Tecnologia e
liturgia
Igreja moderna
A liturgia é, como a Fé e demais graças, um presente
de Deus. E, como fazemos com as graças, temos a tendência de estragar tudo, de
trocar nossa progenitura por um prato de lentilhas e a Eternidade por uma alegriazinha
boba qualquer agora. Para piorar a situação, os avanços tecnológicos
exacerbaram a tentação de atrapalhar a liturgia. E quando à natureza humana e à
sua amplificação — para o bem e para o mal — pela
tecnologia se junta a crise litúrgica que seguiu o Concílio Vaticano II, com
invencionices delirantes tomando o lugar do que manda a Igreja e maus hábitos
se instalando e sendo tratados como a regra, a situação fica realmente difícil.
Ensinou-nos o Santo Padre Bento XVI que, das más modas
que seguiram a reforma litúrgica paulina, a mais grave é a celebração da Santa
Missa com o padre virado ao contrário, enfiado atrás do altar e olhando para as
pessoas, substituindo a multidão que se dirige a Deus por um círculo fechado em
si mesmo.
“Círculo fechado em si mesmo” é exatamente o que o
Pecado Original faz de cada um de nós. Adão, que antes da Queda referia-se a
Eva como “carne da minha carne, sangue do meu sangue”, imediatamente após a
Queda tratou-a como “a mulher que pusestes ao meu lado”. Ele se afastou dela,
fechou-se em si mesmo. E a liturgia, decididamente, não pode ser algo fechado.
Ao contrário, ela é e tem que ser percebida como a maior de todas as aberturas:
a abertura do temporal ao Eterno, do humano ao divino, do finito ao Infinito.
Os outros erros e problemas litúrgicos são, em enorme
medida, frutos do erro tão bem apontado por Sua Santidade o Papa. É quando o
padre, enfiado atrás do altar, vê-se olhando para o povo que a humaníssima
tentação de agradar a todos, de dar atenção às pessoas em detrimento de Deus,
torna-se ainda mais forte. É quando o padre vê diante de si aquela multidão,
que tanto parece uma plateia, que lhe parece evidente que eles devem ser
capazes de ouvir o que ele tem a dizer, de — pior ainda — ouvir
sua voz. Ora, a voz que deve ser ouvida é a da Igreja, a de Deus, certamente
não a do padre (ou do comentarista, ou da Pastoral Litúrgica, ou de quem quer
que seja que tenha uma voz particular). E, finalmente, é por se formar este
estranho círculo que surge a tentação de “equilibrá-lo”, forçando a assembleia
a um protagonismo exagerado em que das respostas passa-se a gestos (“balançar
folhetinhos”, etc.) e dos gestos a, quase, coreografias. Ao mesmo tempo, o
presbitério nega seu nome e se enche de leigos, “equilibrando” os dois lados
dos estranhos parênteses de gente dentro dos quais jaz uma mesa, usada à guisa
de altar e apontando para as pessoas em volta ao invés de para Deus.
Vejamos, então, como a tecnologia moderna literalmente
amplia e ilumina estas tentações, afastando ainda mais a liturgia do seu
verdadeiro espírito e tornando ainda mais difícil a participação real e
frutuosa, que ocorre não quando nos mexemos muito, mas quando nos unimos ao
Sacrifício Redentor, ali tornado novamente presente de forma incruenta para
nossa santificação.
Para isso, convém dar uma régua de medição. A mais
perfeita, claro, é a que o próprio Espírito Santo suscitou na Igreja ao longo
dos séculos: a tecnologia da arquitetura sacra clássica, perfeitamente adequada
à liturgia e a seu espírito.
