A
tirania da liberdade
Elton Flaubert (08/09/2016)
Fonte: Revista Amalgama
No
contexto de imanentização da escatologia nascem os “ismos”, como
republicanismo, liberalismo, socialismo, conservadorismo etc.
“O
desejo insaciável de liberdade, acompanhado do descuido das demais coisas, é
(…) o que predispõe à tirania”. Platão, República, Livro VIII
“A
ordem da história emerge da história da ordem”. Eric Voegelin, Ordem e
História, vol. I
“Essa é
a estratégia do diabo para nos pegar. Ele sempre envia ao mundo erros aos pares
– pares de opostos. E sempre nos estimula a desperdiçar um tempo precioso na
tentativa de adivinhar qual deles é o pior. Sabe por quê? Ele usa o fato de
você abominar um deles para levá-lo aos poucos a cair no extremo oposto”. C.S.
Lewis, Cristianismo Puro e simples.
Esse
ensaio faz parte de uma série que poderia EU intitular de: o fim entre nós.
Desde longe e sempre mais. O fim é o que confere sentido aos dramas humanos no
tempo e o que desvela a verdade simbólica de nossa natureza diante do que nos
transcende. São ensaios que servem para uma tese geral que pretendo apresentar
de maneira mais delongada num livro. O primeiro texto da série foi Girard Apocalíptico.
Em 451
d.C., o Império Romano comandado por Flávio Aécio aliou-se com o Reino Visigodo
de Teodorico I (um cristão ariano) e outros povos (como francos, saxões e
bretões), para conter Átila e sua tropa de hunos, ostrogodos, alamanos, citas e
demais sedentos por honras e riquezas, que invadiam a Gália vindos da Europa
oriental. Foi a primeira guerra pela ideia ainda insuficiente de Cristandade.
Demorou quase todo o primeiro milênio para o coração da Europa tornar-se
cristão.
Nos
primeiros séculos, o crescimento do cristianismo nos arredores do Império
desestabilizava a mentalidade romana, que tinha sua cosmovisão fundada na
relação de troca entre as divindades e os homens. Não só as glórias e riquezas
das conquistas militares, mas também os espetáculos e as festividades, com a
valorização do prazer e do hedonismo, começaram a ser vistos de outra maneira,
em especial, pela plebe e pelos povos conquistados (não raros tidos como
bárbaros) que foram sendo assimilados.
Assim,
o cristianismo dos primeiros séculos é uma transgressão profunda do tipo de
ordem constituída pela religião pagã. Primeiro, sendo perseguidos, e depois
tendo que enfrentar dezenas de guerras por seus territórios, os cristãos
daquela época tinham a clareza das ambiguidades dessa vida. Entre o medo e a
bravura, o sentido dessa vida estava na outra.
A era
dos mártires derrota o paganismo e sua máquina sacrificial de criar mitos. No
século IV d.C., a intolerância contra os cristãos tinha arrefecido. As divisões
e a falta de organização interna que geravam equívocos e ameaçava a própria
unidade do credo cristão, levou a convocação do Primeiro Concílio de Nicéia
pelo imperador Constantino. Era uma época de “anarquia de sentido”, com muitos
bárbaros se convertendo, porém, identificados com os ensinamentos arianos[1].
Em breve, com Teodósio I, o cristianismo tornava-se a religião oficial do
Império, coroando três séculos de profundas transformações do espírito e, logo,
das mentalidades.
As
migrações bárbaras do século V e suas batalhas por território tinham
inviabilizado as rotas comerciais no Mar Mediterrâneo. Essas disputas foram
prosseguidas nos próximos séculos (na chamada Alta Idade Média), principalmente
entre o século VIII e X, com as invasões dos muçulmanos pela região ibérica, o
ataque dos vikings no norte da Europa, e a invasão dos magiares no centro da
Europa.
Esses
momentos de insegurança ocasionaram transformações econômicas, sociais e
espirituais. Os ataques às cidades, as pilhagens, a fome, e o recrudescimento
do comércio, da produção e das comunicações, levaram ao êxodo rural.
Paralelamente, o poder foi pulverizado e difundido pelas famílias nobres dos
diferentes povos. As alianças – a partir das relações de suserania e vassalagem
– criavam uma rede de trocas de lealdade. Essas características levam ao que
chamamos de feudalismo (em especial, na Europa ocidental). Os servos tinham
direito ao cultivo e a habitar nas terras pagando na forma de trabalho e
taxações. Em troca, recebiam proteção militar e econômica.
Paralelo
a isto, houve uma transformação na aristocracia e em seu perfil. As novas
aristocracias, as famílias fundadoras dos povos bárbaros recém-convertidos,
diferente das elites romanas, tinham mais preocupações religiosas e menos
materiais. E a missão originária da aristocracia era assegurar as origens do
seu povo, seus territórios e seus familiares e protegidos. Grupos de guerreiros
formado entre nobres tinham a missão do combate em nome da honra e da lealdade
através do Comitatus (uma instituição germana que ligava os guerreiros e seu
chefe), que garantia a troca de serviços, terras, segurança e serviços
militares. Os valores de lealdade tornam-se o enlace social. Ela era fundada
num valor de ordem e não num valor material que levaria à ascensão social, como
entre os romanos.
Depois
de quase mil anos, entre perseguições e mártires, guerras e conquistas,
disputas e conversões, o coração da Europa se torna basicamente cristão. De
transgressão a antiga ordem pagã, o cristianismo torna-se ordem, criando o
ambiente da cristandade. O cristianismo se fez por revelar a Verdade aonde
chegasse, mostrando que o sentido das coisas está fora delas.
Na
religião arcaica, a violência é administrada pela ordem através do processo de
naturalização do sagrado, onde os mitos escondem a violência expiatória. Por
isto, oferecemos cultos e sacrifícios às forças naturais e delas queremos um
benefício terreno. A relação entre o homem e o sagrado é de troca. Ao
contrário, no cristianismo, é o próprio Deus que foi crucificado para nos
revelar a verdade de nossa natureza. Essa dimensão é uma transgressão diante da
lógica pagã e funciona como segunda conversão (a primeira foi a do Deus do
sagrado), pois coloca o sentido do mundo para além dele. Não temos mais uma
relação de troca com a divindade, mas de reconhecimento de nosso pecado
original, de nossa incompletude e de nossas limitações. A ordem cristã quebra a
lógica pagã da antiga religião. Depois de quase um milênio, a cultura cristã
torna-se ordem e, mais mil anos depois, todos os seus aspectos e fracassos (ou
macaqueações) já profetizados (enquanto mundo moderno) serão mundializados (ou
globalizados).
A ordem
cristã na Baixa Idade Média trouxe segurança, trazendo o crescimento da
população (mais do que duplicou entre 1000 e 1350); o renascimento do comércio;
o desenvolvimento científico; o crescimento nas cidades; melhorias nas técnicas
agrícolas; e o recrudescimento das invasões. A sua transformação em ordem
iniciou também um processo de imanentização dos cosmos que atingiu a própria
Igreja, indo desde a idolatria da doutrina como um Deus na terra às denúncias
de São Bernardo de Claraval quanto a tentativa de transformar Deus num
formalismo, passando por questões práticas como venda e compra da salvação.
O
crescimento das cidades e do comércio criou rotas comerciais e intercâmbios,
gerando riqueza e o renascimento de uma economia monetária incipiente com a
gestão bancária entre mercadores, a criação de Ligas, e a introdução das cartas
de crédito. Para isto, contribuiu também o desenvolvimento agrícola e
tecnológico, criando excedentes. Este renascimento comercial do século XII e
XIII traz também uma mudança na noção temporal dos homens. O historiador
Jacques Le Goff (1995) irá distinguir entre o tempo da igreja e o tempo do
mercador. Antes do renascimento comercial, o tempo era sagrado, ou seja, não
podia ser comercializado. Em contraste, o mercador descobre o preço do tempo e
o explora junto ao espaço nas rotas comerciais, trazendo-o de volta para o
sentido material.
Ao
mesmo tempo, o olhar do homem volta-se para dentro de si mesmo, experimentando
a segurança e o renascimento comercial e citadino. Essa volta para dentro de si
é feito dentro da cultura cristã, pois não haveria possibilidade para negá-la
sem antes estar dentro dela. Esse novo olhar para dentro de si acelera a
fórmula do mundo moderno: mais e menos cristão. Certos elementos greco-romanos
retornam e são sintetizados com a cultura cristã. Temos o que se convencionou
chamar de “renascimento cultural e artístico”.
Encontramos
no final da chamada Idade Média, os prelúdios da modernidade. O advento da
modernidade é fruto de uma síntese entre a tradição judaico-cristã e elementos
greco-romanos. A sua origem encontra-se no renascimento comercial e citadino e
numa transição de saberes e paradigmas na elite letrada a partir do
Renascimento. Este trouxe a ideia de imponência do homem (centro de sua própria
história) e a ruptura com certos aspectos da cosmovisão da transcendência. Como
afirma Huizinga (2010), o Renascimento marcou também um momento de
transformações culturais e perspectivas. Huizinga afirma que a Renascença era
um produto medieval e não só italiano, que demarcava principalmente os “homens
modernos” dos séculos XIV e XV, caracterizados pela mentalidade individualista,
humanista e independente da teologia.
Uma das
marcas do período, o Humanismo nasce indicando originariamente a tarefa do
literato ou do estudioso das humanidades, sendo uma maneira de encarar o mundo.
Embora não abandonasse a ideia de transcendência e tivesse muita influência do
misticismo, ele foi o primeiro grande adversário da escolástica medieval, pois
a busca pelo absoluto, diferente da filosofia medieval, identificava-se com uma
“celebração do homem”. Outro significado desta época é a valorização da
capacidade racional, do conhecimento empírico e do hedonismo, simbolizando a
emergência de uma nova maneira de pensar e estar no mundo.
No
mundo material, a intensificação do comércio, a descoberta de novos
continentes, as criações técnicas, a reforma protestante, e as tensões entre os
poderes seculares e a Igreja, ajudam a produzir um sentimento de liberdade, de
fazer-se a si próprio, que vai quebrando a estrutura medieval tripartite entre
os que rezam (oratores), os que combatem (bellatores) ou os que trabalham
(laboratores). Os sujeitos começam a almejar serem donos de seus pequenos
reinos particulares, e perdem a dimensão do tempo com suas perdas e ganhos.
Mais do que isso, aos homens é dada a possibilidade de desejar agir no mundo,
ganhar riquezas, ter mais conforto material, começar a ascender socialmente.
Essas
transformações no final da idade média indicam um caminho de mudanças culturais
internas a própria cristandade. Um mundo que se torna mais cristão e, ao mesmo
tempo, vai passando por transformações internas em sua cosmovisão, no momento
mesmo em que a ideia de “ter o mundo em suas mãos” o tangencia.
É a
desmitificação dos mitos que permite o secular, a ética formal, as instituições
democráticas, o Estado de direito, e a intensificação das trocas, da produção e
a centralidade do comércio (que depois chamaremos de capitalismo). Mas tudo
isto deve ser avaliado numa chave de ambivalência, com suas perdas e ganhos.
Se, por um lado, diminuiu a violência e foi consequência direta da desmitificação
da Cruz; por outro, dissimulou o sacrifício, a rivalidade, a violência, a
expiação, colocando-os noutros termos: no humanismo que expia a religião e
separa a fé da razão. As promessas de liberdade do mundo moderno são a própria
queda da humanidade profetizada pelos Evangelhos, onde os homens, a partir da
má imitação de Cristo, pensam o ter superado e, por isto, se sentem
independentes.
Ao
mesmo tempo em que presenciamos o triunfo da cultura cristã, assistimos a isto
enquanto má imitação. Por exemplo, a descoberta do indivíduo e sua liberdade de
escolher Cristo ou Satanás como modelo se transforma em idolatria do indivíduo
e do seu arbítrio (individualismo); a preocupação com as vítimas da violência
expiatória se transforma numa máquina supervitimológica, que se coloca como
vítima para poder vitimar de novo e melhor (ao papel da vítima, tudo é
permitido); a necessidade do perdão diante do pecado original se transforma num
falso amor que diz perdoar (quando apenas positiva o erro) apenas para danar as
almas e lhe fazer perde-las no redemoinho da vontade. Essa má imitação no âmago
da modernidade é o que podemos definir como a ideologia do Anticristo: uma má
imitação de Cristo que rivaliza com Ele – por delírio de onipotência – enquanto
mediação interna.
O
objetivo desse texto é usar a teoria mimética e a ideia de reciprocidade na
história política e sociocultural para ler a morfologia da modernidade
política, que transforma a ideia de liberdade (macaqueação da liberdade
espiritual mostrada pelo cristianismo) numa deusa de duplo sentido,
trazendo-nos a tirania igualmente enquanto duplo. Como a vida dos homens, a
história do cristianismo é também a narração de nossa carência numa teia de
dramas e euforias. É a experiência que revela a Verdade na ambiguidade da vida
dos homens. As melhores situações nos confortam e devem gerar altivez. As
piores produzem oportunidades de redenção na miséria do ser. Assim, o poder, o
dinheiro e o prestígio podem nos parecer um benefício à primeira vista, mas se
eles oferecem proteções humanas, são também tentações para alma com
consequências práticas e espirituais como qualquer pecado. O que se perdeu no
mundo hoje foi, sobretudo, a consciência dessas ambiguidades e dessa
temporalidade da história. Onipotentes, viramos analfabetos morais, incapazes
de imaginar o sentido das histórias humanas e de nossas próprias relações.
