A Sagrada
Escritura
Dom
Henrique Soares
I -
Algumas observações preliminares
A Bíblia
é um livro que parece complicado. Sua formação foi muito lenta e muito
complexa. A maior parte de seus livros são obra de muitas mãos e a composição
de alguns deles durou séculos. Por isso, não é fácil lê-la e a tentação do
fundamentalismo é grande. Mas, o fundamentalismo destrói o verdadeiro sentido
das Escrituras, exatamente quando parece ser mais fiel à Palavra de Deus!
Contudo, se tivermos algumas chaves de leitura, será mais fácil compreendê-la.
Vejamos.
1 - As
Escrituras Sagradas são um conjunto de livros, escritos em épocas, estilos e
situações diferentes. Por exemplo:
• épocas
diferentes: as partes mais antigas das Escrituras podem vir do século XII antes
de Cristo, lá pelo ano 1100 aC, enquanto o último livro do Novo Testamento, a
Segunda Carta de Pedro, é do final do século I ou início do século II d.C.
• estilos diversos: o livro de Josué conta a entrada do povo de Israel de modo
triunfal e heroico, os 11 primeiros capítulos do Gênesis são uma meditação em
forma de parábolas, o livro de Jó é uma historinha como a nossa literatura de
cordel, os salmos são poemas, Isaías e Jeremias são coleções de oráculos, há
cartas, narrações populares, como a do profeta Eliseu (cf. 2Rs 2, 19-25;
6,1-7), e histórias para despertar a piedade, como as de Ester, Judite, Jonas e
Tobias.
• situações diferentes: algumas partes foram escritas em momentos de glória,
como alguns provérbios mais antigos; outras, em momento de perseguições e
sofrimentos, como o Livro de Daniel.
2 - Mais
ainda: os livros das Escrituras têm preocupações diferentes, objetivos
diversos:
• os 11
primeiros capítulos do Gênesis querem refletir sobre por que Deus criou tudo,
qual o papel do homem e por que o mundo é marcado pelo mal e pela morte...
• o livro de Jó quer matar uma charada: por que o homem de bem sofre?
• os livros dos Macabeus querem consolar e animar o povo nas tribulações;
• as cartas de São Paulo querem catequizar as comunidades e resolver os
problemas que nelas surgiam;
• os evangelhos querem anunciar que Jesus é o messias morto e ressuscitado....
3 - Os
autores humanos das Escrituras são muitíssimos: alguns livros foram escritos
por um autor sozinho; outros, escritos por muitos autores, outros ainda, por
autores desconhecidos. Nem sempre o nome do autor que aparece é o do autor
verdadeiro. Por exemplo:
• os
cinco livros do Pentateuco foram escritos por vários autores e costuram quatro
livrinhos diferentes que contavam, cada um do seu jeito, as mesmas histórias;
• o livro de Tobias é de um autor só, mas não sabemos quem é ele;
• o livro dos salmos tem muitos autores; já o livro do Eclesiástico é de um tal
Jesus ben Sirac;
• a carta aos Hebreus não é de São Paulo nem a Segunda de Pedro é de São Pedro.
4 - Os
autores, quando escreviam, não sabiam que estavam escrevendo a Palavra de Deus,
assim, escrevem no seu linguajar, do seu jeito, com suas capacidades e
limitações. Por isso, na Bíblia, é possível encontrar erros de geografia, de
história, de biologia, etc. ...
5 - Se
formos resumir a história da formação das Escrituras, poderíamos afirmar que o
primeiro modo como deu-se a transmissão da revelação de Deus foi a tradição
oral. Somente a partir do rei Davi é que as Escrituras começaram a ganhar
corpo. Antes de Davi, além da tradição oral existiam somente alguns documentos
breves, que mais tarde seriam aproveitados e, hoje, estão espalhados pelo
Pentateuco e por alguns dos livros históricos.
6 - No
entanto, apesar de toda esta variedade, de um modo tão humano de escrever e de
pensar, a Bíblia toda tem um só autor: Deus! Ela é a Palavra de Deus, dada para
nossa salvação. A Bíblia contém a verdade que salva, a verdade sobre Deus,
sobre o homem e sobre o mundo! Nisto ela é infalível, não se engana nem engana!