Quando visitamos uma igreja pré-moderna, vemos alguns
elementos arquitetônicos comuns, perfeitamente adequados à liturgia. O primeiro
deles é a posição do altar. O altar-mor, em uma igreja clássica, é o ponto
focal de toda a edificação; quando entramos na igreja o nosso olhar
imediatamente é atraído para a extremidade oposta à da porta, em que o
altar-mor, como uma imensa escada, aponta o caminho do Céu. No primeiro degrau,
o túmulo dos mártires (dentro da pedra do altar há sempre relíquias de
mártires); no segundo, o próprio Senhor Sacramentado, descido dos Céus, para
nos “puxar para cima”; nos demais degraus, os focos de luz das velas apontando
sempre para cima, até encontrarmos, no lugar para onde somos chamados a ir, a
imagem de alguém que, nas palavras de São Paulo, “venceu a corrida”: um Santo,
que um dia esteve como nós diante do altar e hoje, pela graça de Deus, está
sobre ele.
Recuando deste ponto focal absoluto, que é o
altar-mor, descemos três degraus “humanos”; assim como os “degraus” gigantescos
do altar que só as almas sobem, os três degrauzinhos do presbitério, que o
corpo do padre agindo na Pessoa de Cristo sobe e desce durante a Missa, fazem
parte desta escalada do profano ao Sagrado, do transitório ao Permanente, do
finito ao Infinito. O padre sobe os degraus como um ser humano que se aproxima
de Deus, e os desce como Deus que se aproxima dos homens; fala a Deus e fala
aos homens, virando-se para o altar ou para a assembleia.
Recuando ainda um pouco, encontramos a Mesa de
Comunhão, em que ocorre para nós o mais íntimo e (quando percebemos o que
realmente ocorre) apavorante encontro do humano com o Divino: a recepção do
Corpo e Sangue do próprio Senhor, do mesmíssimo Corpo que nasceu da Virgem
Maria e foi elevado na Cruz. A Mesa de Comunhão parece uma cerca, mas não é. Na
verdade, ela é uma rampa de lançamento, verdadeiro degrau inicial daquela mesma
escada. Ela separa a nave da igreja, lugar onde fica o profano que busca o
Sagrado, do presbitério, lugar do Sagrado que vem ao encontro do profano. Ao mesmo
tempo, quando nos ajoelhamos junto a ela para receber o próprio Senhor
sacramentado, somos elevamos pela graça divina e escalamos, puxados por Deus,
aquela escada mística de Jacó cuja figura nos contempla do altar-mor.
Aquém da Mesa de Comunhão, estamos na nave da Igreja:
um amplo e altíssimo espaço vazio (a adição de bancos e cadeiras é muito
recente), coberto apenas de luz e de cor. Dos lados, abaixo dos vitrais, outros
altares, versões pequenas do altar-mor, servem para que o Santo Sacrifício possa
ser oferecido simultaneamente por vários sacerdotes; neles, ainda, a Missa de
um padre solitário não interfere na meditação de quem esteja a rezar sozinho ou
a adorar o Santíssimo Sacramento. Cada fiel é livre para participar de uma das
várias Missas, cada uma em um ponto da liturgia, ou para ir de Consagração em
Consagração, ou ainda para ignorá-las todas, ou mesmo participar à distância de
todas. Não há nem pode haver ali nenhum círculo fechado; ao contrário, cada
fiel está aberto para todos os lados, e vários focos de abertura do temporal ao
Eterno — em cada altar lateral — brilham
simultaneamente. É um lugar de encontro, um “parlatório” múltiplo e variegado
dos muitos homens e o único Deus, em que cada homem não deixa de ser homem, mas
não faz nem de si mesmo nem dos demais homens o foco de sua atenção.
Acima de todos a luz do sol entra, filtrada e colorida
pelas imagens sacras dos vitrais. A luz serve para que possamos enxergar. Mas
numa igreja clássica há dois tipos de luz: a que Deus faz, que entra pelos
vitrais, e a que o homem faz para Deus, concentrada no altar, na forma de
velas. A luz de Deus é mais forte e mais bela, mas a Igreja, na sua sabedoria,
a filtra em cores. Os vidros são todos coloridos, porque a luz nua do sol
ilumina demais. Não convém haver tanta luz, porque a igreja não é tanto lugar
de apreciação sensível quanto de apreciação mística: o que acontece de mais
importante ali é invisível, e a beleza das luzes coloridas dos vitrais só faz
sublinhar o Mistério maior que ocorre sobre o altar, ao emoldurá-lo em cores.