1.
As raízes da secularização
A
reforma protestante representou também uma mudança de olhar dos homens para com
a autoridade. Os protestantes, ao optarem pela ruptura e pela autonomia,
simbolizaram o desejo de independência do homem – no caso, espiritual – perante
uma ordem estabelecida. Não que antes houvesse uma unidade cristã. As heresias
e as disputas entre o poder secular e a Igreja sempre existiram, mas com o
rompimento protestante formou-se não só uma nova denominação cristã na Europa,
mas o exercício de um credo cristão que se adaptava melhor ao tempo do mercador[2],
sendo bem relacionada com quem detinha o poder material e estava em rota de
colisão com o papado e a doutrina católica.
O
século XVI foi turbulento para Igreja Católica. Muitos homens do clero se
deixavam levar pela ganância, pela carne e pelo poder. Por um lado, os
“reformadores” tiveram o mérito de chamar atenção para essas questões; mas, por
outro, caíram no dualismo de separar (e não só distinguir) céu e terra, fé e
razão, igreja de Deus e igreja dos homens. Ou seja, foram importantes para
chamar atenção para um meio que ajudava os homens na busca pela beatitude e que
estava se transformando num fim em si mesmo; todavia, jogaram a ideia de
unidade da igreja de Deus no lixo junto com todo o resto, criando um dualismo
entre a fé e razão que será a base para uma moral laica civil ou para o
imperativo categórico kantiano.
Num
sentido mais abrangente, os “reformadores” deram vazão a um sentimento de
liberdade que se ampliava na Europa. Defendendo a doutrina do livre exame, cada
indivíduo era livre para ter seu próprio Magistério e suas conclusões
religiosas. É o prelúdio do delírio de onipotência que marcará o mundo moderno.
A resposta católica se dará no Concílio de Trento, que reafirma a unidade da
Igreja de Cristo, que vai desde Deus e os homens dos céus aos pecadores na
terra.
Essa
divisão na cristandade ocasionou dezenas de guerras e perseguições entre
católicos e protestantes entre 1525 e 1648. As classes ascendentes, como a
burguesia e a nascente classe média citadina, se identificaram com o
protestantismo e a crítica da antiga ordem. Uma série de conflitos e guerras
explodiu entre católicos e protestantes, principalmente na região da atual
Alemanha, repartida entre diversos ducados, principados, condados. A Paz de
Augsburgo (1555) aliviou as tensões “por cima” ao determinar que a religião
(católica ou luterana) da região seria a do príncipe, a qual os súditos
deveriam se converter, concedendo um período de transição para quem quisesse
mudar de domínios ao invés da conversão.
No
entanto, o tratado não foi o suficiente para aliviar as tensões entre os
mandatários, era preciso criar um mecanismo próprio ao Estado, que garantisse a
liberdade religiosa em seu interior. Os calvinistas não possuíam a mesma
liberdade dos luteranos, e os pequenos estados protestantes em geral se
preocupavam com a influência da católica e poderosa dinastia dos Habsburgos,
que governava a Áustria. O cume do conflito foi a Guerra dos Trinta Anos
(1618-1848), envolvendo estados católicos (Sacro-Império Romano-Germânico,
Espanha, Hungria, Áustria, Baviera) e protestantes (Inglaterra, Suécia,
Holanda, Dinamarca, Noruega, Boêmia). A derrota das pretensões dos Habsburgos
significava a derrocada da ideia de um poder secular que fosse artífice da
cristandade unida.
A paz
de Westfália (1648) pôs fim ao conflito e reuniu uma série de tratados que
foram, em dois pontos, imprescindíveis para formação do mundo moderno. O
primeiro é que, a partir da busca por uma paz duradoura, esses tratados
inauguraram um sistema internacional ao reconhecer noções e princípios das
soberanias nacionais ou estatais, que deveriam ser mantidos e respeitados para
gerar um equilíbrio de poder. Essa noção de reconhecimento da soberania de
outro Estado marca a diplomacia moderna, sendo aprofundado em outros momentos
pós-guerra – como no Congresso de Viena (1815) e no Tratado de Versalhes
(1919). Ela inaugura também um sistema internacional de relação entre os
estados, ainda não sendo institucionalizado em organismos multilaterais, o que
ocorrerá no século XX.
O
segundo ponto é que, ao reconhecer a liberdade religiosa a partir da soberania
nacional, a Paz de Westfália deslocou o substrato dos conflitos da convicção
religiosa para as razões de estado. As guerras posteriores ao acordo não terão
mais como causa principal as disputas religiosas, isto permitiu que potências
católicas e protestantes pudessem se aliar caso fosse interesse de seus respectivos
Estados.
Assim,
a razão primordial da condução do poder secular passa da substância moral e
religiosa para o pragmatismo imanentista das razões de estado, que não
reconhece qualquer norte transcendente à questão, mas apenas problemas
específicos em si mesmo: expandir o poder, manter o poder já adquirido. A
respeito da importância desse período, diz Koselleck (2009: p. 45):
A lei,
sob a qual foi criada, significava subordinação da moral à política e marcou à
época das guerras entre os Estados e dos grandes tratados de paz: os tratados
de Westfália, que representam na Europa, a primeira solução de questões
suscitadas por conflitos religiosos em âmbito internacional, e o tratado de
Utrecht, em que se formulou o princípio do equilíbrio europeu, que repousava no
reconhecimento prévio pelo qual as partas, fossem católicos ou protestantes,
monarquistas ou republicanos, asseguravam a integridade estatal uma das outras.
Os
tratados de paz separam a moral da política e tornam o poder absoluto do rei o
elemento aglutinador da vida em comum. Embora a religião ainda seja largamente
influente na vida social, a separação entre moral e política dá início ao
processo de secularização, onde as razões de estado têm predominância.
Nicolau
Maquiavel, ainda no século XVI, previu essa separação entre a moral e a razão
pragmática. O príncipe deveria ter como principal preocupação a manutenção e
unidade do seu poder, e não questões morais. Muitos enxergam no autor
florentino a primazia da manutenção do poder sobre a moral, já outros enxergam
o Maquiavel defensor da liberdade e dos valores republicanos. É exatamente as
duas coisas e elas são complementares. Falar da liberdade que produz a tirania
é a intenção desse texto, que encontra no pensador italiano um símbolo.
Se a
política para Platão e Aristóteles estava relacionada as possibilidades dos
regimes e a busca da beatitude ou da prática das virtudes dos homens; em
Maquiavel, como um avestruz com o pescoço enfiado na terra, ela é o aqui e
agora a partir de sua própria lógica, orientada pela liberdade e pela virtude
cívica.
Para
isto, em primeiro lugar, era preciso compreender a moral e a verdade numa nova
perspectiva. Não há dados escatológicas na história, mas tão-somente nossas
relações, num lugar onde a fortuna e a virtú negam as determinações. A história
é, então, a síntese da ação dos homens (suas virtudes) e as possibilidades
oferecidas pelo acaso (fortuna). A moral cristã, ligada à transcendência e à
escatologia, deve ser substituída pela moral cívica, utilitarista e preocupada
com os rumos materiais da existência. O homem passa a se encarar como ser
autônomo e dono do seu futuro, construtor de novos tempos. A moral não pode
mais ser explicada a partir de uma ideia como forma (o bem, o mal, etc.), mas
só a partir da realidade prática de cada homem e dos seus desejos e aspirações.
A moral
pretendida por Maquiavel aspira a orientação cívica, ou seja, a participação
política dos homens nos assuntos do seu futuro. Por isto, a fortuna deveria ser
controlada pela força e esta seria uma virtude do governante. E o sentido ético
desse novo agir é imanente a própria ação. Assim, tudo se justifica perante um
homem traçando civicamente seu destino e dominando as forças da fortuna.
Em
segundo lugar, Maquiavel acreditava que a República era o regime mais adequado
para a prática dessas virtudes, pois seria um regime de liberdade que
suportaria as disputas entre cidadãos diferentes sem predeterminações morais,
ocasionando aos homens a oportunidade de dominarem a fortuna. O republicanismo
de Maquiavel é uma defesa da participação dos cidadãos (cada qual como um
príncipe de si mesmo) enquanto domínio do acaso e construção de seu futuro. A
virtude deve ser um atributo do povo e este deve ser guardião de sua liberdade.
A virtude cívica é vista de maneira realística em torno desta nova moral
imanentista, que se prende – com orgulho – a ambição, ao poder, ao desejo, aos
interesses e ao medo.
Essas
novas concepções políticas trazidas por Maquiavel foram fundamentais para que
nos séculos seguintes o ideal de liberdade e dessa nova moral cívica fosse
radicalizada para desmontar os frutos dos renascimentos. O historiador das
ideias, John Pocock, publicou em 1975 o livro The Machiavellian Moment, onde
relaciona o pensamento republicano da Florença do século XVI (em especial,
Maquiavel) e a guerra civil britânica e o processo de independência americano.
A Florença do século XVI tinha problemas com a estabilidade de suas
instituições. A resposta de Maquiavel era voltar aos ideais republicanos
clássicos para resolver os problemas das guerras civis. Como vimos, essa
resposta passava por uma nova moral e por um novo regime que suportasse as
diferenças e as ambições dos cidadãos quando estes exercessem sua virtude
cívica. Pocock refere-se a isso como “humanismo cívico” por ser um resgate do
modelo clássico onde o homem estava no centro da discussão política. Se
Agostinho distingue a cidade dos homens da cidade de Deus, os humanistas
valorizam a vida ativa e a práxis para organizar o melhor tipo de governo e a
vida pública saudável. Por isto, o sentido da política é a liberdade. O
humanismo é também uma nova maneira de encarar a história.
Apesar
de inúmeras diferenças, Hobbes continua (como Maquiavel) a elaborar
intelectualmente o processo de secularização que vinha ocorrendo. Para Leo
Strauss (2016), enquanto a revolução maquiaveliana consiste em separar a
política da ideia de lei natural ao compreender a justiça como algo que não é
independente do arbítrio humano, Hobbes explora toda força da imanentização de
Maquiavel ao reestabelecer a conexão entre justiça e direito natural e ambas
vistas por este ângulo.
Portanto,
Hobbes traz de volta o tema da natureza (enquanto estado natural dos homens) e
suas ligações política num enfoque imanente. Strauss (2016) explica que antes
de Hobbes, a lei natural correspondia a uma série de categorias metafísicas a
respeito da natureza do homem, dando ao seu senso de autopreservação um baixo
destaque, pois estava muito ligado a realidade material. Em contraste, Hobbes
reduz a lei natural ao desejo perene do homem em se autopreservar. Segundo
Strauss (2016), em Maquiavel temos a substituição da lei natural pelos direitos
do homem e, em Hobbes, a justiça natural se transforma no direito natural de se
autopreservar (Locke estende a justiça ao conforto e as opiniões públicas,
distinguindo a religião da moral e, logo, a economia entrará nessa equação da
justiça perfeita).
Hobbes
afirmava que o estado natural dos homens é a guerra. Guerra por espaço,
recursos, símbolos e poder. E a sua causa seria a consciência moral. A
convicção moral, que advém da religião, leva ao conflito pela não aceitação dos
outros grupos. Por isto, as convicções privadas não deveriam ter repercussões
políticas. Para garantir a paz e a segurança, seria preciso um Estado Leviatã, onde,
a partir de um contrato social, o governo seria absoluto, evitando a guerra
civil.
Hobbes
introduz o Estado sob o aspecto de instância, o que exclui a moral de suas
repercussões políticas, pois o interesse público e o ato de legislar do
soberano são a autoridade e não a verdade. Assim, para ele, a substância moral
deveria estar subordinada as razões de estado de um poder secular forte. Na
figura do poder real organiza-se o Estado nacional, submetendo todos os súditos
ao seu arbítrio. O príncipe é a paz e a ordem, criador do comum cultural, e não
mais a moral religiosa baseada no transcendente. O Estado será, portanto,
encarado como uma pessoa moral que, independentemente da Constituição (católica
ou protestante, monárquica ou republicana), vê-se face a face com outros
Estados, e a sua razão está acima de todas as outras.
O
Estado absolutista torna-se então um Deus mortal na terra. Ele assegura,
protege e prolonga a vida dos homens, mas não chega a interferir na vida
privada dos súditos. Como mortal, ele está arriscado a perecer e, por isto,
precisa fazer tudo possível para assegurar seu poder e a obediência de todos. A
partir desta clivagem, como argumenta Koselleck (2009), o homem se parte em
dois, uma metade privada e a outra pública.
Entretanto,
quando o Estado luta contra as convicções, faz coincidir uma política nacional
supra-religiosa com os princípios de uma moral laica civil ainda não realizada.
A construção do Estado absolutista contra a essência religiosa ou as convicções
pessoais mantém o poder, mas retira a substância religiosa que mantinha a ordem
fechada à influência e autonomia dos súditos. Por isto, se o Estado absolutista
nega a consciência privada e os vínculos de lealdade da antiga ordem, pondo no
lugar a formalidade do arbítrio do rei, ele não amplia a participação na
construção desse espaço político formal. E, no século XVIII, os homens
desejarão substituir o arbítrio do rei pelo império da lei. Libertar-se das amarras
da substância religiosa foi o primeiro passo, o segundo será se libertar do
arbítrio do poder real, em busca da autonomia diante dos céus e da terra, de
Deus e dos homens.
