PERGUNTE E
RESPONDEREMOS 506 – agosto 2004
Como fonte de fé:
A AUTORIDADE DA ESCRITURA
Em síntese: Deus se revelou aos homens
mediante a palavra oral. Esta foi redigida por escrito através dos autores
sagrados, que não tencionaram fazer súmulas doutrinárias. Donde se vê que, para
entender adequadamente a Palavra de Deus escrita, é necessário o recurso à
Palavra oral ou Tradição, cujo porta-voz credenciado é o magistério da Igreja.
É isto que Alessandro Ricardo Lima quer dizer num e-mail enviado a PR.
Foi enviado a PR por correio
eletrônico um artigo do sr. Alessandro Ricardo Lima sobre o princípio luterano
"Somente a Escritura". Está claro que a Palavra de Deus é dotada da
máxima autoridade, mas será suficiente atender unicamente à sua forma escrita
sem levar em conta a Tradição (Transmissão) oral? - A esta questão vão
dedicadas as ponderações seguintes da autoria do Sr. Lima.
O PROBLEMA DA AUTORIDADE NA SOLA SCRIPTURA
A Reforma Protestante iniciada
pelo frade agostiniano Martinho Lutero instituiu no cristianismo o princípio da
Sola
Scriptura (Somente
a Escritura). Segundo este princípio, a Igreja deve ter como doutrina somente o
que esteja fundamentado na Escritura.
É injusto dizer que Lutero tenha
inventado a Sola
Scriptura, estudos
mostram que antes de Lutero outros teólogos já defendiam tal princípio, como é
o caso de John Wicliff.
Este pilar da doutrina
protestante apresenta vários problemas de sustentação, o que tem resultado na
divisão do protestantismo em cada vez mais seitas com doutrinas cada vez mais
divergentes. Este artigo vem tratar especificamente de um destes problemas que
é o problema da Autoridade.
Até o séc. XVI (quando surgiu
a Reforma) comumente se cria que a Igreja Católica possuía autoridade para
definir questões de moral e fé. A Igreja era tida como Mãe e Mestra dos
cristãos. Lutero vem no caminho contrário exatamente questionando esta
autoridade. Para ele somente a Sagrada Escritura é autoridade em questões de fé
e moral para o cristão. Basicamente a doutrina Luterana da Sola Scriptura é composta pelos seguintes
princípios:
- Somente a Escritura deve ser
usada como fundamento da Fé cristã;
- Somente a Escritura é a autoridade
única e última para o cristão.
Embora o primeiro princípio
tenha deixado lacunas enormes quanto ao que é a Palavra de Deus no Protestantismo,
o segundo princípio é a fonte das contínuas divisões no protestantismo.
Toda Lei possui a sua
autoridade, pois foi criada para ser respeitada e tem como objetivo algum bem
comum. Tal é o caso das Constituições Nacionais, das lei de trânsito, das leis
penais etc. No entanto toda lei (em qualquer lugar que seja) necessita de uma
autoridade que a interprete e a faça cumprir. Na verdade toda Lei, por mais
autoridade que possua, não possui autoridade sozinha, depende de uma outra
autoridade para que os benefícios que foram objetos da Lei sejam alcançados.
Por exemplo: como se resolveriam os casos penais sem a autoridade dos Juízes
que analisam os casos, interpretam a Lei e dizem quem está certo e quem está
errado? Provavelmente estes casos não se resolveriam nunca, pois as partes
envolvidas dariam a interpretação da Lei segundo o seu entendimento.
Para exemplificar melhor,
imaginem uma batida no trânsito entre um carro e uma moto em um cruzamento. Sem
a autoridade competente que vai avaliar a quem está correto e quem está errado,
provavelmente cada um dos motoristas pegaria seu código de trânsito e começaria
a dizer que ele está certo e o outro errado, baseado no artigo "tal e
tal". Onde chegaríamos se o mundo funcionasse desta forma? Em lugar algum,
claro... Viveríamos num verdadeiro faroeste, com cada um aplicando o seu
entendimento da Lei vigente, porque não existiria autoridade que tivesse o
poder de "ligar ou desligar" (cf. Mt 16, 18-19).
É exatamente este problema que
o Protestantismo vive. Como não existe uma autoridade que interprete
oficialmente a Escritura, cada confissão protestante interpreta a Escritura
conforme entende (ou convém) e a unidade doutrinária que é uma característica
da verdadeira fé Cristã (cf. Ef 4, 5) torna-se algo impossível. É claro que
todo cristão deve ter acesso à Escritura e pode lê-la; no entanto, sem um
Magistério Oficial, é impossível chegar à unidade em questões de moral e fé.
