LIBERALISMO e IGREJA
Pergunte e Responderemos 066 – Junho de
1963
FILOSOFIA E RELIGIÃO
TIAGO (Rio de Janeiro):
«Que se entende por 'liberalismo'? Haverá algum mal em valorizar a liberdade
humana?»
Conforme certos filólogos, a palavra
«Liberalismo» vem do adjetivo espanhol «liberal», que na Europa do século'
passado se difundiu em oposição ao adjetivo «servil» durante os movimentos
políticos subsequentes ao governo de Napoleão Bonaparte. O liberalismo veio
então a ser uma corrente de pensamento que afirma o valor da liberdade humana
de modo tal que a cada cidadão toca o direito de conceber a Verdade, o Bem e a religião
segundo o seu próprio alvitre, independentemente de qualquer tutela ou
autoridade.
Nas páginas que se seguem, considerar-se-ão
sumàriamente o histórico do Liberalismo, suas principais proposições, assim
como a atitude da Igreja e da sã razão frente ao mesmo.
1. Histórico do
liberalismo
Foi
no setor da sociologia e da política que o Liberalismo surgiu. Deve-se, com
efeito, a uma reação dos povos contra os sistemas de governo monárquicos
absolutistas que tiveram voga na Europa dos séculos XVII e XVIII (o poder
executivo, representado pelo rei, quase absorvia os poderes legislativo e
judiciário, gozando de faculdades praticamente ilimitadas).
O
berço da reação foi a França, onde a Revolução de 1789 (preparada pela
filosofia racionalista e naturalista dos enciclopedistas Voltaire, Diderot, d’AIembert)
desencadeou o ideal da «emancipação» dos cidadãos e do povo em todos os
setores. Esse ideal encontrou em breve um dos seus maiores representantes na
pessoa do sacerdote Félicité Robert de Lamennais. Imbuído de amor à causa
cristã, esse varão concebeu a ideia de que a S. Igreja muito se beneficiaria se
sacudisse os encargos decorrentes da sua união com o Estado; a partir de 1829,
começou,, pois, a propugnar uma só tese: liberdade ... liberdade em tudo e para
todos; o governo civil procuraria promover o bem comum sem levar em conta os
direitos da Igreja, criando um bem-estar natural, emancipado do sobrenatural; a
S. Igreja, por sua vez, dispensaria a colaboração das autoridades civis,
colaboração que em muitos casos equivalia a sufocação; a Igreja, dizia
Lamennais, se desenvolveria melhor, pois Ela possui o poder da Verdade e do
Amor, o poder mesmo de Deus. Lamennais comparava o sistema antigo à tutela
exercida pelos genitores sobre os filhos, tutela que deve cessar quando estes
chegam à maior idade; assim o povo teria estado sob o patrocínio da Igreja e do
Governo unidos até o séc. XVIU. Doravante, porém, tendo chegado à plenitude dos
tempos, o povo se devia libertar de qualquer tutela profana ou religiosa, estabelecendo
uma ordem de coisas neutra em matéria de filosofia e religião; o Estado e a
Igreja se separariam, reconhecendo que sua união fôra mera preparação
evangélica, a qual já se achava ultrapassada. O novo regime era chamado
«democracia» (como se vê, este termo, em si muito belo, foi então forjado para
designar uma ordem civil tida como leiga e indiferente, mas, em última análise,
naturalista, raciona- lista e anticristã).
Eis como Lamennais se exprimia :
«O Estado deve considerar-se como colocado
fora de todas as comunhões religiosas, sem autoridade sobre alguma delas, mas
também sem outra obrigação para com elas que não a de lhes assegurar a
liberdade. Isto supõe que o Estado, destituído de Religião ou, se quisermos,,
ateu, professe a liberdade de cultos e a de consciência e que a Igreja aceite
pràticamente estas duas coisas» (L'Avenir, t. I pág. 29s, artigo «De la
Séparation de 1'Église et de l'État»).