A
neutralização da substância pela política favorece a secularização da moral. Ao
mesmo tempo, o arrefecer da religiosidade é fatal para o Estado absolutista,
pois seu sustentáculo dependia da tradição e dos vínculos da antiga
aristocracia. A ascensão da burguesia, da classe média citadina, dos serviços e
do comércio, impulsionados pelas descobertas científicas e a ruptura com o
saber tradicional, desestabilizou o Antigo Regime, que era um arranjo de
transição que salvaguardava a distinção de um regime aristocrático. Como mostra
Koselleck (2009), as bases ideológicas do mundo moderno residem nas
transformações do século XVIII com o iluminismo, e a sua dinâmica interna é
fruto da ascensão, agonia e queda dos Estados absolutistas. A separação entre
política e moral contribui para o súdito se descobrir como cidadão.
A ordem
política que o Estado produziu ao pacificar o espaço devastado pelas guerras
civis religiosas criou a condição necessária para intensificação da crítica às
tradições. Contudo, na medida em que os indivíduos sem poder político se
desvencilhavam do vínculo com a religião, eles entravam em contradição com o
Estado – que os emancipa moralmente – mas também os priva da responsabilidade,
ao reduzi-los a um espaço privado. Ou seja, reduz o indivíduo e sua moral ao
privado, sem participação nas coisas públicas, e a negação disto fomenta o
iluminismo.
Os
filósofos das Luzes debruçam-se sobre o Leviatã, desejosos de quebrar o que
ainda lhe resta de aristocrático. Seu ponto de partida é a consideração do foro
interior, agora secularizado. Por isto, o pressuposto da crítica liberal e
iluminista é a separação entre o privado e o público no absolutismo, que tinha
unido os valores comuns a partir do poder real para dirimir a rivalidade entre
as convicções. O problema é que agora a única convicção válida é a do arbítrio
do rei. Era preciso fazer a convicção voltar à política, mas de maneira
secular.
A
convicção precisava-se transformar em crítica política, onde se averiguaria o
desejo dos cidadãos, cumprindo-se os das maiorias desde que se respeitassem os
direitos das minorias. Começa o processo de separação entre uma moral terrena e
os céus, em busca de um estado laico. O homem dá mais um passo para se libertar
dos céus e dos outros homens.
2. O
prelúdio da ordem liberal
No
final do século XVII, John Locke dividiu as leis em três: a lei divina, as leis
do Estado, e as leis morais. A lei divina é natural e inata, as leis do Estado
são as terrenas (escritas ou jurisprudenciais), e as leis morais são a opinião
pública. A novidade de Locke consiste na separação entre as leis morais e as divinas.
Neste sentido, ele defende que as leis morais (a volta da convicção pessoal
separada do religioso) inspirem as leis de um Estado justo. A grande
contribuição lockeana é estender o estado natural dos homens para além da
autopreservação, introduzindo suas opiniões, convicções e culturas. Assim, ele
age no foro interior da consciência humana, que tinha sido subordinada por
Hobbes à política do Estado. Para Locke, as ações públicas não devem se
restringir ao Estado, ou seja, a moral não deve se limitar ao eu interior, mas
deve constituir o próprio Estado.
Mas
ficaria uma questão: quem decide? A instância moral dos cidadãos ou a política
do Estado? Os dois em conjunto. A lei moral não pode exercer poder, mas sim
influência política indireta. E coube ao filósofo protestante Immanuel Kant
construir a moral como uma essência sem o transcendente, ao transformá-la num
imperativo categórico, tomando a religião como uma crença.
A ética
kantiana tem como base o imperativo categórico. Para Kant, ele é uma lei da
natureza humana, correspondendo ao dever de todos os seres humanos fazerem
conforme os princípios que ela deseja que os outros sigam consigo. Ou seja, se
não desejas que alguém te mate, não deverás matar alguém. Ele une uma lei
universal (a máxima de cada ação deve ser averiguada como uma lei universal),
um fim em si mesmo (a humanidade deve ser usada no lugar da pessoa, como fim e
não meio) e um legislador universal (a vontade deveria ser sempre testada como
um legislador no reino universal dos fins). Assim, não existe a coisa em si,
mas uma lei moral dentro de mim (o imperativo categórico), que consiste na
seguinte regra: não devo fazer ao outro o que não quero que façam comigo. O
imperativo categórico é a base que constrói a moral laica civil.
Mas
antes de se tornar lei, esta moral laica precisou ser construída e vivenciada
no secreto durante o absolutismo, e isto possibilitou a organização da
sociedade civil em torno de clubes, sociedades secretas, etc. As pessoas não se
juntam apenas na tradicional ordem religiosa, mas criam coletividades terrenas
que imanentizam a ideia de absoluto através de uma moral sem o transcendente.
Como lembra Koselleck (2009), Leibniz já advertia de que a função das
sociedades secretas era a imitação do cosmos divino. E nos seus planos reside a
bondade, justiça e sabedoria de um projeto de paraíso na terra.
As
sociedades secretas uniam o mundo burguês antes da abertura política,
penetrando invisivelmente no espaço político. A moral laica começa nos clubes e
sociedades secretas e depois, com a mídia de massas, torna-se opinião pública.
As leis morais, como Locke chamara, adquirem a pressão social necessária para
ter voz e atacar as tradições a partir da sociedade civil organizada. Não por
acaso, o ataque das sociedades secretas coincide sempre contra o Estado, a
ordem política instituída (o Antigo Regime) e a Igreja.
O
absolutismo criou o dualismo da moral (entre o público e o privado),
substituindo a sua unidade transcendente. Os iluministas irão estender esse
dualismo quando pedem a volta da consciência privada na esfera pública, mas
como uma moral laica e autônoma, uma participação ativa de cada homem enquanto
crítica do todo. O resultado é a criação de uma espécie de homem
privado-público e homem privado-privado.
Elemento
constituinte de uma crise perpétua para Koselleck (2009), esse processo
crítico, que imanentiza o absoluto, se autojustifica. Pois, cada um se torna
soberano em relação a todos e sujeito ao juízo de todos. O antigo sermão
particular do padre se transforma em crítica que todos exercem e se sujeitam.
No Prefácio à crítica da razão pura, Kant (1871) dizia:
Nossa
época é a verdadeira época da crítica, a que tudo deve se submeter. A religião,
pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem em geral
subtrair-se a ela. Então suscitam contra si a justa suspeita e não podem
reivindicar o sincero respeito que a razão só concede àquele que pôde suportar
seu exame livre e público.
Os
indivíduos entram em conflito com um Estado que, pela subordinação da moral ao
arbítrio do rei, entende a política de maneira formal e age sem considerar a
emancipação e o processo crítico que quer libertar os homens. Ao mesmo tempo, o
dualismo entre o reino da moral e o reino da política permite abrir um
horizonte crítico (ser a favor ou contra), primeiramente contra as religiões, e
gradativamente contra o Estado. A separação entre política e moral volta-se
contra o próprio Estado absolutista.
O
absolutismo condiciona a gênese do iluminismo, possibilitando o desdobramento
da modernidade política a partir das revoluções modernas que procuram resolver
esse empasse político e de sua utopia baseada no progresso. Não se deve mais
prestar obediência ao poder que concede proteção, mas ao poder soberano que se
submete a moral. A moral laica e imanente se autointitula detentora do direito
de juiz supremo da política. É o tribunal da moral que vencerá o despotismo.
Um dos
filósofos mais importantes do século XVIII e que irá inspirar de certo modo as
revoluções liberais é Jean-Jacques Rousseau. A crítica já tinha se tornado um
processo a reivindicar o mundo para si a engolir o futuro. Essa consciência
privada já estava em estado saturado para invadir a política e quebrar as
estruturas do Antigo Regime. Por isto, como lembra Koselleck (2009), Rousseau
articula três pontos: o futuro, a decisão política e o progresso. Ele volta aos
princípios republicanos e a Maquiavel para defender a cidadania. Rousseau era
um apaixonado pela liberdade enquanto autodeterminação e dedicou boa parte do
seu tempo para defender e refletir sobre a ação na esfera pública. Lembra
Merquior (2014) que uma das preocupações de Rousseau era combater o que ele
chamava de “particularismo” (na verdade, arbítrio dos reis na decisão das
coisas públicas) do poder, que também poderia ser traduzido na linguagem
liberal como patrimonialismo. Defensor da democracia, Rousseau tinha certeza de
que o progresso da história se tornava mais curto e rápido no presente,
pressentindo as revoluções e a derrubada da Monarquia através do processo
crítico.
Nessa
época, a crítica ao Antigo Regime e a falta de liberdades civis intensifica-se.
Era desejável se libertar das amarras dos outros homens, ou seja, do
reconhecimento do poder real e da distinção aristocrática. Porém, para
completar o processo de emancipação, a moral precisava voltar à política. É
nessa reintegração de uma moral laica civil ao domínio da política que nasce a
ideia moderna de democracia. A moral laica civil era o império da lei e da
formalidade institucional que garantiria segurança e liberdade para os homens.
3.
Mudanças no tempo histórico: da escatologia às ideologias
O que é
o tempo histórico? O historiador das ideias Reinhart Koselleck responde essa
pergunta afirmando que o tempo histórico é constituído pelas concepções que a
sociedade tem sobre sua temporalidade. E, em todos os conceitos utilizados pelo
homem no tempo para representar essa temporalidade, aparece duas categorias
históricas fundamentais (que não são antitéticas): espaço de experiência e
horizonte de expetativa. A primeira categoria representa a tradição que é
recebida ao ser que se encontra no mundo; e a segunda, a projeção de futuro
diante da vida corrente. O tempo histórico encontra-se na relação entre essas
duas categorias formais. Portanto, a compreensão do tempo histórico está sempre
ligada a maneira como os homens combinam a experiência do passado com suas
expectativas do futuro, encontrando-se no mundo a partir dessa temporalidade.
Em síntese, “(…) entre a experiência e a expectativa, constitui-se algo como um
tempo histórico” (KOSELLECK, 2006, p. 16).
Koselleck
interpreta a modernidade na Europa continental a partir da emergência de uma
nova percepção de tempo. Para ela, as duas ideias centrais da modernidade são:
um futuro inédito, aberto a transformação, aonde experiência e expectativa vão
se afastando; e a aceleração do tempo. Até o século XVI, Koselleck observava
que a finalidade do mundo se encontrava para além dele. No mundo material,
existiam apenas as histórias (no plural) como mestra da vida, pois possuíam
como sentido maior a História (no singular) que estava fora desse mundo numa
perspectiva escatológica. Esse tempo histórico cristão foi imanentizado na
modernidade, e o a História (no singular) que estava fora desse mundo veio para
o aqui e agora.
Essa
emergência de um novo tempo histórico pode ser percebida nas transformações
conceituais da ideia de “história” como nota Koselleck (2006). Na língua alemã,
o termo Historie significava um relato de algo que tinha ocorrido, e o termo Geschichteo
acontecimento em si e não o seu relato. Com o tempo, ambas passaram a se
referir à história enquanto processo. Essa substituição de significado mostra a
superação dos relatos históricos enquanto mestres da vida e a emergência da
história enquanto processo. O mesmo ocorre com o termo “revolução”, que passa
de um movimento circular para indicar uma transformação sem volta a sua origem.
Koselleck indica (2006, p. 69) que Robespierre pretende acelerar o tempo ao
trazer o reino da liberdade à força, secularizando inconscientemente as
expectativas apocalípticas da salvação.
Essa
emergência dissemina a experiência de coexistência num mesmo espaço temporal de
várias camadas distintas de temporalidade. E cria também a percepção dessa
multiplicidade de tempos históricos numa perspectiva imanente. É nesse momento
que vários autores criam a ideia de progresso enquanto ordenação desses vários
tempos num processo linear e universal.
Nesse
sentido, há um entrelaçamento entre o crescimento da burguesia e a sua visão
comercial sobre as coisas e o que chamamos de pensamento iluminista. Este era
um espírito que guiava os homens em busca pela liberdade – cada vez mais
estendida. A ideia de transformação do mundo através dos poderes de uma razão
humana independente do transcendente toma os clubes, os jornais, os grupos, as
universidades, as academias e a Maçonaria. De mesmo modo, o artesanato ia se
transformando em indústria, e o desenvolvimento técnico mudava as paisagens e a
percepção das pessoas.