II - O
tema central das Escrituras
1 - Todos
os livros da Escritura, no entanto, possuem um tema comum, uma mensagem
central: Deus criou tudo por amor e quer chamar toda a humanidade para a vida
eterna, que é a comunhão com ele. Por isso enviou-nos o seu Filho Jesus. Ele,
morto e ressuscitado, deu-nos o seu Espírito Santo que é já o início desta vida
divina, que vai ser plena na glória eterna.
2 - Mesmo
com o pecado do homem, Deus não desistiu do seu plano, mas na cruz entregou o
seu Filho para que, nele, nós tenhamos a salvação. A vontade de Deus é que, em
Jesus, todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.
3 - A
serviço do seu plano, Deus formou, no Antigo Testamento, o Povo de Israel e, no
Novo Testamento, a sua Igreja, para que leve esta Boa Notícia da salvação a
todos os povos.
4 -
Assim, a mensagem central das Escrituras é uma mensagem de salvação. Qualquer
trecho que nós lermos, tem que ser interpretado sempre de acordo com esta idéia
central e mais importante!
III - Por
que Deus se revelou?
1 - A
revelação não tem por objetivo contar segredinhos nem matar a nossa curiosidade
sobre as coisas de Deus.
2 - Deus
não quer revelar coisas; ele quer se revelar, para nos fazer participar
da sua vida. Esta revelação acontece nos seus atos e nas suas palavras, como a
revelação de pessoa para pessoa, de duas pessoas que se amam.
3 -
Então, o que encontramos nas Escrituras? Vários livros, de épocas diversas, em
estilos diversos, com temas diversos, de autores diversos... mas todos inspirados
por Deus, de modo que revelam o amor desse Deus e o seu desejo de nos salvar em
Cristo Jesus. Lendo a Bíblia descobrimos o coração de Deus e entramos em
comunhão com ele!
IV - Os
livros da Bíblia e suas divisões
1 - A
Bíblia católica (73 livros: 46 do Antigo Testamento + 27 do Novo):
Pentateuco
(= a Lei dos Judeus): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio
Livros
Históricos: Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas,
Esdras, Neemias, Ester, Judite, Tobias, 1 e 2 Macabeus.
Livros
Sapienciais: Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos, Jó, Sabedoria,
Eclesiástico.
Livros
Proféticos: Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias,
Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias,
Malaquias
Evangelhos:
Mateus, Marcos, Lucas e João
Livro
Histórico: Atos dos Apóstolos
Epístolas:
de São Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios,
Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filêmon,
Hebreus), Católicas (Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2 e 3 João, Judas)
Livro
Profético: Apocalipse
2 - A Bíblia
protestante é incompleta. Foram tirados 7 livros do Antigo Testamento:
Judite, Tobias, Sabedoria, Eclesiástico, 1 e 2 Macabeus e Baruc, bem como
algumas partes de Daniel.
3 - A Bíblia
hebraica tem uma ordem, uma arrumação diversa da cristã: Torá (Lei),
Ketubim (Profetas) e Nebiim (Escritos). O Antigo Testamento dos
judeus é incompleto, pois eles, por despeito dos cristãos, tiraram 7 livros
sagrados porque não foram escritos em hebraico nem dentro da Terra Santa, mas
pela comunidade judaica de língua grega que habitava em Alexandria, no Egito.
Como os cristãos usavam esses livros, os judeus, sob a liderança dos fariseus,
retiraram-nos da sua “bíblia”. Infelizmente, os protestantes preferiram a
Bíblia dos judeus que a dos cristãos!