O ardoroso sacerdote reuniu em torno de si
um grupo de jovens inteligentes e generosos, tais como Lacordaire,
Montalembert, Gerbet, Rohrbacher, que constituíram a sociedade dita «Agence
Générale pour la Défense de la Liberté religieuse». O movimento fundou o jornal
«L'Avenir», com o lema «Dieu et Liberté», mas de duração muito efêmera (de
16/X/1830 a 15/XI/1831).
Compreende-se
que as ideias de Lamennais, ousadas como eram, tenham provocado receios e
oposição, da parte tanto de bispos como de simples fiéis. Diante da situação, o
Papa Gregório XVI em 1832 publicou a encíclica «Mirari vos», condenando as ideias
de Lamennais (ideias que naquela época acarretavam perigos e males que hoje já
não se verificariam). Quase todos os discípulos do mencionado sacerdote
inclinaram-se diante da sentença da Santa Sé, ficando Lamennais a sós na sua
residência de Chênaie, donde continuou a disseminar ideias cada vez mais
liberais.
Embora estivesse dissolvido, o grupo de
discípulos de Lamennais não abandonou o ideal de conciliar com os princípios do
Cristianismo a sede de emancipação dos homens do século passado. Foi o que
suscitou novas iniciativas e prolongadas discussões nos decênios subsequentes.
Em 1848 o Pe. Lacordaire fundou o jornal «Ère nouvelle», inspirado por liberalismo
assaz acentuado e arauto de reivindicações sociais inovadoras; cora ele se
achavam o Pe. Maret e o leigo Frederico Ozanam. Na oposição encontravam-se
Louis Veuillot e Melchior Dulac, com o seu jornal. «L'UnÍvers».
A situação se tornou cada vez mais confusa
ha Franca, onde se originaram dois partidos bem característicos: um, liberal,
ao qual aderiram outrossim Montalembert, De Falloux, De Broglie, Augustin
Cochin, Mons. Dupanloup, bispo de Orleães; e o antiliberal, que contou com o
apoio de Mons.- Fie, bispo de Poitiers. O estado de coisas era tão complexo que
até os mais fervorosos católicos encontravam dificuldade para distinguir com
clareza o que havia de oportuno e o que havia de errôneo nas ideias então
propaladas.
Tais
circunstâncias exigiam novo pronunciamento da Santa Sé. Este, de fato, se deu aos
8 de dezembro de 1864, quando o S. Padre Pio IX publicou a encíclica «Quanta
cura» acompanhada do Sílabo (ou Sumário de erros do pensamento da época) ;
nesses documentos o Pontífice denunciava tudo que havia de condenável nas teses
dos católicos liberais.
Os
anos seguintes foram anos de controvérsias. Menos de um mês após a publicação
da encíclica, Mons. Dupanloup, notável por seus talentos e seu prestígio,
divulgou um opúsculo intitulado «La Convention du 15 Septembre et TEncyclique
du 8 décembre 1864», em que ainda procurava tornar simpática e aceitável a
posição do Liberalismo. Em vista disto, distinguia entre doutrina e prática: no
tocante à doutrina, asseverava, Pio IX nada condenara além do que já havia sido
condenado em documentos anteriores; positivamente, apenas reiterara o
pensamento da Igreja com relação à família, à sociedade e à política. No
tocante à prática, porém, Mons. Dupanloup julgava que Pio IX deixara margem à
conciliação com a vida moderna; seria possível, sim, abrir mão de algumas exigências
práticas da verdade ou da doutrina da Igreja, caso o cumprimento de tais
exigências aparecesse como algo de muito difícil ou impossível na sociedade do
séc. XIX.
Esta distinção entre doutrina e aplicação
prática é, em linguagem de escola, designada pela fórmula “tese-hipótese” (a
hipótese leva em conta os casos concretos ou a vida cotidiana, permitindo
abrandamento de conclusões decorrentes da tese ou doutrina).