Do mesmo modo, as paredes de uma igreja clássica muitas vezes são revestidas de
pinturas coloridas, que se unem à luz dos vitrais para nos dar ao mesmo tempo
uma verdadeira aula — pois cada figura que ali vemos tem seu
sentido e sua simbologia — e um banho de beleza em estado bruto. A
vista da nave da igreja, a vista do lugar de onde nós, leigos profanos, nos
aproximamos do Infinito e Sagrado, é a mais bela vista do mundo. Na verdade, a
beleza é bem maior vista da nave que do próprio presbitério, de onde
praticamente só se pode ver o próprio altar, aquela escada altíssima que lembra
ao humano sacerdote o quanto ele tem que subir, o quanto lhe falta escalar para
alcançar a santidade daquele outro servo de Deus cuja imagem está no mais alto
dos degraus.
Na própria nave, vemos ainda dois púlpitos, um de cada
lado. São balcõezinhos altos, para uma só pessoa, donde o sacerdote pode falar
e ser ouvido, por estar acima das cabeças dos presentes. O som do púlpito
alcança a igreja inteira, e se a multidão estiver — como deve estar — silenciosa,
cada palavra dita dali é ouvida sem dificuldade por todos os presentes.
Por cima da porta principal, com a mesma tecnologia do
púlpito, o coro ao mesmo tempo esconde as faces e eleva as vozes dos cantores e
organista: a música parece vir de toda parte e de lugar nenhum ao mesmo tempo.
Dos lados do coro, mas fora da nave e muito mais altos, os sinos das torres
levam para o mundo lá fora a mensagem de salvação da Igreja.
Vejamos agora como a tecnologia moderna perverteu
aquilo que o Espírito Santo, ao longo dos séculos, suscitou na Igreja.
A tecnologia mais problemática para a liturgia é a
eletricidade. Costumo dizer que se acabasse a eletricidade, a imensa maioria
dos problemas litúrgicos desapareceria instantaneamente; quem nunca passou pela
experiência de ir à Missa e, devido a um blecaute, ter a deliciosa surpresa de
participar de uma Missa infinitamente mais adorável e santificante, celebrada
sem eletricidade para atrapalhar?
A eletricidade tem duas maneiras principais de
estragar a liturgia, amplificando as tentações até o ponto em que elas escondem
a liturgia e fazem crer que outra coisa, completamente diversa, esteja a
acontecer ali.
A primeira delas é a amplificação sonora. Os efeitos
da amplificação sonora sobre a liturgia são devastadores. Como vimos
anteriormente, as soluções da tecnologia clássica da Igreja fazem com que — havendo
silêncio da assembleia — a voz do sacerdote falando do púlpito, bem
como as vozes do coro e do órgão, cheguem sem problemas a todos os ouvidos. Não
é, todavia, audível o que o padre diz quando está diante do altar. O próprio
Concílio de Trento anatemizou quem dissesse que estas palavras deveriam ser
audíveis pela assembleia, porque não se trata de um detalhe irrelevante, mas de
um ponto de teologia importantíssimo: o que o padre diz junto ao altar não é
para nossos ouvidos; ele está se dirigindo a Deus, não a nós. Ele fala, sim, em
nosso nome, mas as palavras que enuncia são as palavras da Igreja, que temos no
Missal. Ele não diz outra coisa, não inventa nem pode inventar nada, e, aliás,
por que o faria, se é só Deus quem o ouve? Quem quer saber o que ele diz pode e
deve abrir o Missal e ler, sem ter como cair na tentação de achar que é para si
que fala o sacerdote.