V - O
tema do Antigo Testamento
1 - Todos
os livros do Antigo Testamento nasceram no seio do Povo de Israel. E todos
estes livros contam a história de Deus com o seu povo. Deus amou este povo e o
escolheu, o formou, educou pelos profetas e, através dele, prometeu salvar o
mundo pelo Ungido, o Messias.
a) Deus
chamou Abraão e prometeu fazer dele um povo, pelo qual todas as nações seriam
abençoadas (Gn
12,1-3);
b) Libertou este povo pelas mãos de Moisés: foi a Festa da Páscoa (Ex
14,5-31; 12,1-28);
c) Fez uma aliança com o povo (Ex
20,1-21; 24,1-11)
d) Fez o povo atravessar o deserto e deu-lhe a Terra Prometida (Js
6,1-21);
e) Deu-lhe rei: prometeu que de Davi veria o Messias salvador (2Sm 7,1-17);
f) Educou o povo pelos profetas e prometeu-lhe um futuro de bênção:
Is 1, 2-8: Deus
denuncia o pecado e ameaça o povo
Is 7,10-14: Deus
promete um Salvador
Jr 31,31-34: Deus
promete uma nova aliança com o seu povo
Sf 3,14-18: Será
tempo de alegria para o povo de Israel
Is 60,1-7: A
glória do povo de Deus será glória para toda a humanidade
2 - Este
é o tema central do Antigo Testamento. Todo o restante depende disto e somente
poderá ser compreendido corretamente em ligação com este tema central.
VI - O
tema do Novo Testamento
1 - Só
pode compreender bem o Novo Testamento quem compreendeu bem o Antigo. No Novo
Testamento as promessas de Deus se cumprem no seu Filho Jesus, o Salvador
enviado pelo Pai para levar toda a humanidade à comunhão com Deus.
2 - O
tema central do Novo Testamento é precisamente este: Deus enviou o seu Filho ao
mundo para salvar a humanidade pela morte e ressurreição de Jesus. Cristo
ressuscitado derramou o seu Espírito Santo sobre a Igreja e a humanidade para
levá-las à comunhão plena com o Pai.
1Cor 15,1-5: o
centro da Boa Nova transmitida pelo Novo Testamento;
At 2,29-33: o Pai
ressuscitou Jesus e, por ele, nos deu o Espírito (cf. At 2,38)
Fl 2,5-11: a
humilhação e a glória de Cristo para nossa salvação
Ef 1,3-14: o Plano
de salvação (cf. Ef 2,14-18)
1Tm 2,1-7: o
desígnio de Deus é a salvação de todos pelo Cristo
Rm 8: a vida
do cristão no Espírito de ressuscitado.
VII -
Algumas observações importantes
1 - Deus,
na Escritura, falou aos seres humanos de modo humano, de modo que para se
compreender bem o que o Senhor quis comunicar, é necessário levar em
consideração os diversos gêneros literários nos quais a Palavra de Deus foi
redigida. É necessário, então, levar em conta certas regras teológicas de
interpretação. Vejamos:
2 - Os
gêneros literários: A verdade da Palavra de Deus é apresentada de um modo ou de
outro, conforme se trate de gêneros históricos, proféticos, poéticos, etc.
Estes gêneros devem ser compreendidos como eram usados e interpretados pelo
povo de Israel e pela Comunidade cristã, caso contrário, vemos trair o sentido
que o autor sagrado deu ao texto... e trairemos a Palavra de Deus!
3 - Os
sentidos bíblicos: distinguem-se nas Escrituras quatro sentidos:
(a)
Sentido literal: é aquele que o Autor quis dar ao texto.
(b)
Sentido pleno: é o significado mais profundo do texto; escapa ao autor original
e somente pode ser descoberto com o desenvolvimento da Revelação, especialmente
à luz do Novo Testamento. Isto acontece porque Deus, ao inspirar o Autor, já
conhece o futuro e já vê no texto uma mensagem implícita, enquanto o Autor
humano só ver o alcance do texto no presente. Um bom exemplo são as profecias
do Antigo Testamento sobre o Messias: para nós elas são claras, pois o Messias
já veio; mas, para o Autor sagrado o sentido era o literal e ele não conseguia
penetrar todo o alcance que agora temos.