O
iluminismo tornou-se a filosofia predominante da Europa Ocidental no século
XVIII, atraindo as classes letradas e a burguesia em ascensão, ciente por mais
participação política. O significado fundamental do movimento iluminista,
segundo Giovanni Reale (1990), consiste na plena confiança na razão humana
(entendida no sentido da ciência moderna), cujo desenvolvimento é visto como o
progresso da humanidade. A razão levaria (REALE, 1990) a tolerância ética e
religiosa, a defesa dos direitos naturais do home, a luta contra as tiranias, a
defesa do conhecimento científico, a luta contra a magia, os mitos e as
superstições. Ele condensa a ideologia do progresso, embebecido de otimismo com
os avanços tecnológicos e com o progresso material e jurídico-formal. A razão é
colocada num altar sagrado, mas ela não é mais entendida como fundamento do logos,
das essências e metafísicas; mas, no sentido da ciência instrumental. A função
primordial da razão é ser um instrumento de libertação. Servir da sua própria
inteligência é libertar a consciência das amarras espirituais ou políticas. Com
razão, Adorno e Horkheimer definiram o esclarecimento como uma tentativa de
tornar os homens senhores do mundo, contra os mitos. Em tal contexto, a
filosofia prepara o terreno para outros conhecimentos, como a ciência natural,
a história, a ciência do direito, a política, as ciências sociais. Kant
costumava assim definir as luzes dessa maneira:
O
Iluminismo é a saída do homem do estado de minoridade que ele deve imputar a si
mesmo. Minoridade é a incapacidade de valer-se do próprio intelecto sem a guia
de outro. (. . .) Tem a coragem de servir-te de tua própria inteligência! Esse
é o lema do Iluminismo. (KANT, 2011: p. 13).
A
laicização cria a filosofia da história dos iluministas com sua utopia. A ascensão
dessa nova moral no público é inseparável de um novo tempo histórico, onde o
futuro é programado e colocado em aberto (e em disputa) e não mais fruto da
providência divina. As expectativas desse futuro promissor afastavam-se das
experiências do passado. A razão humana, independente e autônoma, tornava-se
consciência que podia planejar o futuro, alterá-lo e torna-lo melhor. A
história torna-se um processo singular, onde sua finalidade é imanente a este
mundo e chega ao seu fim no reino da liberdade. Voltando-se para um futuro
utópico, os homens desprezam o passado e suas experiências. Essa ruptura
fundante do tempo histórico da modernidade é a causa da crise, pois o único
espaço de experiência é o presente vivido.
A
utopia do iluminismo é baseada num novo significado de liberdade (no sentido de
autonomia do indivíduo), e a história aparece como futuro promissor de sua
realização. A sociedade em processo de esclarecimento acredita que a liberdade
de consciência é a condição para a paz social e não mais o arbítrio do rei.
Antes,
a finalidade da história estava fora dela mesmo e era simbolizado pela
escatologia. A História (no singular e em maiúsculo) era uma forma-ideal fora
deste mundo que correspondia a providência divina. Materialmente, só existiam
histórias como mestra da vida. O homem moderno – embebecido de vaidade por uma
razão que pensar criar coisas e não só descobrir suas potencialidades já dadas
na realidade – traz a História para este mundo. Agora, a finalidade da História
está nela mesmo. A sua finalidade é o seu sentido final: o reino da liberdade
que o a razão nos guiará a tal. O cosmos imanentizado é a filosofia da história
iluminista e é ela a criada das ideologias, pois esta é apenas uma doutrina, um
guia, um cartado de princípios, para nos levar para esse mundo melhor guiado
pela razão humana independente de Deus. A providência não é mais divina, mas de
humanos onipotentes querendo mudar a realidade e construir seus caminhos.
No
século XVIII, nota Koselleck (2006), aparecem as formulações conceituais, como
“História”, “revolução”, “liberdade”, “democracia”, entre outras, sendo
reveladoras estruturais dessas transformações sociais e políticas. A partir da
Revolução Francesa, os conceitos têm seu escopo de atuação ampliado, pois são
tanto chaves de cognição do real, quanto parte emancipadora do processo crítico
que aponta para o futuro. Neste contexto, de imanentização da escatologia,
nascem os “ismos”, como o republicanismo, o liberalismo, o socialismo, o
conservadorismo etc.
Depois
do republicanismo, a primeira grande ideologia desse período foi o liberalismo.
Merquior (2014) afirma corretamente que o liberalismo é mais um fenômeno
histórico multiforme do que uma doutrina com causas bem definidas durante sua
história. Esse fenômeno está intrinsecamente relacionado a ascensão da
modernidade política e a sua centralidade na concepção de liberdade. O
liberalismo seria o fenômeno histórico que identifica aqueles que estão
preocupados com a liberdade individual como centro da vida e de sua reprodução.
Liberdade em vários campos: econômico, religioso, político, intelectual, etc.
O
liberalismo não é sinônimo de iluminismo ou democracia, mas sua história anda
interligada à de ambos. Do iluminismo, teve como legado sua filosofia da
história e o primado da razão instrumental. Enquanto da democracia, foi
responsável por categorias jurídicas, políticas e sociais. No século XVIII, o
liberalismo ainda é um fenômeno em seus próceres, empurrando os homens a se
libertarem dos céus e da terra. No século XIX, ele atinge o seu apogeu e vira
uma ordem (democracia liberal) no coração da Europa. No século XX, vira uma
ordem social mundializada e depois da metade do século essa ordem produz a sua
consequência lógica: a tirania mais multiforme e invisível já vista (o poder
integrado). Portanto, trato o liberalismo como um fenômeno centrado na ideia de
liberdade que se torna uma ordem enquanto democracia liberal, que depois produz
um tipo de poder integrado ao mundo inteiro.
As três
características principais do liberalismo (MERQUIOR, 2014) são: a autonomia, a
liberdade e a independência do Estado. Durante os séculos XVIII e XIX, três
tipos de liberalismos foram se desenvolvendo. O primeiro, o “liberalismo
clássico”, está ligado a nomes como John Locke e Montesquieu e, em especial,
aos whigs ingleses. As suas raízes encontram-se desde o humanismo renascentista
aos vários tipos de iluminismo. Ele possui como principais características a
defesa: da liberdade individual, do império da lei contra o arbítrio do rei, da
igualdade perante a lei, da limitação do poder do Estado e de sua atuação, da
separação de poderes, do direito de propriedade, e da liberdade econômica.
Quanto a democracia e ao sufrágio universal, sua relação sempre foi ambígua e
discutível.
O
segundo é o “liberalismo conservador”. Como notou Voegelin, o conservadorismo é
sempre uma contra-ideologia (ou uma ideologia de reação) que costuma cair no
jogo dos duplos e se igualar a uma ideologia, mas sempre em desvantagem
prática. Em geral, ele emerge após a Revolução Francesa como reação as
ideologias nascentes, como o liberalismo e o socialismo. Podemos observar no
século XIX, dois tipos de conservadorismo diferentes do liberalismo
conservador. O primeiro é um conservadorismo antiliberal que, na verdade, é uma
nostalgia do Antigo Regime, trazendo novamente à tona temas levantados por
Bodin e Bossuet. São exemplos: Joseph de Maistre e Louis de Bonald. O alvo de
Maistre é especialmente o empirismo de Locke, mas apesar de usar Platão e
Agostinho, as suas referências encontram-se mais em Vico e Ficino. O seu uso do
neoplatonismo era pautado pela leitura dos humanistas renascentistas e eram
intermediadas pelas lições de Bossuet.
O
segundo é o conservadorismo romântico (um tipo de romantismo), que é
esteticamente antiliberal e defende as forças da imaginação contra a
racionalidade burguesa. Ele surge na época da revolução industrial e das
revoluções burguesas. Ele surge como uma resposta estética, cultural, e
filosófica, a esta sociedade que está se formando. Opondo-se ao universo das
formas racionalistas e da harmonia do classicismo, o romantismo representa,
para o poeta alemão Novalis, uma “arma de defesa contra o cotidiano”, na
modorra de sua banalidade. Não raro, o romantismo foi, por isto, estigmatizado
– não sem alguma razão – pela nostalgia idílica do passado. Para Peter Gay
(1999: p. 49), a chave do romantismo é o reencantamento do mundo. Todavia, o
seu resultado era a melancolia diante da compreensão da inalcançabilidade dos
seus desejos, sendo descrita como o estado de ânimo do anseio (Sehnsucht). Esse
tipo de conservadorismo chegou a influenciar todo marxismo ocidental, em
especial, figuras como Walter Benjamin, Ernst Bloch e Theodor Adorno.
O
terceiro tipo é o liberalismo conservador, um produto basicamente inglês,
extremamente influenciado pela separação entre fé e razão do protestantismo e
pelo empirismo de David Hume (oposto a tradição de Platão de Aristóteles).
Contra o realismo metafísico, inspirado pelos empiristas, os liberais
conservadores eram contrários as revoluções liberais, pois a prudência era obra
não de arroubos particulares, mas de instituições que passam no teste do tempo
(uma espécie de historicismo), sendo adaptadas e modificadas lentamente de
acordo com o que os homens da sua época aceitam. Essa primeira característica
tira a ideia de verdade da transcendência e coloca na história e na tradição.
Disso, decorre sua defesa da tradição como norte permanente que produz o encontro
entre as gerações (passado, presente e futuro), criando um estado de
virtuosidade coletiva. Outro ponto é a crença nas instituições humanas como
garantia para liberdade individual. Por fim, são céticos em relação ao novo e
as transgressões. O liberalismo conservador é a contra-ideologia de reação que
mais se aproxima dos seus adversários, incorporando uma nova ideia de moral e
verdade, mas invertendo o seu sinal ao trazê-la para a ordem e a tradição, e
não para o novo e a transgressão.
O
terceiro tipo de liberalismo da época é representado principalmente por John
Stuart Mill, sendo praticamente uma introdução ao liberalismo-social do século
XX. Mill partia do primado empirista. A partir disso, irá defender uma
formulação radical do individualismo. Para ele, todos os indivíduos podem fazer
o que bem entender desde que não prejudique diretamente outras pessoas. Se a
ação a afeta apenas diretamente, ninguém teria o direito de intervir. Ao
contrário do liberalismo conservador, Mill não vê a sociedade como um todo. Ele
defende também um governo limitado e a participação das mulheres no sufrágio.
Mill elaborou críticas aos argumentos essencialistas e afirmava que a única
forma de falar de Deus era a posteriori. Ele sonhava com uma religião da
humanidade, sendo um desdobramento da História como um processo nos legando o
reino da liberdade.
4.
As revoluções liberais e o poder difuso e concentrado
A
ascendente burguesia e a classe média citadina ansiavam por segurança e
liberdade, pois em épocas de crises e guerras não só viam seus negócios e
empregos prejudicados, como se viam roubados por novas taxações do Estado
absolutista. Durante todo século XVIII se formou esse caldo intelectual,
imaginário e material que brotou um sentimento de uma nova ordem social que superasse
o Antigo Regime e garantisse a tão sonhada liberdade. As ideias iluministas e
liberais circulam e, em certo sentido, simbolizam as transformações materiais e
mentais da época. Esta nova mentalidade depara-se com a barreira política
imposta pelo arbítrio do rei. Os revolucionários desejavam limpar as ruínas já
visíveis do Antigo Regime para construir uma nova ordem social.
É este
impasse entre o que os homens (principalmente os das cidades) aspiravam e um
regime político fechado, que gera o “assalto ao poder” das revoluções. O seu
resultado é a construção do mundo moderno com a secularização da sociedade, o
império da lei e das instituições, e o triunfo da democracia liberal (ou poder
difuso) nas principais partes do Ocidente e do poder concentrado (o que alguns
chamam de “totalitarismo”) como forma de modernização retardatária. As
revoluções do século XVIII cristalizam a modernidade propriamente dita. Elas
são, assim, marco de um novo período histórico.
A
derrubada do Antigo Regime começou na Grã-Bretanha com aquilo que chamamos de
“Revolução Gloriosa”, uma deposição sem muitos conflitos, diferente do caso
americano e francês. Entre 1688 e 1689, o rei Jaime II, um integrante da
família Stuart e católico, foi deposto do trono, marcando o fim do absolutismo
britânico. No lugar, entrou Guilherme de Orange, neerlandês de origem
protestante que era casado com a filha de Jaime II. O rei de até então tinha
tentado reconduzir o país ao catolicismo e, para isto, tinha fortalecido o seu
poder central, onde o reinado absolutista era o denominador comum da esfera
pública.
Após a
deposição, o parlamento e a aristocracia ganham mais poder. Traduzindo-se na Bill
of Rights (declaração de direitos) que sepultou o absolutismo monárquico e a
volta do catolicismo ao trono. O monarca também teve seus gastos limitados pelo
Parlamento, além de não poder aumentar impostos sem sua aprovação. Esta difusão
do poder não pode ser comparada a pulverização da Idade Média, por
circunstâncias muito diferentes e porque agora era apoiado num processo de
libertação que envolve o próprio absolutismo como já falamos, ou seja, como
parte de uma transformação de cosmovisão e de um novo sentido de tempo
histórico.
Quase
cem anos depois, a Revolução Americana começou como um processo de independência
diante do aumento de impostos efetuados pelo Rei da Inglaterra para equilibrar
as finanças com os custos de guerras recentes e pela falta de representação
política. Os colonos americanos, imbuídos do sentimento de que a antiga ordem
dos pais ingleses era injusta e de que os indivíduos nasceram para ser livres,
desobedeceram ao arbítrio do rei sobre as taxas e deram início ao conflito.
