32-34),
infere-se que esses cristãos haviam
pertencido à primitiva comunidade de Jerusalém. Todavia, a língua em que a epístola
foi redigida leva-nos longe de uma região como a Judéia, na qual falava-se o
aramaico (At 21,40). Provavelmente eram aqueles judeu-cristãos que por causa da
perseguição movida à Igreja nascente (At 8,1) de Jerusalém, emigraram "até a Fenícia, Chipre e
Antioquia" (ibid., 11,19), estabelecendo-se nalgumas cidades helenísticas da costa mediterrânea.
4. A epístola foi escrita quando existia ainda o templo de
Jerusalém e aí se celebravam regularmente os ritos que a lei mosaica prescrevia
(9,6-10), pois
não apresenta indício algum a respeito da destruição que lhe foi infligida por
Tito e a cessação conseqüente de todo o sacrifício, a não ser um vago
pressentimento de que estaria próxima a acontecer (10,25).
Foi, portanto, composta antes do ano 70.