(c)
Sentido típico: verifica-se quando certos acontecimentos, instituições,
pessoas, etc., por vontade de Deus, representam e prefiguram acontecimentos,
instituições e pessoas do Novo Testamento. Por exemplo: a serpente de bronze
erguida por Moisés (cf. Nm 21,8s) é
imagem, tipo, de Cristo crucificado (cf. Jo 3,14), a
passagem do Mar Vermelho é figura do Batismo (cf. 1Cor 10,2); o maná
é figura da Eucaristia (cf. Jo 6).
(d)
Sentido acomodatício: trata-se de dar às palavras da Escritura um sentido
diferente daquele que o Autor tinha dado, devido a certa semelhança entre a
passagem bíblica e sua aplicação. Este sentido é muito usado na Liturgia e na
pregação. Por exemplo: nas festas de Nossa Senhora, a liturgia usa textos que
se referem à Jerusalém, ao Templo, à Sabedoria, acomodando-os à Virgem Maria.
4 - É
necessário recordar ainda que para interpretar bem a Sagrada Escritura é
necessário lê-la com o mesmo Espírito Santo que a inspirou; lê-la na Comunidade
eclesial, que, por excelência, é a Igreja católica. Uma interpretação da Bíblia
contrária ao Magistério é certamente errada e levará a graves heresias. O juízo
final sobre o modo de interpretar a Bíblia é dado pela Igreja, na voz do
Sucessor de Pedro e dos Bispos em comunhão com ele. A esses - e somente a esses
- o Senhor constitui pastores e guias de sua Igreja e a eles garantiu a assistência
do seu Espírito Santo.
+++++
VIII -
Alguns pontos polêmicos na prática
(a) A
questão das imagens
Deus
proíbe, no Antigo Testamento, a fabricação de imagens de ídolos:
-
observe-se que o contexto das proibições é sempre o de afirmação do verdadeiro
e único Deus (cf. Ex 20,2-5; Dt 4,15-20; 5,8-10);
- Deus não revela sua face, por isso proíbe que se façam imagens suas (cf. Dt 4,15s)
Quando as
imagens não induzem à idolatria são permitidas:
- a
serpente de bronze (cf. Nm 21,4-9; Jo 3,14)
- os querubins do propiciatório (cf. Ex 25,18ss)
- os leões e bois no templo (cf.1Rs 7,29)
- os doze touros do mar de bronze (cf. 1Rs 7,25)
No Novo
Testamento, não há uma única proibição a respeito das imagens; critica-se, sim,
a idolatria: "Filhinhos, guardai-vos dos ídolos" (1Jo 5,21)
"Mortificai vossos membros terrenos... e a cupidez, que é idolatria"
(Cl 3,5). No
Novo Testamento, Deus mesmo, invisível em si, tornou-se visível em Jesus
Cristo:
- ele é a
imagem do Deus invisível (cf. 2Cor 4,4; Cl 1,15)
- quem o vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9)
Seria
preciso que existisse um texto que fosse do Novo Testamento para impugnar o uso
de imagens. Apegar-se a esta proibição do Antigo Testamento (antes da
Encarnação) é negar a realidade da Encarnação do Verbo: podemos fazer imagens
do Cristo porque o Verbo se fez carne; podemos fazer imagens dos santos, porque
eles trazem em si a imagem do homem novo, Cristo Jesus (cf. Rm 8,29; 1Cor 15,49). Foi
por isso que a Igreja, no segundo Concílio de Nicéia, em 787, condenou como
heresia a negação da validade do uso das imagens.
(b) Os
irmãos de Jesus
O Novo
Testamento refere-se várias vezes aos irmãos e irmãs de Jesus: Mt 12,46; 13,55s; Mc 3,31-35; Mt 12,46-50; Lc 8,19-21; Jo 2,12; 7,2-10; At 1,14; Gl 1,19; 1Cor 9,5.
“Irmãos”
em hebraico e aramaico: “ha”, em aramaico significava parente em qualquer grau.
Recordemos o sentido tribal da cultura judaica. O Antigo Testamento traz vários
exemplos:
Gn 13,8; 14,14.16: O
sobrinho de Abraão, Lot, é dito seu irmão
Gn 29,12.15: Jacó,
sobrinho de Labão, declara-se seu irmão
Gn 31,23: os
membros do clã de Labão são chamados seus irmãos
1Cr 23,21-23: o termo
“irmãos” é usado claramente como “primos”
Podem-se
ver ainda 1Cr 15,5; 2Cr
36,10; 2Rs 10,13; Jz 9,3; 1Sm 20,29.