Após a
vitória na guerra de independência, a preocupação dos líderes era criar uma
nova ordem política dispare da anterior. A questão era elaborar um governo
limitado, que fosse resultado da sociedade civil organizada e não dela
condutor. Era preciso, então, criar direitos básicos do ser humano, tornando
consequente uma moral laica civil. A base da vida em comum não seria mais o
Leviatã, nem voltaria a ser a religião, mas a sociedade civil organizada a quem
o Estado apenas representaria e garantiria – a partir do império da lei – a
liberdade dos cidadãos. O fundamento da lei é a escolha da maioria dos cidadãos
e do imperativo categórico que protegerá as minorias.
Por
isto, a Revolução Americana se consolida através de um sistema de checks and
balances (freios e contrapesos), de aspecto federativo, com divisão entre os
poderes e a promulgação de uma sólida constituição. Os seus líderes procuraram
criar instituições políticas que garantissem a representatividade da sociedade,
o que tornaria legítima a moral laica civil. Isto ocorria porque os founding
fathers da América estavam não só preocupados em limitar o poder central e dar
autonomia aos vários estados, mas queriam proteger a pluralidade da sociedade
civil. O que garantia o reconhecimento da vida em comum era um poder difuso que
gerava um equilíbrio tenso na sociedade plural. O que dá unidade a ela não é o
poder real ou a religião, mas a própria fundação do país ou o processo
revolucionário, cristalizando-se na figura da Constituição.
O
historiador John Pocock, em Machiavellism Moment, argumenta que a grande
influência dos rebeldes americanos na fundação da nação era o humanismo cívico
da renascença. A atividade pública é valorizada, elevada à condição humana dos
homens de construir seu próprio destino. Por isto, o sentido da política é a
liberdade, enquanto governo misto e sociedade civil organizada e atuante.
LEIA MAIS A mente de Mark Lilla (I): a autoconsciência da
violência
Em Da
Revolução, Hannah Arendt (1988) mostra como os pais fundadores da América voltaram-se
ao renascimento e a uma nova forma de liberdade. A perspectiva de um “ato de
fundação” lembra a Roma antiga e demonstra a influência de Montesquieu entre os
americanos, devido a sua preocupação com a fundação do corpo político através
da constituição. A constituição funda a América. E ela funda as liberdades
civis, a separação entre os poderes, as formas republicanas, o governo misto, a
sociedade civil e organizada atuando politicamente. Ela garante o encontro
entre as gerações. A constituição é o que gera a unidade do povo americano, e
não mais a religião, os laços de sangue ou o rei.
A nova
ordem criada pela Revolução Americana teve grande influência no funcionamento
da democracia moderna: federativa, com independência de poderes e uma sociedade
civil forte atuando sobre as instituições. O objetivo era instaurar a
segurança, o respeito à propriedade, as liberdades civis dos que eram
considerados cidadãos. A grande preocupação era adequar a moral a política e
não tratar temas sociais, como a escravidão, que só poderia ser resolvida pela
sociedade.
Ao
contrário da americana, a Revolução Francesa passou por várias fases
dissonantes. Quando a crise veio, o Estado absolutista francês tinha perdido
poder e prestígio, pois havia uma distância entre o Antigo Regime e a
sociedade. A revolução foi uma irrupção de um momento carregado de tensões.
Nesse momento, a Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária
aprovou, em 26 de agosto de 1789, inspirada nos pensamentos iluministas e na
Revolução Americana (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
onde constavam dezessete artigos com os direitos básicos de cada ser humano, a
partir da moral laica civil já desenvolvida na sociedade. O rei foi deposto e
depois degolado.
Da
Revolução Francesa, herdou-se também, no período do terror jacobino, a
concentração de poder na mão dos condutores da revolução que se autojulgava,
inaugurando uma tradição que, como lembra Arendt (1988), é reeditada na
Revolução Russa de 1917. Para fazer uma nova sociedade, um novo homem, e acabar
com todos os infortúnios e injustiças na terra, era preciso concentrar todo o
poder na elite revolucionária. A nomenclatura é o que une a vida em comum.
Temos
então as duas formas de poder que marcam a primeira modernidade: o poder difuso
e o poder integrado. Essa nomenclatura foi utilizada por Guy Debord em 1988 num
anexo (Comentários sobre a sociedade do espetáculo) ao seu famoso livro A
Sociedade do Espetáculo. O poder difuso seria a defesa da liberdade civil, das
pluralidades políticas, do agrupamento social em torno do império da lei
através do contrato social. Nesse poder, a liberdade do indivíduo é oferecida
numa equivalência geral que aparece enquanto moral secular que a todos iguala.
A igualdade de todos perante a lei garante a liberdade dos indivíduos e essa
união não se dá mais pela cultura cristã advindo de sua ordem ou pelo arbítrio
do rei, mas pelo abstrato-geral da lei. O poder difuso são as democracias
liberais.
O outro
lado dessa moeda é o poder concentrado. Para os homens serem livres não basta o
reconhecimento legal, mas ter também as oportunidades de se fazer enquanto tal
(isto já está implícito em Locke quando ele afirma que o homem precisa de mais
do que a autopreservação para viver e ser livre). Ou seja, liberdade não é só
ter o direito a se preservar ou viver, mas é também ter oportunidades iguais
para se fazer. Logo, do conceito de liberdade se decorre o conceito de
igualdade. Em busca da igualdade, os homens jacobinos não se contentam com o
alvorecer do futuro em suas mãos para breve, mas pretendem acelerar ainda mais
o tempo e realizar o reino da liberdade (o paraíso na terra), que talvez tenha
sido resumido na famosa fórmula marxiana na Ideologia Alemã: “caçar de manhã,
pescar à tarde, pastorear a noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo
isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador
ou crítico”.
Desse
desdobramento da liberdade em igualdade (um não é evidentemente oposto ao
outro), nasce o poder concentrado, que teve nos jacobinos seu prelúdio. O poder
concentrado é centralizador, estatizante, burocrático, pois concentra todo
poder ou tudo aquilo que representa a unidade da sociedade num partido ou numa
linhagem burocrática. Por ser um desdobramento da liberdade nesse fazer-se no
mundo, ele foi um pedido ou uma sedução principalmente de uma classe média
ensimesmada, entre os mais pobres e nos países de pouca modernização. Ao
contrário do que previra Marx, as revoluções socialistas e a montagem de um
poder concentrado que dissolvia o cotidiano em nome do Estado e da modernização
forçada, só poderia ocorrer em lugares retardatários. Profeticamente, Gramsci
observou depois de que nos países desenvolvidos, a revolução era política,
criando um profético intermezzomaquiaveliano entre as democracias liberais e o
socialismo.
Direita
e Esquerda são outro par antitético da modernidade política. Em geral, a
direita (os girondinos) defendiam o poder difuso e a democracia liberal,
enquanto a esquerda (os jacobinos) defendiam o poder concentrado e falavam da
igualdade como consequência natural da libertação diante dos céus e dos homens.
O lema francês daqui em diante circulava no mundo: liberté égalité, fraternité.
É o intermezzo com as aproximações da social-democracia e do liberalismo social
moderno (principalmente o anglo-saxão) que criarão o poder integrado no século
XX, unindo esses pares de poderes e renovando profundamente a esquerda durante
todo século.
Na
França, o descontrole do terror revolucionário foi procedido pelo frágil
domínio girondino. Em breve, o país seria arrastado por um militar populista,
Napoleão Bonaparte, que conseguia envolver as massas sem criar uma situação de
anarquia. As ambições expansionistas de Napoleão levaram a França a guerra no
início do Século XIX. A Revolução Francesa tinha sido parcialmente derrotada,
mas era uma questão de tempo – com idas e vindas – para o seu sentido se
realizar: derrubar o Antigo Regime na França.
5. A
ordem liberal: as ilusões da deusa liberdade
A
derrota definitiva de Napoleão em Waterloo levou as quatro potências vencedoras
(Reino Unido, Prússia, Áustria e Rússia) ao Congresso de Viena (1815) para
redesenhar o mapa político da Europa depois dos desmontes da guerra. O
Congresso seguiu alguns princípios da Paz de Westfália, mas o seu grande mote
não é a consolidação dos Estados absolutistas, mas sua manutenção pela força,
mesmo sendo uma ordem carcomida, decadente, em ruínas. O objetivo do Congresso
era reorganizar as fronteiras europeias, alteradas pelas conquistas de
Napoleão, e restaurar a ordem absolutista do Antigo Regime. Três princípios
foram consagrados: o da legitimidade (eram legítimos os governos e fronteiras
anteriores a Revolução Francesa), o do equilíbrio (a paz só seria gerada pelo
equilíbrio de poder e condições materiais, levando ao reconhecimento da
soberania dos outros estados), e o da restauração (a Europa deveria voltar a
mesma situação política anterior a Revolução). Um dos acordos foi formar uma
“Santa Aliança” entre Prússia, Áustria e Rússia para intervir em qualquer
situação em que o Antigo Regime fosse ameaçado.
O
Estado absolutista vê sua ordem ameaçada e pela força ganha um respiro, mas não
por muito tempo. O projeto moderno, que é libertar os homens dos céus e dos
outros homens, não para depois do impasse político e dos fracassos posteriores.
A contrarrevolução não conseguirá manter a sua ordem em ruínas por muito tempo.
As revoluções modernas foram irrupção de uma mentalidade ou concepção contra um
tipo de ordem política. O que as gera não é só um “assalto ao poder” (uma de
suas consequências), mas a emancipação que anuncia o moderno e depara-se com a
barreira política imposta pelo arbítrio do rei. A maior prova disso é que a
derrota dos levantes na França – e no resto da Europa – não os impediram de
produzir um novo ambiente a cada revolta contra as ruínas da antiga ordem. A
revolução como ficou conhecida é um desfecho político de uma nova maneira de
pensar e sentir. O que a gera é um desejo de liberdade, uma pretensão de
autonomia, perante a realidade dada, criando um sentimento de inversão da
ordem. A justiça e a bem-aventurança saíram do céu e vieram para o mundo
terreno, num processo de secularização. O paraíso não deveria ser mais esperado
para o além da morte, mas dever-se-ia ser construído aqui e agora, desde que se
confiasse na razão, nas instituições, na ciência. A ideia de progresso suplanta
o da eternidade, e o futuro é o refúgio da esperança. Voltaire costumava dizer:
“o paraíso é onde eu estou”.
O ano
de 1848 cristalizará um momento histórico fundamental. A crise econômica e a
falta de representação política das classes médias ocasionou uma série de
revoltas. Uma onda de insurreição contra o Antigo Regime se levantará pela
Europa, conhecida como “primavera dos povos”. Ela também trouxe junto uma onda
de nacionalismo, em prol da formação do Estado moderno na Europa central e
oriental, abalando as monarquias da região. As mudanças mais significativas
foram a abolição da servidão na Áustria e Hungria, o fim do absolutismo
monárquico na Dinamarca, e o término definitivo da monarquia na França. Elas
também ajudaram no processo de formação do estado-nacional da Itália e da
Alemanha.
A moral
laica que emancipava os homens afrontou as leis baseadas no arbítrio do rei e,
com isto, construiu o arbítrio formal das instituições democráticas e
republicanas. Com a irrupção violenta das revoluções modernas surge o partido,
o conselho popular, o sistema partidário, a democracia representativa, a
democracia direta, a autogestão. A emancipação da crítica constrói o mundo das
instituições a partir desta moral laica civil e através de um ordenamento
racional e técnico.
A ordem
liberal é resultado do processo de secularização. A secularização faz emergir
uma nova noção do tempo histórico. A ética cristã é secularizada e se vê na
ordem política uma determinação onde seus condutores não erram, são os
detentores do absoluto, negando o mundo antigo e reclamando intelectualmente o
mundo inteiro. Então, o crítico se autointitula o representante da humanidade,
tendo um projeto para ela. O sujeito de sua nova filosofia era a humanidade
inteira, que unida e pacificada pelo centro europeu, deveria ser conduzida a um
mundo melhor. O moderno cria uma ideia de unicidade onde o futuro residirá. A
escatologia cristã se transforma em história progressista e se transfigura no
Estado de Direito.
A
primeira característica da ordem liberal é o Estado de direito. O Estado de
direito é uma instituição sistêmica que submete igualmente todos as mesmas
leis, desde os indivíduos aos entes coletivos. O império da lei funciona como
um contrato social que reúne toda sociedade em lugar do arbítrio do rei, da
religião, da raça, dos sexos, etc. Para se chegar essas leis, temos a moral
pública dos indivíduos que foi separada desde Locke do âmbito transcendental da
religião.
Disto,
vamos a segunda característica da ordem liberal: o governo limitado
constitucionalmente. O governo não pode fazer nada que seja proibido em lei,
seguindo os ritos corretos e respeitando os direitos fundamentais. Ele não é um
ente autônomo ou um representante da aristocracia que está encarregada de
defender o seu povo (desde suas tradições aos seus territórios), por isto, une
naturalmente na ótica cívica que, aos poucos, vai dissolvendo as próprias
fronteiras entre as nações no mundo globalizado.
Todavia,
o governo não deve ser apenas limitado, como deve haver um sistema de freios e
contrapesos que balanceiam os poderes e impeça que um se torne tirano. Chegamos
a tripartição de poderes inspiradas em Montesquieu. Legislativo, Executivo e
Judiciário são independentes, separados e harmônicos. Um poder freia o outro e
traz o seu balanço.
Fica
uma questão: como será o governo e se cuidará das leis e de suas alterações?