Já, por outro lado, as palavras de Deus para o homem,
na Liturgia da Palavra e na homilia, são e devem ser audíveis: para isso serve
a posição elevada do púlpito, que ao mesmo tempo faz chegar a voz do sacerdote
a toda a igreja e força a assembleia ao silêncio.
Quando a voz do sacerdote é amplificada, desaparece
completamente a distinção que já se tornara difícil de perceber com a estranha
moda de colocar o padre atrás do altar, eliminando a clareza de seus atos ao
não mais fazê-lo, como manda o Missal, voltar-se para a assembleia ou para o
altar. Tudo o que o sacerdote diz passa a ser enorme, altíssimo, tonitruante e,
pior de tudo, aparentemente voltado aos fiéis. É como se ele estivesse falando
com eles todo o tempo, quando na verdade ele é o intermediário entre eles e
Deus, e ora fala pela Igreja a Deus, ora fala por Deus a Seu povo. Com um
microfone, a tendência é desaparecer o sacerdote — que age na
Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo — e surgir a pessoa do padre
Fulano, que deveria desaparecer completamente durante a Santa Missa para dar
lugar ao Cristo.
Um frade já idoso uma vez comentou comigo o quanto lhe
agastava ver que nas fotos dos convites das raras ordenações de sua congregação
nunca o novo padre aparecia com o Cálix, como se costumava fazer. Ao contrário,
disse-me ele, todos posam para a foto com um microfone na mão Poucas coisas são
tão representativas da nossa sociedade do espetáculo quanto o fetiche do
microfone; as pessoas gostam de ver-se fotografadas segurando um microfone à
frente dos lábios, e dar ao vulgo um microfone é incitá-lo a falar. O mesmo
ocorre, é claro, com os sacerdotes, que são seres humanos como todos nós, mas
que sofrem tentações muito mais fortes por serem troféus muito maiores para os
demônios. O microfone é uma tentação enorme, que muitas vezes se disfarça e se
desculpa. E aí temos o padre que manda um exército de ministros extraordinários
ilicitamente distribuir o Santíssimo em tempo recorde nas Missas dominicais,
para em seguida sentar-se e ficar por vinte minutos falando platitudes ao
microfone, convencido pela própria vaidade e pelo demônio de estar ajudando na
ação de graças dos fiéis. Ora, ele está calando a voz do Senhor ao encher a
nave com a própria voz, e está pregando novamente na cruz as mãos do Senhor ao
substituir ilicitamente suas mãos sacerdotais, ungidas pela Igreja para
distribuir a graça divina, pelas mãos profanas de leigos, com a desculpa do
tempo gasto… que ele mesmo gasta com seu discurso vazio ao microfone logo em
seguida.
Do mesmo modo, com a voz amplificada é facílimo e
comuníssimo que o padre invente, parafraseie e improvise ao longo de toda a
liturgia. De um inútil e desrespeitoso “bom-dia” no início da Missa a longas
elucubrações e paráfrases em cada um dos já demasiados “ad libitum” da liturgia
paulina, o prazer de ouvir a própria voz leva o padre a cair na tentação de
calar a Igreja para falar pessoalmente, de negar o Cristo para ele mesmo
crescer na atenção da assembleia, substituindo e adicionando suas palavras todo
o tempo.
A amplificação ainda apresenta outro fator
tremendamente perturbante: o som — como o do coro na tecnologia litúrgica
clássica — vem de todos os lugares e de lugar nenhum. Todos ouvem a
voz tonitruante que sai de inúmeras caixas de som, mas descobrir de onde ela
vem originalmente, onde está a pessoinha que fala ao microfone, demanda
atenção. Com isso, a liturgia — já desprovida dos marcadores
visuais e auditivos mais evidentes, como mencionei acima — torna-se
algo ainda mais confuso. O som amplificado é um nevoeiro auditivo, que obnubila
qualquer direcionamento da atenção ao fazer com que toda voz venha de todos os
lados ao mesmo tempo.