A
tradução grega da Setenta conserva "adelphós" (irmão) apesar de
existir o vocábulo “primo”. Prefere conservar o sabor semita do texto original
hebraico, que não conhecia a palavra "primo" e usava sempre
"irmão".
Mas, quem
são os irmãos de Jesus?
Tiago, Joset, Judas, Simão e as irmãs... (cf. Mt 13,55s)
Mc 15,40: ao pé
da cruz, Maria, mãe de Tiago, o Menor e de Joset e Salomé
Mc 3,17s: Tiago,
filho de Zebedeu, irmão de João e Tiago, filho de Alfeu
Assim, os
pais dos irmãos de Jesus são, com toda probabilidade, Maria e Alfeu. Esta Maria
é também chamada de Maria de Cléofas (cf. Jo 19,25).
Cléofas e Alfeu são a mesma pessoa: Klopas é a forma grega do aramaico Claphai,
enquanto Alphaios é a transcrição direta do Claphai aramaico. Assim, Alfeu ou
Cléofas ou Clopas são a mesma pessoa.
Se Jesus
tivesse irmãos, não teria deixado sua mãe com João, filho de Zebedeu (cf. Jo 19,25-27). Além
do mais, os irmãos de Jesus nunca são ditos filhos de Maria.
Por que
Maria está sempre com os irmãos de Jesus? Os costumes da época: Maria, com a
morte prematura de José (a bíblia não o cita mais) e a saída de Jesus de sua
casa para pregar o Evangelho, ficou uma mulher só. Ora, uma mulher de bem não
andava sozinha na rua; por isso, a Virgem aparece quase sempre com os irmãos de
Jesus, isto é, os homens da sua parentela, provavelmente pelo lado de José.
Aliás, os primeiros escritores cristãos dizem isso claramente!
E o fato
de se chamar Jesus “primogênito” (cf. Mt 1,25; Lc 2,7)? Em
1922 houve uma interessante descoberta arqueológica: uma inscrição sepulcral do
séc. V ac, no Egito, de uma tal de Arsinoé, que morrera “nas dores do parto de
seu filho primogênito”. A tal de Arsinoé só teve um filho, e era chamado
"primogênito". Por quê? Porque sendo o primeiro, herdou os direitos
da primogenitura. Quando o evangelho insiste que Jesus é o primogênito não
significa que ele teve outros irmãos, mas sim que ele, como primogênito, herdou
todos os direitos da Casa de Davi e, assim, é o Messias de Israel. A mesma
coisa quando se diz que ele é "o Primogênito de toda a criatura" (Cl 1,15); não se
está dizendo que ele é criatura, o primeiro a ser criado, mas que ele tem a
honra de ser o sustentáculo, o princípio de toda criação.
(c) A
Besta - 666 (Ap
13,18)
Alguns
protestantes ignorantes e maldosos fazem o seguinte raciocínio: o Papa é o
Vigário de Cristo; Cristo é o Filho de Deus; então o Papa é o Vigário do Filho
de Deus (Vicarivs Filii Dei, em latim). Somando as letras da expressão latina,
chega-se a 666. Também a expressão latina "Dux cleri" (Chefe do
clero), que os protestantes inventaram para o Papa, dá 666. Então, eles dizem:
o Papa é a Besta! Besta... besteira dos protestantes! Primeiro, o Apocalipse
foi escrito em grego, não cabe a escrita latina; segundo é de notar que a soma
de “Jesus de Nazaré”, em hebraico, também dá 666! Ellen Gould W(V + V)hite,
fundadora dos Adventistas de Sétimo Dia, também perfaz 666; o mesmo vale para
Christe, Fili Dei! O próprio vocábulo “besta” (therion, em grego), em
hebraico tryvn daria 666.
Segundo
os exegetas 666 corresponde a César Nero em caracteres hebraicos. Mas, o
sentido mais profundo da identidade da Besta é o seguinte: seu número é 666.