Por meio da democracia representativa, onde – por sufrágio universal – o povo
apto ao voto irá eleger seus representantes. A extensão do sufrágio para mais
cidadãos será uma pauta permanente entre o final do século XIX e todo o século
XX. Essa estrutura se repete mesmo numa monarquia parlamentar (como no caso
inglês), onde o rei simboliza a história do povo e apesar de manter certas
prerrogativas reais dificilmente vai de encontro a ordem política, pois se
assim tentasse estaria arriscando sua dissolução.
No
final do século XIX, a democracia liberal já era um modelo largamente utilizado
nos países desenvolvidos. Ela aponta evidentemente para um poder difuso, para
pluralidade política e para o elogio das virtudes cívicas ao nos preencher como
sentido de vida a participação pública e a responsabilidade pelo futuro a ser
construído. A pluralidade política era definida, em geral, por dois campos: a
direita e a esquerda. A direita mais girondina, mas também idealista,
liberal-conservadora, reacionária ou mesmo, em casos extremos, nostálgicos do
sacrifício e da ordem pagã. A esquerda mais jacobina, indo do
liberalismo-social ao liberalismo moderno de tipo americano, passando pelo
socialismo fabiano (ou trabalhismo inglês), pelo socialismo reformado
(social-democracia) ou mesmo, em casos extremos, pelo socialismo revolucionário.
Em situações extremas, a modernização foi feita de maneira retardatário através
de um poder concentrado. Nesses casos, o poder difuso da ordem liberal foi
transposto em seu contrário, que lhe complementa como um todo dentro do sentido
maior de libertação da primeira modernidade. Como já expliquei, o conceito de
igualdade e de aceleração do futuro já estava dado na filosofia da história que
dá sentido a imanentização moderna e que gera a ordem liberal, e foi visto de
maneira mais clara entre os jacobinos franceses.
Por
fim, outra característica da ordem liberal que se configura entre o final do
século XIX e o começo do século XX é a economia de mercado. Essa fórmula deve
ser vista dentro de uma generalidade histórica no sentido morfológico. Na prática,
havia liberdade de mercado mas sempre dentro de certos contextos de proteção
que correspondia a interesses da burguesia comercial, industrial ou financeira,
ou mesmo serviam ao interesse nacional como um todo. Um exemplo é o domínio
republicano na política americana depois da Guerra de Secessão, que estava
longe de ser um exemplo bem dotado de laissez-faire[3].
A ordem
liberal delineou-se. O projeto moderno coloca o indivíduo no centro do mundo,
ao prometer que com uso da razão subjetiva nos autoconservaríamos melhor,
através de um ordenamento racional e técnico. Neste sentido, Weber irá
defini-la como a época da “organização capitalista racional assentada no
trabalho formalmente livre”. Ou seja, é a era do advento da “organização
industrial racional”, orientada para um mercado, em que as empresas não estão
mais vinculadas a uma unidade doméstica, e criam sua “contabilidade”. Esse
processo de racionalização penetra as instituições, com o Estado-nacional, que
tem sua administração sendo realizada por especialistas e assalariados, ou
seja, por uma burocracia independente.
A
história como um processo em direção à liberdade torna-se uma mentalidade
disseminada na sociedade burguesa do Século XIX. Os periódicos e a cultura
pulsavam o entusiasmo com a segunda revolução industrial, com as invenções
técnicas, com a ciência e o domínio da razão. Os inventos invadiam o cotidiano:
o trem, o telégrafo, o rádio, o carro, o avião. O sujeito onipotente sentia
mais ânsia por liberdade. O planejamento racional e moral determinaria o
progresso da história. O homem conquista o mundo com a modernização
capitalista, alcança outros continentes, domina a natureza para viver melhor,
manipula-a para ter conquistas técnicas, e deseja agora paz e segurança para
usufruir dessa vida, sem as amarras dos céus, dos outros homens e dos limites
da realidade. O futuro é promissor, o progresso não terá fim. Com a oposição
entre velho e novo mundo; o velho, déspota, o novo, da inocência moral; a
revolução é conclamada em nome da filosofia da história. Ela é o novo Messias
livre de qualquer sanção.
No
entanto, o século XX longe da liberdade, nos traz o abismo. Abismo sem fim,
prosseguido de vãs esperanças que só resultarão numa crise mimética de escala
mundial. A deusa liberdade cobra o seu preço, e o seu sacrifício pede (e pedirá
ainda mais) sangue. A liberdade produz tiranias.
6. A
segunda modernidade e a revolução das elites: o poder integrado
O
nacionalismo, o desenvolvimento técnico, a racionalização da vida, o entusiasmo
com o futuro e o caldo de relativismo cultural que antecipa a barbárie
(STEINER, 1992), levam a humanidade a beira do abismo no século XX. Otimista
com o futuro, embriagado de expectativa pelo paraíso próximo – livre de todos
os males e limites –, os modernos se depararam não com a paz perpétua, mas com
a violência aniquiladora, que destrói os corpos e mutila o cotidiano. Duas grandes
guerras, as tentações totalitárias, genocídios, holocaustos, ditaduras que
matariam mais do que quaisquer outras na história da humanidade, desagregação
social, anomia, desenraizamento. A euforia virou frustração, mas o sentido dado
pela busca da libertação diante dos céus e dos outros homens continua. Agora, o
mundo melhor do reino da liberdade é fragmentado.
No
final do século XIX, havia um crescimento da classe operária e das cidades no
Reino Unido. Os velhos liberais whigs não conseguiam representar as demandas
reformistas dessa classe insurgente, tampouco tinham estendido o conceito de
liberdade (marca essencial de todo movimento de esquerda desde os jacobinos).
Era também um período de reformas, com a necessidade latente de reformas
trabalhistas diante das consequências da segunda revolução industrial. Nesse
sentido, foi criado no final do século XIX o Labour Party (Partido
Trabalhista), que tomou o protagonismo dos whigs na segunda década do século
XX. Os seus principais atores de formação foram: o Partido Independente do
Trabalho, a Federação Social-Democrata, o Partido Trabalhista Escocês e a
Sociedade Fabiana.
Em
1884, em Londres, Edward Pease e amigos fundaram a Sociedade Fabiana. Os
fabianos eram socialistas que defendiam reformas no capitalismo e rejeitavam a
ideia de revolução. Contrários à luta de classes marxistas, eles defendiam que
através de reformas o capitalismo se aproximaria do socialismo. Os fabianos
inspiravam-se em Stuart Mill e defendiam um estado de bem-estar, com um seguro
universal de saúde, salário mínimo, direitos trabalhistas e controle de
natalidade. Vários escritores e intelectuais renomados estavam ligados a
sociedade Fabiana: H.G. Wells, Bernard Shaw, Graham Wallas, Leonardo Woolf,
entre outros. Em 1895, quatro fabianos estavam entre os fundadores da London
Economic Schools: Sidney Webb, Beatrice Webb, Graham Wallas e Bernard Shaw. Os
fabianos tinham entrada no mundo intelectual e político, e suas ideias
convergiam com as transformações da década de 1900, marcada por reformas. O seu
projeto se aproxima de um “socialismo liberal” que será a base para o poder
integrado do pós-guerra de 1945.
A
influência dos fabianos chegou aos Estados Unidos e, em especial, a Harvard.
Walter Lippmann, um dos escritores dos famosos quatorzes pontos de Wilson, foi
aluno em Harvard do fabiano Graham Wallas e do progressista Felix Frankfurter.
Com Wilson, há uma aproximação entre este mundo intelectual e a política, ao
mesmo tempo em que, os progressistas vão se assimilando ao partido Democrata.
Durante a primeira guerra mundial, Walter Lippmann, Felix Frankfurter (futuro
ministro da suprema corte nomeado por FDR) e Franklin Delano Roosevelt serviram
no mesmo departamento da marinha.
O
partido democrata continua com sua base de sustentação popular e agrária no
sul, mas quem comanda o partido são os progressistas do norte. Ligados ao
reformismo trabalhista, estes não defendem mais o liberalismo clássico como
contraposição ao formato hamiltoniano dos republicanos na segunda metade do
século XIX, mas sim um “modern liberalism”.
O
liberalismo moderno significava a defesa de uma nova concepção de liberdade. O
psicanalista Erich Fromm escreveu em 1941 o livro O Medo da Liberdade. Ele
afirma que há dois tipos de liberdade: “liberdade de” (negativa) e “liberdade
para” (positiva). A “liberdade de”, para ele, significa o homem se tornando
consciente de que existe no mundo e age, pois agora tem liberdade em ser algo
(liberdade de religião, liberdade de ir e vir, etc.). Da “liberdade de” do
início da modernidade rumamos para a “liberdade para”, que significa a expansão
da cultura no sentido de termos responsabilidade para ser como desejamos.
Esse
tema foi retomado e ficou famoso no ensaio do liberal Isaiah Berlin: Dois
Conceitos de Liberdade. A liberdade negativa é o não-impedimento arbitrário a
ação do indivíduo que só lhe diga respeito. Ou seja, está ligado a ideia
nascente de liberdade como não-interferência do poder estatal (na peleja contra
o absolutismo). A liberdade positiva é a garantia de condições para o indivíduo
agir de modo que tenha possibilidade atingir seus objetivos. Logo, está ligado
ao conceito de igualdade de oportunidades e entra no campo social. Para ser
livre, uma pessoa precisa também ter oportunidades e se desprender de qualquer
tipo de limitação por classe, sexo, etc.
Essa
divisão pode ser interessante do ponto de vista tipológico, mas ela é apenas um
arcabouço que não entra nas artérias das histórias ocorridas, pois lhe falta a
perspectiva morfológica. O que escapa a essas definições é o conteúdo histórico
e escatológico da ascensão da ideia de liberdade como centro da vida humana. A
ordem liberal ascende como crítica do absolutismo, mas ele está, na verdade, em
reciprocidade a este, pois o que dá unidade ao processo é o processo de
secularização de acordo com uma nova concepção de tempo histórico, diante de
transformações materiais (desenvolvimento do comércio e das cidades), técnicas
(melhoras tecnológicas), científicas, religiosas (divisão da cristandade),
sociais (quebra da estrutura estamental), políticas (ascensão das monarquias
absolutistas) e culturais (renascimento, humanismo).
Portanto,
a ascensão da “liberdade de” é uma resposta ao estado absolutista dentro de um
processo ao qual ambos pertencem, criando uma unidade que só pode ser
contemplada através da escatologia. Como mostramos, os pressupostos da ascensão
da liberdade negativa é uma nova percepção do tempo histórico que nos torna
senhores do mundo e do futuro. Se assim somos, por que veríamos dignidade na
pobreza? Por que veríamos perdas e ganhos em cada função na sociedade? É
evidente que o próximo passo dentro dessa nova percepção é procurar condições
que mitiguem as desigualdades sociais para que cada indivíduo tenha sua
liberdade assegurada com o dinheiro para se fazer. A partir daí, evidentemente,
esse campo seria ampliado para cultura. Se nosso tempo histórico é o do domínio
das coisas materiais, separadas da transcendência, por que veríamos alguma
unidade no real? E se não há unidade no real, por que aceitar a realidade como
ela sempre foi? Donde só se pode pensar que o homem não é um homem, e a mulher
não é uma mulher, ambos são construções sociais, adaptáveis, que devem ser
livres e superar a falta de liberdade imposta pela cultura através da tradição.
A liberdade negativa só se separa da liberdade positiva como análise
tipológica, não nos símbolos da história. O que faz ascender a primeira é o
mesmo sentido do tempo histórico que faz a segunda vir à tona, enquanto luta
contra o “machismo”, “sexismo”, “desigualdade de gêneros”, etc. Ambas são o
mesmo processo histórico que pode ser enunciado neste lema: libertar-se dos
céus, libertar-se dos outros homens, libertar-se da realidade.
Assim,
para os homens serem livres, eles precisavam ter igualdade. O liberalismo
moderno americano sustenta a ideia de igualdade como centro do conceito de
liberdade civil, defendendo ampliação de direitos, leis trabalhistas, busca por
justiça social e uma economia mista. Assim, o governo não deveria só cuidar da
segurança, mas deveria ampliar gastos com saúde, educação e promover o
desenvolvimento.
Na
economia, o novo liberalismo dos democratas irá defender algo mais próximo de
um estado de bem-estar a partir do New Deal de Franklin Delano Roosevelt na
década de 1930. A maior parte dos integrantes do ‘brain trust’ de Roosevelt
eram progressistas, keynesianos e defendiam um governo promotor do
desenvolvimento e da igualdade. Roosevelt definia um partido liberal como
aquele que acreditava que, para além dos homens e das mulheres individuais, o
governo tinha o dever de encontrar soluções para os novos problemas que
apareciam. Os novos liberais americanos acreditam que só a partir dos poderes
do governo o indivíduo poderia ser livre, desfrutando da vida e buscando a
felicidade.
Durante
todo século, o Democrata vai se tornando um partido de esquerda. A partir da
influência intelectual (principalmente Fabiana), o partido do modern liberalism
aproxima-se da Social-Democracia europeia. O que lhes diferem é a realidade
sobre a qual trabalham suas ideias, pois a tradição americana do self-made man e
forte politização da sociedade civil não permitem determinados desdobramentos.
É a partir do modern liberalism e da ampliação da base conservadora no GOP que
começa a se segmentar a gramática política americana, onde ser liberal
significa ser de esquerda e ser conservador de direita.