A
situação política da Itália favorecia as discussões: os patriotas tentavam
unificar a península, abolindo o poder temporal do Papado; à sua frente, estava
o Conde de Cavour, que pretendia apaziguar os ânimos, apregoando a fórmula de
Montalembert: «A Igreja livre no Estado livre! (L'Église libre dans l'État
libre!)»; o que queria dizer que nada haveria a temer para a Igreja caso viesse
a perder o território do Vaticano, pois o Estado italiano leigo ou neutro
(liberal) não entravaria as liberdades religiosas.
Sobreveio
a figura de Leão XIII. Este Pontífice, pacificador como era, quis esclarecer
melhor a posição da Igreja na controvérsia, publicando a 1 de novembro de 1885
e a 20 de junho de 1888 as encíclicas «Immortale Dei» e «Libertas», respectivamente.
Tais documentos reafirmavam em primeiro lugar a doutrina das encíclicas «Mirari
vos», «Quanta cura» e do Sílabo: asseveravam, sim, que todas as formas de governo
são compatíveis com a doutrina católica, mas que a nenhum governo é lícito
atribuir ao erro os mesmos direitos que à verdade ou colocar os diversos cultos
no mesmo plano legal que a verdadeira Religião.
«É necessário que a sociedade civil, como
sociedade civil, reconheça Deus como seu princípio e seu fim ... que ela
respeite e honre o poder e a soberania de Deus. A justiça e a razão proíbem que
o Estado professe o ateísmo ou — o que equivaleria ao ateísmo — que ele mostre
as mesmas disposições para com cada uma das diversas religiões... e
indistintamente conceda a todas os mesmos direitos. Já que a profissão pública
de uma só Religião é dever do Estado, faz-se mister que o Estado professe
aquela Religião que é a única verdadeira, Religião que não é difícil
reconhecer, principalmente nos países católicos, pois as características da
verdade brilham nela por meio de sinais que a distinguem entre todas. Essa
Religião, os chefes de governo tratem de a conservar, de a proteger, se querem
prover, de maneira prudente e útil, como estão obrigados, ao bem comum dos
cidadãos» (Leão XIII, enc. «Libertas»).
Esta
tese pode, à primeira vista, parecer rígida demais e, por conseguinte, utópica.
Leão XIII tinha consciência de que seria praticamente inexequível nas
circunstâncias da vida moderna. Por isto, não hesitou em explicar com precisão
como na prática a doutrina (tese) poderia ser abrandada; sua posição resume-se
nos três seguintes itens da enc. «Immortale Dei»:
«Ninguém tem motivo para acusar a Igreja de
rejeitar concessões e acomodações razoáveis ou de ser inimiga de sadia e legítima
liberdade. — Com efeito; se a Igreja julga que não é licito colocar os diversos
cultos no mesmo pé legal que a verdadeira Religião, Ela nem por isto condena os
chefes de governo que, visando alcançar determinado bem ou impedir certo mal,
toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada qual seu lugar no
Estado. — É, aliás, costume da Igreja cuidar com todo o zelo, para que ninguém
seja constrangido a abraçar a fé católica contra a sua vontade, pois, como
observa S. Agostinho, a fé só pode existir onde haja espontaneidade»
(Denzinger, Enchiridion 1873-1875).
A fim de ilustrar melhor o pensamento do
Pontífice, transcrevemos mais as seguintes passagens da encíclica «Libertas»
“Em
sua consideração materna, a Igreja leva em conta o peso acabrunhador da
fraqueza humana: Ela não ignora a onda (libertina) que, em nossa época, arrasta
os espíritos e as coisas. Por isto, embora só reconheça direitos ao que é
verídico e honesto, Ela não se opõe à tolerância de que os poderes públicos dão
provas frente a certas instituições contrárias à verdade e à justiça, tendo em
vista evitar maiores males ou obter e conservar maiores bens.