Ora, 6 é o número do homem, criado no sexto dia. 7 é o número da plenitude; 6
significa o que ainda é imperfeito, o que ainda não é pleno: é 7-1! A Besta
quer se fazer passar por Deus (777), mas ela não passa de homem, imperfeito,
limitado... E o Apocalipse diz que ela é três vezes 6: 666, isto é, imperfeição
total! A Besta é tudo aquilo que se arvora de um poder divino (os grandes do
mundo, o mercado financeiro, os pop stars, os falsos profetas) ... e não passam
de pobres mortais...
(d) O
primeiro dia como Dia do Senhor
Jo 20,19ss: o
sábado dos judeus (shabat = descanso) celebrava a criação e a aliança,
ambas depois marcadas pelo pecado. No primeiro Dia depois do sábado, Cristo fez
novas todas as coisas, um novo céu e uma nova terra e consumou a nova aliança
no Espírito Santo. Passaram a antiga criação e a antiga aliança: "Toda
aquele que está em Cristo é uma nova criatura. Passaram-se as coisas antigas,
eis que tudo se fez novo" (2Cor 5,17).
At 20,7: no
primeiro dia após o sábado (no Domingo), os cristãos se reúnem para a Fração do
Pão (a Eucaristia).
1Cor 16,2: a coleta
feita no primeiro dia da semana porque era o dia em que os cristãos se reuniam.
Ap 1,10: o
primeiro dia da semana chamado de Dia do Senhor: kyriaké heméra, isto é,
Dia do Cristo Ressuscitado!
Cl 2,16-18: São
Paulo previne os cristãos; eles não devem cair na onda de quem vem com
histórias de guardar o sábado ou de distinguir entre comida pura e impura ou de
práticas do Antigo Testamento... Tudo isso era apenas "imagem",
"tipo", preparação para a verdadeira realidade, que é Cristo no seu
corpo, que é a Igreja!
(e) Missa
na Bíblia
O Senhor
mandou celebrar a Eucaristia em sua memória (cf. Mt 26, 26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19s). Os
primeiros cristãos celebravam a Eucaristia e chamavam-na Ceia do Senhor ou
Fração do Pão (cf. 1Cor 11,23-25; At 2,42; 20,7-11; 27,35; 1Cor 10,6). Logo
cedo foi unida à Fação do Pão a Liturgia da Palavra (cf. Lc 24,13-32; At 20,7-11). Há
muitos documentos primitivos que narram como se celebrava a missa no século I
da nossa era.
(f) Um
esquema simples dos evangelhos
1) Os
evangelhos não são biografias de Jesus, mas proclamação crente, emocionada,
parcial (não imparcial, fria, neutra) de Jesus morto e ressuscitado: “... foram
escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo
20,31).
2) Para Marcos,
Jesus é o Messias, o Filho de Deus. Seu evangelho esquematiza-se assim:
Mc 1,1 traz o
título e o programa da obra de Marcos: mostrar que Jesus é o Messias, o Filho
de Deus.
A - Mc
inicia-se no deserto - lugar de combate, de tentação, de medo, de morte,
habitação dos demônios... lugar da pregação de João Batista (1,2 - 13).
B - Depois,
Jesus aparece na Galileia. A crise da Galileia é dramática: Jesus, que iniciou
seu ministério com um enorme sucesso, enfrenta oposição sistemática dos chefes,
do povo, dos familiares, dos apóstolos... por fidelidade ao Pai, não muda seu
procedimento (1,14 - 7,23).
C - Jesus
deixa a Galileia para preparar seus discípulos. Depois, sobe para Jerusalém. É
o momento das grandes exigências para quem desejasse segui-lo (7,24 - 10,52). Aqui
dá-se o primeiro ponto alto do Evangelho: Tu és o Messias... mas um messias
sofredor (8,27-38).
B’ - O
ministério de Jesus em Jerusalém: insiste no que ensinou na Galileia: ele é o
Messias, que age com autoridade, é o Filho de Davi, e nele o mundo e Jerusalém
serão julgados - portanto, é necessário vigiar com ele (11,1 -
13,37).