Em uma situação moderna normal em que haja
amplificação — um espetáculo musical, por exemplo — é
normalmente claro de onde vem o som, por se tratar de um monólogo completamente
natural. É uma pessoa, ou uma banda, que dirige a uma plateia o som que produz.
Já na liturgia, como vimos, o som só deveria ser dirigido do altar à assembleia
parte do tempo; o sacerdote é, ele também, membro da assembleia, e é em nome
dela que ele se dirige ao altar. O distante sussurro do sacerdote junto ao
altar, com uma assembleia perfeitamente silenciosa diante do magno Mistério que
ali se torna presente, deveria ser para todos nós ocasião de unirmo-nos em
oração a ele, de, nós também, virarmos para o altar e rezar. Do mesmo modo, a
voz dele vindo do púlpito deveria nos levar a prestar atenção e fazer silêncio.
Mas quando o que temos é uma voz tonitruante que vem
de todos os lados ao mesmo tempo, a tendência humana é, ao contrário, diminuir
a atenção; a voz se torna um ruído ambiente, não uma voz que fala conosco.
Afinal, quem fala conosco se dirige a nós, e a incorporeidade daquela voz a
torna impessoal.
Quando diminuímos a atenção, fatalmente surgem
conversas paralelas, que por sua vez levam a aumentar ainda mais o volume
daquela voz que vem de todos os lados ao mesmo tempo, tornando-a ainda mais
confusa pela soma de dezenas de cochichos paralelos igreja afora.
Vejam que armadilha demoníaca: para o padre, o
microfone tenta a aumentar-se e diminuir ao Cristo, a fazer da liturgia um seu
espetáculo pessoal; já para a assembleia, a amplificação faz com que o padre
desapareça e com que o que ele diz seja algo a que se presta menos atenção.
E a amplificação artificial, para piorar a situação,
não se restringe ao sacerdote. Do mesmo não-lugar de que vem a voz do padre,
vêm as vozes, violões e percussões da bandinha de música, que igualmente cai na
tentação de se achar em um espetáculo, que já vitimara o padre. E tome cantor
falando platitudes ao microfone com a desculpa (para si mesmo) de estar
ajudando as pessoas a fazer ação de graças, e tome tocador de violão a fazer
arpejos durante a Consagração para “criar um climinha”, como se ele fosse um
pianista de cinema mudo. E tome invencionices melódicas, rítmicas e harmônicas,
normalmente ainda pioradas quando, por qualquer razão que seja, a bandinha está
em um lugar em que ela esteja à vista da assembleia. A tentação de ser a
estrela, de dar um espetáculo, é uma tentação demasiadamente presente para que
possamos nos dar ao luxo de ignorá-la como vem sido feito na maior parte das
paróquias.
E, finalmente, ainda há as outras vítimas do
microfone: as pessoas que são levadas, por razões pseudo-pastorais, a ir lá na
frente falar alguma coisa (leituras, comentários, avisos, tanto faz), numa
espécie de contraponto geralmente forçado, constrangido e tímido aos
espetáculos em competição do padre e da bandinha. Estes falam longe do
microfone ou falam alto demais, usam enunciações e prosódias estranhas, e
fazem, em geral, com que se perca ainda mais o senso de sacralidade da
liturgia. Já é ruim que haja o que foi descrito acima; quando se tem
regularmente breves interrupções em que alguém tem que aprender em pleno vôo
como se usa o microfone, a pouca fluidez litúrgica que ainda sobrava em geral
desaparece completamente, fazendo com que recrudesçam os papos paralelos
(tornados possíveis pelo volume da amplificação) e diminua ainda mais a atenção
geral ao que realmente está acontecendo ali.