A
ascensão do Labour Party no pós-guerra de 1945 no Reino Unido e a supremacia do
legado de Roosevelt e do liberalismo moderno americano trazem a vitória do
liberalismo-social e impulsionam a ordem liberal a virar uma ordem
liberal-social. Há uma aproximação entre a esquerda liberal e a
social-democracia, a ponto de não serem praticamente distinguíveis hoje. E o
poder integrado começa a dar seus passos.
A
reconstrução do pós-guerra de 45 foi feito basicamente com o Welfare State
(Estado de Bem-Estar Social). Ele é direta influência do pensamento keynesiano
e tem como objetivos: a) regular o mercado para garantir que ele funcione bem;
b) ampliar os direitos dos cidadãos para questões como saúde, educação,
alimentação e lazer; c) criar igualdade de oportunidades. Para isto, são
desenvolvidas políticas públicas (de distribuição de renda) a partir do inchaço
dos orçamentos com o crescimento dos impostos. O seu prelúdio ocorre ainda na
Alemanha de Otto Von Bismarck, mas encontra sua expressão maior a partir do New
Deal de Franklin Delano Roosevelt na década de 1930. O seu “brain trust” era formado
por homens progressistas que tinham tido contato com os intelectuais ingleses
do Labour Party e os fabianos. No pós-guerra, ele atingiu o seu auge, sendo o
modelo de reconstrução.
O final
da segunda guerra mundial também marca o início da hipermodernidade (termo
utilizado por Lipovetsky) ou da segunda modernidade, pois a base do capitalismo
deixa de ser a poupança e o trabalho e passa a ser o consumo e o desperdício.
Uma época hipermoderna, de exagero, intensidade da crise mimética e
fragmentação. Antes, havia entusiasmo, êxtase com as potencialidades da razão
humana, esperança no reino da liberdade que chegava e crença nas utopias
coletivas. Depois da queda ao inferno com duas grandes guerras e
totalitarismos, o homem moderno volta-se para dentro de si mesmo.
Os
princípios fordistas são deixados de lado, e emerge a organização em redes. A
atividade econômica cria aquilo que Manuel Castells chama de “cultura da
virtualidade”. O capitalismo informacional é financeiro, pouco palpável,
transforma o valor numa realidade paralela aquela sempre palpável.
A
modernidade ultrapassa as fronteiras entre nações, religiões e culturas, numa
espécie de universalismo formal; porém, de maneira paradoxal, vivemos na eterna
desintegração, na cultura do repúdio (onde tudo está sempre a se reciclar,
começar do zero, de novo e de novo). A terceira revolução industrial amplia o
sentimento de onipotência do sujeito. A internet, as redes, o domínio dos meios
de comunicação, que leva a preponderância da imagem no mundo, criam possibilidades
ilimitadas. Na internet, há milhares de sites, bilhões de vídeos. A
multiplicidade de canais dissipa a audiência conjunta a quais todos costumavam
assistir. O sujeito está cada vez mais empoderado, e não reconhece os limites
do mundo. Ao mesmo tempo, não há mais utopia coletiva a se buscar, a esperança
fragmentou-se. A busca da felicidade futura tornou-se perspectiva narcisista
própria. Em busca do efêmero, todos querem o gozo perene e desaprenderam a
lidar com a perda e o infortúnio. Não há pós-modernidade, mas uma
intensificação da utopia moderna que leva a dinâmicas novas e, como no
presságio platônico, encontramos a tirania por só buscar a liberdade, como se
este fosse um princípio absoluto.
Nesse
sentido, 1968 é um símbolo lapidar para emergência do mundo hipermoderno e para
transformação da nova esquerda liberal. A revolta permanente contra a realidade
é marca de 1968, um símbolo compacto do novo estágio do moderno. A base do
capitalismo deixa de ser a poupança e o trabalho, e passa a ser o consumo e o
desperdício. A vertigem de 1968 inaugura um novo dogma de felicidade, adaptado
aos novos tempos, contra a visão restritiva. Agora é proibido proibir, mesmo
que isto seja uma abstração sem sentido. Os seus slogans não morreram com a
falta de poder instituído, mas se tornaram dominantes em toda publicidade do
início do século XXI: “A emancipação do homem será total ou não será”, “A
imaginação toma o poder”, “A insolência é a nova arma revolucionária”, “É
proibido proibir”, “A liberdade do outro estende a minha ao infinito”, “Fim da
liberdade aos inimigos da liberdade”, “A poesia está na rua”, “O sonho é
realidade”, “Sejam realistas, exijam o impossível”. A publicidade atual é filha
de 68.
Os
revoltados de 1968 falavam em nome da liberdade como os revoltados de 1848 ou
de 1789, mas num outro nível. Agora, dizia-se que a liberdade do dinheiro
impedia a total liberdade humana. É um período de transformação dentro da
esquerda intelectual, que, nas próximas décadas, irá abandonar o marxismo
tradicional (mesmo que 68 tenha sido uma revolta liderada por estes e afins) e
o socialismo revolucionário e se ocupará das lutas culturais e em rede, tendo
como referências autores como Foucault, Deleuze e Derrida. Logo depois, há um
simbólico ajustamento entre direita e esquerda que praticamente as dissolve (e
o resultado temos visto hoje). Um encontro que pode ser resumido em três nomes:
Foucault, Hayek e Thatcher.
No
final da vida, Foucault descobriu que as lições de Hayek se encaixavam como uma
luva em tudo aquilo que tinha predisposto suas obras. Como crítico da
modernidade, Foucault foi o mais moderno dos modernos. Para ele, os regimes de
verdade são maneiras de controle social pelos quais se constituem as
instituições. Assim, ele vai a crítica desses regimes em diversas instituições:
na psiquiatria, na medicina, nas prisões e nos padrões de sexualidade. A
realidade é um processo de subjetivação e a verdade só existe enquanto poder
que atua nas instituições como regimes de produção. Nos seus últimos livros,
ele se dedica ao conceito de biopoder, aquele que investe sobre os corpos,
oferecendo dominação e produzindo resistências.
Esse
interesse pela dominação e pela resistência leva-lhe direito a Hayek. Em 1979,
Foucault deu seminários que depois se transformaram no livro O Nascimento da
Biopolítica, em que ele foca na questão do poder e da repressão e dá atenção
especial aos autores liberais. Foucault destaca em especial a seguinte questão:
governamos demais. As revoltas de 1968 tinham mostrado para Foucault que o seu
lema por mais liberdade individual (donde veio a luta pelo direito ao aborto,
casamento gay e outros mais), era uma luta por mais liberdade individual e não
nos moldes da luta de classes marxista. Os integrantes de 68 seriam
pequeno-burgueses para estes. Foucault interessava-se então por outros tipos de
opressão: daquilo que se chamava de realidade e para ele era construção,
voltando-se para os loucos, gays, presos, etc. A opressão não era mais entre um
patrão e um operário mediado pela mais-valia, mas opressão do homem para com
sua mulher, da sociedade para com os gays, dos brancos para com os negros, da
sociedade para com os loucos, etc. E Hayek era, então, um teórico proeminente
da liberdade individual. O biopoder ia além da disciplina e controlava os
corpos, não só a partir das instituições. Era preciso governar menos e liberar
mais. Essa é uma síntese das lutas culturas do que se chama de esquerda hoje.
Uma esquerda liberal que pouco se afasta da renovada direita liberal.
Mais ou
menos nessa mesma época, Hayek servia de inspiração para outro ícone
político-intelectual. Dessa vez, da direita: Margaret Thatcher. A partir dos
anos 1970, o Welfare State tinha dado sinais de crise. Nos países mais ricos,
ocorre uma crise fiscal por causa do excesso de gastos públicos. A economia
extremamente regulamentada também cria dificuldades ao empreendedorismo. Diante
destas circunstâncias, ele torna-se insustentável, por suas formas de
regulação, organização e controle da reprodução social. É neste contexto de
crise do Estado de bem-estar social, que ideias liberais clássicas na economia
voltam à tona, com o rótulo de “neoliberalismo”, apoiado principalmente nas ideias
da Escola Austríaca e na Escola de Chicago.
O
governo mais emblemático e que levou a hegemonia das ideias neoliberais foi o
de Margaret Thatcher, primeira-ministra da Grã-Bretanha entre 1979 e 1990. Para
combater a alta inflacionária, Thatcher elevou os juros e cortou gastos do
governo. Nos anos seguintes, comprou brigas com interesses sindicais e
corporativos, flexibilizando leis trabalhistas. Ela também era uma defensora
das liberdades individuais. Thatcher tinha votado favorável a legalização do
aborto.
Esse
desmonte do Estado de Bem-Estar Social levou a renovação da social-democracia,
que se tornou uma espécie de terceira via: inspiração liberal-social,
defendendo uma economia mista com alguns princípios de liberdade econômica
(privatizações com muitas regulações) e progressista nos assuntos culturais.
Exemplos de governos de terceira-via: Bill Clinton nos Estados Unidos, Tony
Blair no Reino Unido, FHC no Brasil, Felipe Gonzáles na Espanha.
Esquerda
e direita se aproximam. Ambas falam em nome da liberdade, das lutas culturais,
contra qualquer noção de realidade, contra a unidade do real. Discordam aqui e
acolá em questões econômicas e na extensão das medidas sociais. No Reino Unido,
quem legalizou o “casamento gay” (um “tapume” linguístico que tem como
consequência a desestruturação da unidade da família) foi o Partido
Conservador, liderado por David Cameron. Na Alemanha, direita e esquerda
governam juntos, liderados pelas “mãos-de-ferro” de Merkel. As disputas entre
direita e esquerda estão muito mais no campo dos discursos do que das práticas
políticas e culturais. A esquerda, mesmo a mais radical, tornou-se liberal. Ela
pede por liberdade individual tanto quanto a direita, apenas em dimensões
diferentes e em ângulos dispares por sua formação histórica.
Então,
se não há mais pluralidade e a difusão das opiniões foram dissolvidas, o que
está no lugar? O poder integrado ou aquilo que podemos chamar de Estado
socializante. Debord afirma que o poder integrado é a junção do poder
concentrado com o poder difuso. Como um radical de esquerda, Debord não pôde
observar que a democracia liberal não desapareceu, no entanto, a sua substância
baseada na ideia de libertação diante dos céus e dos outros homens só poderia
se transformar em tirania. O poder concentrado é incorporado a essa democracia
liberal, tornando-se ela mesmo a antiga nomenclatura autoritária, mas de
maneira multifacetada, fragmentada e praticamente invisível.
O
coração do poder integrado, para Debord, mora na incontestabilidade absoluta
que a noção de meios e interesses adquiriu dentro do conceito de cultura e
natureza. Neste sentido, o poder integrado é globalista por excelência.
Encontra-se por toda parte, macaqueia a ideia de unidade, e quer fazer de si a
medida de todas as coisas. As políticas elaboradas por ONU, UNESCO e demais
entidades são apenas uma pequena amostra disso. É a realização de uma pretensa
perfeição. Mais desgarrado de suas crenças ideológicas, Debord afirma que o fim
da divisão do trabalho (basicamente a definição de comunismo por Marx na Ideologia
Alemã) é um “júbilo carnavalesco” não tão improvável do próprio espetáculo,
pois o desaparecimento da competência verídica (que prefiro encarar como a
verdade) representa o princípio mesmo do poder integrado, como administrador de
um tempo fragmentado jogado ao léu dos desejos e impérios pessoais (daí
preponderância dos meios e interesses). Boa parte da nova esquerda cultural
celebra isto, dando o nome de “empoderamento”.
Debord
afirma também que não é mais possível distinguir entre o agente secreto e o
revolucionário profissional, pois o segredo generalizado é uma das
características do poder integrado. As outras são: a inovação tecnológica, a
fusão econômico-estatal (no fundo, o bom e velho socialismo – em todas suas
tipologias – nunca passou disso), a mentira sem contestação, e o presente
perpétuo.
Um dos
elementos mais importantes é a supressão do passado, com o empobrecimento da
experiência e da memória, que acarreta a falta de imaginação histórica. Quando
esta não é suprimida pela vontade de poder proporcionada pelos desejos sempre
imediatos e renovados, é instrumentalizado em nome da ideologia política. Ela
se contrapõe ao espírito da história contido na frase de Tucídides: “uma
aquisição para sempre”. Se o presente é a medida de todas as coisas, o real
vira uma percepção momentânea. E o valor vira pose. O poder integrado, de
verdade, vos digo é o Estado socializante, a tirania mais invisível e letal que
já tivemos.
Para
compreender como chegamos nisto é preciso falar de uma “rebelião das elites”.
Em 1994, o historiador Christopher Lasch publicou um livro ao mesmo tempo atual
e profético: A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia. De origem
marxista, Lasch era um crítico voraz do liberalismo. Percebendo as
transformações culturais pós-68 pelo qual os Estados Unidos passavam, ele
começou a fazer análises que fundiam observações marxistas do capitalismo e o
conservadorismo cultural na década de 1970. Sua defesa da família local e
patriarcal contra a imposição nacional das elites, chocou a esquerda e as
feministas, e foi saudada pelos conservadores americanos. Em 1979, escreve A
Cultura do Narcisismo, onde afirma que a ascensão da cultura do consumo leva a
personalidade narcisista: frágil, sem compromissos duradouros (com pessoas e
coletividades), a uma cultura jovem e sem apego a realidade e a
responsabilidade, além do culto da fama. Essa personalidade era uma
consequência da “era da informação” e do declínio da agricultura.