A’ - A
paixão e morte: o sepulcro vazio (conclusão original de Mc). Como o deserto, o
sepulcro é lugar da provação da morte, dos demônios, de medo... lugar de
gestação da Ressurreição (14,1 - 16,8).
Aqui dá-se o segundo ponto alto de Mc: Verdadeiramente este era o Filho de Deus
(15,39). A cruz
é o lugar do reconhecimento de Cristo! A Igreja acrescentou 16,9-20 para
explicitar aquilo que Mc deixara implícito: o sepulcro vazio é sinal de
vitória.
O Jesus
de Marcos fala pouco: o Evangelho é a própria pessoa de Jesus: suas palavras,
gestos, opções, sentimentos, sua vida. Ser cristão, para Marcos, é seguir Jesus
no caminho para Jerusalém, com ele morrer e com ele ressuscitar.
3) Mateus
apresenta Jesus como o novo Moisés. Sua obra é articulada em cinco partes,
recordando os cinco livros de Moisés. Além dos dois primeiros capítulos
narrando a infância de Jesus e a Páscoa, eis as cinco partes do corpo do
evangelho:
I - Parte
narrativa (caps. 3 - 4)
Discurso da montanha (caps. 5 - 7)
II -
Parte narrativa (caps. 8 - 9)
Discurso apostólico (cap. 10)
III -
Parte narrativa (caps. 11- 12)
Discurso das parábolas (cap. 13) sete parábolas do Reino: centro do evangelho
IV -
Parte narrativa (caps. 14 - 17)
Discurso sobre a Igreja (cap. 18)
V - Parte
narrativa (caps. 19 - 23)
Discurso escatológico (caps. 24 - 25)
4 ) Para Lucas, basta observar o seguinte: Jesus é apresentado como o
Salvador universal. Jesus é apresentado como Messias pobre, orante, misericordioso
com os pecadores, conduzido pelo Espírito Santo.
O evangelho é apresentado como uma longa subida para Jerusalém, onde Jesus
morrerá e ressuscitará: segui-lo é ser cristão. A subida inicia-se em Lc 9,51 e de
modo solene: “Quando se completaram os dias de sua assunção (= de seu êxodo, de
seu arrebatamento), ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém”.
5) João
é o único evangelista que não estrutura sua obra como uma subida para
Jerusalém. Para ele, Jesus é o Logos revelador do Pai; é a luz que ilumina o
homem com o esplendor de Deus: só o Filho viu o Pai e só ele o pode dar a
conhecer. A estrutura de João é simples:
Jo 1,1-18: o Prólogo,
que resume os temas do evangelho.
Jo 1,19 - 12,50:
o Livro dos Sinais: Jesus realiza sete sinais que revelam quem ele é.
Além dos sinais, há longos discursos que revelam a identidade de Jesus: eu sou
a porta, eu sou o bom pastor, eu sou o caminho, eu sou a vida, etc.
Jo 13 -21,25: o Livro
da Glória: para João a cruz e a ressurreição são a hora da Glória do Filho.
Alguns
pontos interessantes de João: a dependência total de Jesus em relação ao Pai; e
a preocupação sacramental (o Batismo - cap. 3 - e a Eucaristia - cap. 6). O
Evangelho de João, apesar de profundamente teológico é também profundamente
sensível à história.
IX -
Conclusão
Quis,
nesta pequena apostila, apresentar algumas coordenadas para ajudar na leitura e
compreensão da Sagrada Escritura. Vale a pena lê-la e meditá-la com fé, mas
sempre unidos à fé da Igreja. A Bíblia não é para interpretação privada.
Somente na Igreja católica ela é plenamente viva e corretamente interpretada:
"Antes de mais nada, sabei isto: que nenhuma profecia da Escritura resulta
de uma interpretação particular, pois que a profecia jamais veio por vontade
humana, mas homens, impelidos pelo Espírito Santo, falaram da parte de
Deus" (2Pd 1,20s). Agora,
é tomar a Palavra e devorá-la com fé e amor, guiados pelo Santo Espírito.
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