Deus
mesmo, em sua Providência, embora infinitamente bom e todo-poderoso, permite,
não obstante, a existência de certos males no mundo, ora para não impedir bens
maiores, ora para evitar mais vultuosos males. No regime das nações, convém que
os governantes imitem Aquele que governa o mundo. Mais ainda: não podendo
impedir todos os males particulares, a autoridade dos homens está obrigada a
permitir e deixar impunes muitas coisas que, a justo titulo, cairão sob o juízo
da Providência Divina. Observe-se, porém, o seguinte: se, em vista do bem
comum, as leis dos homens podem e mesmo devem tolerar o mal, nunca o podem ou
devem aprovar e desejar em si mesmo. Com efeito, o mal é a privação do bem; por
conseguinte, ele se opõe ao bem comum, que o legislador está obrigado a desejar
e defender do melhor modo possível. Neste ponto também as leis humanas devem
procurar imitar a Deus...
Uma
coisa ficará sempre de pé, a saber: a liberdade concedida indiferentemente a todos
e em favor de todos não é, como já muitas vezes dissemos, desejável em si
mesma, pois repugna à razão que o erro e a verdade gozem dos mesmos direitos;
no que se refere à tolerância, é estranho ver até que ponto se afastam da equidade
e da prudência da Igreja aqueles que professam o Liberalismo”.
Após
tais declarações da Santa Sé, foram-se apaziguando os ânimos; o Liberalismo
como tal deixou aos poucos de ser objeto de discussão. As controvérsias, porém,
imprimiram suas marcas na mentalidade dos povos em geral até o dia de hoje.
Pode-se dizer que numerosas correntes de filosofia, sociologia, política, assim
como vários movimentos religiosos de nossos dias são, em última análise,
expressões concretas da mentalidade liberal que tanto agitou os pensadores do
século passado.
Vejamos,
pois, mais precisamente como se caracteriza essa mentalidade.
2. Em que consiste o
liberalismo?
Como
se depreende de quanto foi dito atrás, o Liberalismo constitui uma tendência ou
uma atmosfera muito mais do que um sistema ou uma escola de pensamento.
Essa
tendência se distingue primariamente pela intenção de desligar a liberdade
humana de qualquer lei ou autoridade que não seja puramente humana ou até...
que não seja a do próprio sujeito. Atribui, pois, à razão a capacidade de
discutir todos os valores, remover o que ela julgar inaceitável e erguer o que
ela considerar oportuno. Em particular, o Liberalismo não reconhece autoridade
religiosa sobrenatural, como a afirma o catolicismo :... autoridade que mereça
acato e respeito independentemente dos valores humanos (virtude e sabedoria) de
seus representantes.
Aliás,
esta premissa é essencial para que possa existir Liberalismo: tudo é humano, e
meramente humano. Por isto, tudo é relativo, tudo é imperfeito. Nada, por conseguinte,
nem mesmo a Religião, merece a adesão incondicional do homem. Daí se compreende
que o Liberalismo acarrete indiferentismo, ora mais, ora menos acentuado;
implantando-se numa sociedade, cedo ou tarde solapa as energias coletivas e o
heroísmo das atitudes.
Tal
mentalidade toma facetas bem definidas quando aplicada às expressões da
cultura. Eis um rápido catálogo dessas facetas:
1) Liberalismo
filosófico. É a tendência a rejeitar no campo filosófico (ou na
maneira geral de encarar o mundo e a vida) qualquer tutela que não seja a
própria razão humana.
Na Idade Média, os estudiosos talvez tenham
abusado da autoridade do filósofo grego Aristóteles; Descartes (+1650) iniciou
a reação contra essa docilidade, reação que aos poucos foi tomando proporções
exageradas. A razão humana, em consequência, negou qualquer limite no exercício
da reflexão, pretendendo julgar tudo, até mesmo as verdades religiosas. A
possibilidade de dogmas de origem sobrenatural, não derivados da razão, foi, de
antemão, negada: o homem bastaria a si mesmo (autossuficiência do pensamento
humano). As correntes filosóficas contemporâneas não cristãs, por mais
contrárias que sejam entre si, supõem todas tal ponto de partida: assim o
criticismo, o idealismo, o positivismo, etc.