Odiado
por feministas, progressistas, esquerdistas, ou seja, por todo mainstream de
sua época, Lasch também era contrário ao conservadorismo de Reagen, por ser
liberal e oposto a responsabilidade moral dos antigos. Lasch também não se
identificava com a nova direita libertária da época, pois era hostil a economia
de consumo e as transformações que ela trazia. Ou seja, ele estava contra o
aparato progressista dos liberais americanos desde Wilson e Roosevelt, e
contrário também a nova direita insurgente de Buckley e Kirk, pois calcavam
suas explicações na liberdade, no individualismo e na defesa do livre mercado.
Indo
nesse mesmo caminho, em 1994, publica o seu livro sobre as elites rebeladas que
tinham traído o compromisso democrático. O título é pensado propositadamente
para se opor ao ensaio de Ortega y Gasset, pois a rebelião contra os valores da
realidade não é mais das massas, mas das elites. As novas elites são compostas
de várias facetas: econômica, burocrática, midiática, intelectual, tecnocrata,
etc. Eles são a causa da decadência desses valores. A primeira identificação de
Lasch é a transformação dessas elites no pós-industrial. Em especial, a
econômica, tornou-se progressista e promotora de políticas de igualdade que
dissolviam a democracia e se tornavam tirânicos contra a população e negando o
estado da realidade.
Ao
contrário da aristocracia de Ortega y Gasset que este pensava em depositar os
valores contra uma massa sedenta por igualdade, Lasch aponta na “nova
aristocracia” a tirania de um novo estilo de vida. O poder dessa nova elite
está associado a era informacional, ao consumo como centro da vida e a
especialização técnica, que geram mecanismo de controle social (como
propaganda, mídia, escola, entre outros) e o próprio descolamento da realidade.
Esse novo poder é internacional e está ligado a uma dimensão que transcende o
poder nacional, indo de encontro ao desejo dos populares no país.
Por
isto, ele aposta todas suas fichas no conservadorismo populista, que expressa
não a vontade de uma direita elitista e defensora das liberdades econômicas e
também de um estilo de vida refratário, mas a vontade popular que ainda está em
contato primário com a realidade. Em especial, nos campos. Lasch exalta o
populismo de direita e as classes populares como promotora do que ainda resta
de real contra o “politicamente correto” das novas elites. Um grande exemplo
para ele seria Martin Luther King.
O futuro
mostrou-se profético. Como qualquer eleição ou pesquisa demonstra, entre os
mais ricos, os mais escolarizados e os que moram em cidade grande, predominam
posições progressistas, favoráveis ao aborto, ao feminismo radical, a
“igualdade de gêneros”, ao “casamento gay”, a relativização da vida, o desapego
às tradições, à responsabilidade, à família. A resistência a esses valores vem
justamente dos rincões, entre os mais pobres e os que moram em centros menores
ou em áreas agrárias.
As
novas elites possuem controle sobre todos os mecanismos de reprodução da
sociedade. Controlam o domínio do pensamento e da sua reprodução, da mídia, da
política, da sociedade. Tudo isto pode ser averiguado pela opinião comum de
nossos jornalistas e intelectuais, ou sobre o que falam todas as publicidades
de grandes empresas (liberdade contra a realidade). Essa nova elite é global e
o seu poder é o poder integrado. Uma elite desconectada da realidade, da ideia
inicial de democracia liberal e de sua responsabilidade, possuindo o maior
poder já visto na face da terra.
Todavia,
como se desenvolveu esse poder integrado e o que ele é finalmente? O mundo
globalizado e o potencial destrutivo das armas de combate levam ao
desenvolvimento da diplomacia e das relações entre Estados em prol de certos
valores no pós-guerra de 45. O universalismo deste projeto é a filosofia da
história que precisava se tornar consequente ao mesmo tempo em que nasce a
chamada pós-modernidade (para muitos, um aprofundamento do moderno). A
integração do mundo a partir desta utopia moderna universalista já está
pressuposto no projeto moderno, mas esta se desenrola noutro patamar com a
globalização.
Hobbes
dizia que o Leviatã resolveria a guerra entre os homens, mas não a guerra entre
os Estados. A solução lógica seria a criação de um sistema internacional que
impedisse a guerra entre Estados como se eles fossem homens. No século XVIII,
Kant apostava na paz perpétua através do uso da razão e da criação de um
direito internacional onde os Estados respeitassem a soberania uns dos outros a
partir da moral laica civil. Para gerar uma paz perpétua era preciso construir
um entendimento entre os homens sobre os pontos criados pela razão esclarecida.
Se toda humanidade se deixasse guiar pela moral advinda dela, não haveria motivos
para guerra. Está embutida nessa concepção a fundação ética do direito
internacional.
O poder
integrado age sobre a vida, estende-se a qualquer canto do globo e põe em
marcha o projeto de uma civilização biônica e global. Em 1998, no Simpósio
sobre a Relevância política da Paz de Westfália, o então Secretário-geral da
OTAN, Javier Solana, criticou os tratados da Paz de Westfália, que deram origem
a diplomacia moderna, pois dois preceitos fundamentos para um mundo melhor lhe
foram irrelevantes: o conceito de humanidade e a democracia. Para ele, era
preciso superar o paradigma de Westfália, porque seus limites residiam no fato
dele apenas tratar do poder e de seu equilíbrio, ou seja, do reconhecimento das
soberanias, mas não propor as bases para uma comunidade de Estados, o que – em
tese – seria garantia para paz e um mundo coeso. Em síntese, Westfália não
produzia integração entre as nações em torno de certos conceitos.
O
centro da concepção da Europa pós-1945 era e ainda é uma rejeição do princípio
do equilíbrio de poder e das ambições hegemônicas de cada Estado que emergiram
seguindo a Paz de Westfália. Uma rejeição a qual tomou forma de interesses e a
transferência das soberanias nacionais para instituições multilaterais, o que
resultará na União Europeia (UE). A formação dos organismos multilaterais e
supranacionais nas últimas décadas foi acompanhada também de um projeto de
autonomia que pretende ser realizado, agora de cima para baixo. Como na opinião
de Solana, e de tantos outros, não basta fazer um tratado, mas promover e
produzir valores na sociedade, criando um Estado socializante a partir da
democracia liberal.
Como o
avanço tecnológico cria inúmeras possibilidades, e os indivíduos tem cada vez
mais dificuldade de se reconhecerem um no outro na vida em comum, o poder
político se integra a vida cotidiana e projeta sobre ela sua utopia de
libertação. Os valores, as crenças e a visão de mundo promovida são basicamente
semelhantes em cada um desses poderes. O politicamente correto – incentivado – cria
uma novilíngua, pois identificar já pressupõe a exclusão de todo o resto. Para
levar a cabo seu projeto, que creem ser para o bem de toda humanidade,
concentram poder não numa figura ou partido, mas numa relação, o que lhe leva a
toda sociedade sem cair na tentação totalitária.
Não só
as diferenças entre direita e esquerda tem se diluído nas democracias
europeias, como o aumento da influência do governo na economia dos países (o
que é bem diferente do seu tamanho) tem levado a acordos e coincidência entre a
elite política e econômica, o que muitas vezes se desdobra num crony
capitalism. O Estado concentrador das atividades econômicas, e extremamente
regulador, torna os empreendedores de alto porte dependentes de favores e
benesses, buscando favorecimentos contínuos aos seus negócios, diluindo
barreiras burocráticas e terceirizando os riscos. Essa aliança é concretizada
junto à burocracia tecnocrática, que não só age em questões técnicas, mas
formula as políticas públicas de acordo com essa utopia de liberdade.
Assim,
a maioria da população italiana pode ser contrária a legalização do casamento
gay e, ainda assim, a elite burocrática da União Europeia pode ameaçar o país
com sanções por não cumprir o que se chama de direitos humanos (numa nova
concepção de liberdade, igualdade, democracia e humanidade), ao mesmo tempo em
que, as elites italianas também são favoráveis a legalização. Scaraffia e
Rocella em Contra o Cristianismo, insistem numa mudança civilizacional dirigida
pela ONU, de uma tradição religiosa para uma ética laica que imita uma religião
e se impõe a sociedade, negando as raízes cristãs da Europa. Além disso, ela se
fundamenta em si mesma para estabelecer as novas normas de organização de uma
nova mentalidade, mutável pragmaticamente por conivência e interesse.
Portanto,
mais do que uma divisão entre direita e esquerda, o que há hoje é uma oposição
entre as elites progressistas em torno de um poder integrado que tiraniza
invisivelmente e com múltiplas facetas, e o populacho que estranha essas transformações
culturais e vivencia radicalmente outra experiência de vida nem sempre bem
ordenada para beatitude. Não devemos ter ilusões com os duplos. É uma disputa
entre o poder integrado e o populismo que recai frequentemente numa nostalgia
do sacrifício.
7. A
tirania como duplo: vitimismo e nostalgia
A
liberdade se tornou tirania. Mas, toda a construção do mundo moderno é
simplesmente uma farsa? Evidentemente, não. A democracia, a economia de
mercado, a mundialização, trouxe muito bem, como também muito mal. Estar em
casa com tranquilidade, poder desfrutar de segurança e lazer, trocar os bens
livremente, não condenar ninguém sem o devido processo, tudo isto trouxe coisas
muito boas, mas também em sua dimensão ôntica traz outras tantas tentações. É
preciso avaliar esse processo a partir de outra temporalidade: a da
escatologia. Caso contrário, estaremos caindo em mais um voluntarismo
antiliberal (em geral, nostálgico da época sacrificial) e não compreendendo
absolutamente nada. Não há respostas simples ou materiais. A luta é de outro
tipo: é pelo uso da sua liberdade para o direcionamento pelo bem.
Como
falei no primeiro ensaio sobre Girard, o mundo moderno é profundamente mais
cristão e, ao mesmo tempo, menos cristão. Isso ocorre porque seus elementos
centrais são todos da ética cristã, mas o seu desenvolvimento é uma macaqueação
que aparece enquanto projeto de libertação. Assim, o moderno prova o
cristianismo, inclusive, na antecipação de seu fracasso.
Viver
no mundo moderno é experimentar uma época a convite da providência, onde não há
mais proteções sacrificais e que, agora, há uma moral secular possibilitada
pela própria ética cristã, que se preocupa com a vítima e nega o sacrifício.
Entretanto, essa moral não reconhece suas raízes e age cada vez mais na
rejeição ao sagrado.
Se de
um lado temos a elite progressista, propagando a ideologia do Anticristo e
tendo como projeto a busca pela liberdade individual em diferentes extensões,
indo da antiga direita à antiga esquerda; do outro, também não temos coisa
melhor. A nova direita populista é francamente nostálgica da era pagã, confunde
coragem e grandeza com força, apela para uma ordem violenta contra os de fora
quando isto é só afetação. A disputa entre Hillary e Trump é um bom exemplo da
asquerosidade desse duplo.
O
extremista Varg Vikernes afirma que a Europa é filha dos deuses pagãos e que o
cristianismo a conduziu a universalidade secular que destrói todo localismo
hoje. O cristianismo é universalista, pois sua verdade não é local, mas
transcende dentro do próprio seio da história. Nenhum nacionalismo consegue se
ancorar nele. Por isto, o novo nacionalismo ou localismo contra as elites
progressistas é basicamente pagão. Recorre aos mitos originários para dissolver
o globalismo.
Dois
bons exemplos dessa nova direita populista são Putin e Marine Le Pen. O
primeiro apela para os mitos de fundação do povo russo e para uma macaqueação
da honra na violência. A segunda apela para toda mitologia nacionalista dos
francos contra qualquer tipo de universalidade cristã, discursando contra
imigrantes, estrangeiros, etc.
Portanto,
a nossa batalha não é contra a liberdade. Não é optar por um dos campos, caindo
nos jogos do duplo da tirania. A nossa batalha é por usar a liberdade para a
boa orientação da alma. E, para isto, recuperar o sentido do tempo. O que
importa não é triunfar nesse mundo, mas se salvar, ter o perdão divino. Não
lutamos por liberdade, porque Deus já nos deu a liberdade de seguir modelos.
Seguir o modelo de Cristo ou de Satanás. A liberdade já nos foi dada. Nossa
batalha é no seu bom uso e não por uma liberdade criada por humanas, imitativa,
macaqueada, que só pode produzir a tirania e o seu duplo (a nostalgia do
sacrifício).
______
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______
NOTAS
[1] Arianismo foi uma doutrina teológica criada por Ário, na
época da igreja primitiva, que negava a consubstancialidade entre o Pai e o Filho.
[2] Discordo de alguns aspectos da maneira como o assunto é
tratado, no entanto, Max Weber foi um dos principais autores a perceberem a
relação entre a ética protestante e um espírito comercial insurgente.
[3] Sobre isto, já escrevi a respeito:
https://www.revistaamalgama.com.br/02/2016/partidos-republicano-democrata-historia/
Elton Flaubert
Doutorando em história
das ideias (UnB). Estuda a fundação da ONU.