O sr. Krogh Tonning - famoso
teólogo protestante norueguês, convertido ao catolicismo, no século passado já
afirmava: "Quem trará à nossa presença uma comunidade protestante que
esteja, de acordo sobre um corpo de doutrina bem determinado? Portanto uma
confusão é a regra mesmo dentre as matérias mais essenciais" (Le protest. Contemp.,
Ruine constitutionelle, p. 43 In I.R.C., França, L, pg 255. 7- ed., 1953).
Curiosamente o Protestantismo,
qüe se diz herdeiro da verdadeira fé primitiva, repudia a autoridade do
Magistério da Igreja Católica, que é a autoridade de que a Igreja Antiga se
servia para chegar à unidade da fé. A realização dos inúmeros Concílios
Regionais e Gerais (ou Ecumênicos) é a prova desta realidade; inclusive a
palavra "Concílio" vem de "conciliar": aplicada à realidade
da Igreja Antiga, era a reunião dos Bispos do mundo inteiro que tinha o objetivo
de acabar com a dúvida e alcançar a unidade doutrinária.
Felizmente o Pai da Sola Scriptura viveu o bastante para testemunhar
e confessar os malefícios de sua doutrina: "Este não quer o batismo,
aquele nega os sacramentos; há quem admita outro mundo entre este e o juízo
final, quem ensine que Cristo não é Deus; uns dizem isto, outros aquilo, em
breve serão tantas as seitas e tantas as religiões quantas são as cabeças"(Luthers M. In. Weimar, XVIII,
547; De Wett III, 61).
Martinho Lutero percebeu que a
autoridade da Sagrada Escritura não se poderia confundir com a autoridade de um
Magistério Oficial que a interprete. Os anos que se passaram após a instituição
da Reforma Protestante testificam bem que Lutero, ao atacar a autoridade da Igreja
como Mãe e Mestra de todos os cristãos, abalou grandemente os fundamentos
doutrinários do Cristianismo. Ora, se abalamos o fundamento de uma casa,
acabamos por comprometer toda a sua estrutura. Não é à toa que São Paulo afirma
que "a Igreja é a Coluna e o Fundamento da Verdade" (1Tm 3, 15).
Lutero, que fez germinar no
Cristianismo a semente da Sola Scriptura, também deixou para a posteridade a solução do problema
que causara: "Se
o mundo durar mais tempo, será necessário receber de novo os decretos dos
concílios (católicos) a fim de conservar a unidade da fé contra as diversas
interpretações da Escritura que por aí correm" (Carta de Lutero a Zwingli In
Bougard, Le Christianisme et les temps présents, tomo IV (7), p. 289).
A conclusão de Lutero ecoa até
hoje. Infelizmente continuamos constatando que a grande maioria dos
protestantes permanece dormindo com um barulho desses...
Até aqui o Sr. Lima.
REFLETINDO...
A palavra é um dos meios mais
espontâneos de comunicação. Ela fala não somente pelos sons emitidos, mas
também pela entoação da voz. A palavra proferida oralmente é a palavra viva. A
escritura é um sucedâneo, que ajuda a memória, mas carece do dinamismo da
palavra oral; ela não se interpreta nem se explica ao leitor de modo que o
mesmo conjunto de sílabas escritas pode ser entendido em dois sentidos contraditórios
entre si. Tenha-se em vista a seqüência:
RESSUSCITOU NÃO ESTÁ AQUI
Como entender este conjunto?
Somente a entoação de voz o
dirá. Pode-se ler:
RESSUSCITOU. NÃO ESTÁ AQUI!
Como se pode também ler:
RESSUSCITOU? NÃO! ESTÁ AQUI.
Apliquemos estas observações à
Palavra de Deus (que se quis encanar na linguagem humana). Deus falou aos
homens, antes do mais, por via oral. Essa palavra oral foi redigida por escrito
sem que os autores sagrados tivessem a intenção de fazer súmulas completas da
pregação oral; ver Jo 20, 30s; 21, 24. Disto se segue, por razões especialmente
claras, a necessidade de auscultar a palavra viva de Deus, que constitui a
chamada "Tradição oral" e da qual é porta-voz credenciado o magistério
da Igreja (ver Mt 18, 18; 28, 20).
Sem o recurso à Palavra oral
viva na Igreja, a que Cristo assiste, existe o risco do subjetivismo ou das
interpretações pessoais que vão esvaziando e deteriorando a mensagem divina,
como ensina, com evidência crescente, a história de nossos tempos.
Dom Estêvão Bettencourt