Finalmente, a eletricidade ainda tem efeitos sonoros
decorrentes não da amplificação, mas do uso de aparelhos de ar condicionado e
ventilador. Estes aparelhos produzem um ruído a que se chama “ruído branco”,
que consiste em um ruído contínuo e aleatório que se distribui por um amplo
espectro. O ruído branco tem a propriedade de fazer desaparecer, por mistura, a
clareza dos demais sons. É por isso que é dificílimo ouvir o que dizem na mesa
ao lado em um restaurante lotado, por exemplo: o ruído branco resultante da soma
de todas as conversações faz com que aquela voz a um metro de distância, que
ouviríamos perfeitamente em um ambiente silencioso, simplesmente desapareça. Na
igreja, o ruído branco dos ventiladores ou ar condicionado faz com que as
conversas cochichadas sejam inaudíveis, e não atrapalhem individualmente quem
está ao redor. Ora, isso faz com que haja mais e mais conversas cochichadas, o
que aumenta ainda mais o volume do ruído branco, pela soma dos cochichos ao
ruído das máquinas, e mistura mais ainda o som do microfone, levando os
técnicos a aumentá-lo ainda mais, o que por sua vez leva as pessoas a ter ainda
menos pejo de conversar, etc., num ciclo vicioso antilitúrgico verdadeiramente
demoníaco. Comparem isso com uma igreja forçada ao silêncio para ouvir a voz em
amplificação que vem do púlpito, e fica fácil entender do que estou falando.
A outra maneira pela qual a eletricidade estraga a
liturgia é pela iluminação elétrica. A tecnologia luminosa clássica da Igreja
consiste, como vimos anteriormente, na combinação da luz branca e nua, porém
pequena, das velas com a luz forte, porém matizada e colorida dos vitrais. As
velas atraem a atenção para o altar, enquanto as imagens dos vitrais suscitam a
meditação em quem as contemplar, enquanto inundam a igreja de uma luz que — como
o som do coro — é suave e parece vir de todos os lados ao mesmo
tempo.
Já a iluminação elétrica que hoje encontramos na maior
parte das paróquias é extremamente semelhante à que vemos, por exemplo, em agências
bancárias: uma luz forte, branca, dura e brutal, que ilumina tudo por igual e a
tudo faz igual. A nave da igreja torna-se igual ao presbitério, que se torna
igual ao altar (aliás desaparecido na forma de uma mesa, muitas vezes difícil
de encontrar). As velas desaparecem, com seu brilho muitas vezes ofuscado até
mesmo pelos reflexos das luzes fortíssimas do teto nos seus próprios
candelabros, por exemplo. Todo o simbolismo das velas se perde, toda a riqueza
das mensagens de luz dos vitrais desaparece, e a igreja toda se vê igualada,
toda ela perfeitamente iluminada e perfeitamente indigna de atenção, como uma
agência de banco. Cada sujeirinha do chão é visível, mas o altar é algo que se
precisa procurar (mormente quando o som também vem de todos os lados ao mesmo tempo!).
As roupas das pessoas da assembleia aparecem plenamente, com suas cores e
texturas a despertar curiosidade, à luz brutalista da eletricidade, mas as
vestes litúrgicas — que numa igreja clássica refletiriam sozinhas
as luzes das velas e atrairiam a atenção de todos — parecem uma
decoração de um canto da igreja; um espetáculo de teatro teria uma diferença de
iluminação entre o palco e a plateia, mas nas paróquias de hoje o presbitério e
a nave são banhados pela mesma luz dura e feia, sem que se saiba o que é o quê.
A luz elétrica, assim, como a amplificação artificial
do som, mistura tudo e elimina as diferenças, trabalhando ativamente para
frustrar a liturgia da Igreja. Se temos consciência destas tentações que venho
de descrever, fica mais fácil tentar vencê-las. Se não tivermos, todavia — e
não a ter é a regra hoje em dia — a tendência é cairmos cada vez
mais fundo nelas.
Que São Gregório Magno, São Pio V e São Pio X nos
ajudem a vencê-las, sempre!
Carlos Ramalhete