Bons
críticos modernos observam que nessa posição filosófica está latente certa
contradição: o Liberalismo, que rejeita o dogma, de antemão admite um dogma — o
dogma de que não pode haver autoridade ou tutela que transcenda a razão humana.
Sem provas e gratuitamente, o pensador liberal se vincula a este pressuposto,
cerceando a sua liberdade dentro do seu imanentismo ou da sua autossuficiência.
2) Liberalismo
religioso. Lutero proclamou o livre exame da Bíblia, ou seja, a
recusa de qualquer autoridade visível que orientasse a leitura das Escrituras
Sagradas; cada crente deveria perceber dentro de si, pelo testemunho meramente
interno do Espírito Santo, o sentido da Palavra de Deus. Com isto Lutero deu
início a uma nova mentalidade dentro do setor religioso — mentalidade
subjetivista e individualista. Eis, porém, que, quando a fé no testemunho
interno se atenuou (como no protestantismo do séc. XVIII), cada indivíduo ficou
com a liberdade de julgar os valores da Religião sem controle superior à sua
própria razão; dai dizer-se que tanto faz abraçar esta como aquela religião ou
mesmo recusar qualquer religião. Em última análise, todas as Religiões seriam
boas; dir-se-ia que é o homem quem as faz, quem as julga, quem as condena, em
vez de ser condenado pela Religião.
Tais ideias repercutiram em certas
correntes bíblicas dos séc. XVIII/XIX, favorecendo exageros na crítica dos
livros sagrados. Em consequência, notáveis autores dedicados ao estudo das Escrituras
chegaram a negar a Divindade de Cristo. Tal estado de coisas provocou entre os
anglicanos o benfazejo «Movimento de Oxford», encabeçado por Newman, o qual
denunciou e impugnou o liberalismo religioso, primeiramente como anglicano,
depois como católico.
Pio IX, no Silabo, condenou a proposição no
4, conforme a qual a razão seria a soberana norma para se julgar qualquer tipo
de verdade (cf. Denzinger, 1704).
Aplicado
ao setor das relações da Igreja com o Estado, o Liberalismo religioso propugna
um Estado leigo (que praticamente é Estado ateu), dissimulado sob o nome de
Estado «tolerante»: Religião não seria valor necessário a um programa de bom governo;
em matéria de Religião, não haveria propriamente nem verdade nem erro, nada
enfim que merecesse o empenho do Estado.
A
Igreja, na impossibilidade de conseguir melhor solução, aceita esse
agnosticismo, contanto que não degenere em perseguição religiosa.
3) Liberalismo político. Caracteriza-se, no
seu âmago, pelas ideias que acabam de ser expostas no tocante à Filosofia e à
Religião. A política é uma das aplicações da Filosofia e da atitude religiosa
do cidadão.
4)
Liberalismo econômico. No setor econômico, o Liberalismo
ensina que a livre concorrência é lei providencial, a qual estimula a produção
dos bens e a prosperidade dos povos; o interesse pessoal dos cidadãos, isento
de qualquer intervenção do Estado, seria o grande propulsor das atividades
econômicas.
Essas ideias foram apregoadas de maneira
sistemática na Escola de Manchester, orientada por Adam Smith (+1790). «Deixar
fazer, deixar passar», tal era o lema desse tipo de Liberalismo; nenhuma
autoridade teria o direito de exercer controle sobre as iniciativas dos
indivíduos, que destarte facilmente cediam ao egoísmo e à ganância,
estabelecendo a opressão dos pobres por parte dos ricos, reduzindo o trabalho à
categoria de mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura; tais males foram
agravados pelo fato de que os economistas liberais do séc. XVIII professavam a
total separação entre economia, de um lado, e moral (consciência), do outro
lado. Foi o liberalismo econômico que provocou a concentração de grandes
capitais em mãos de poucos proprietários, com detrimento para a massa da
população entregue à miséria (donde o chamado «capitalismo»).
5) Liberalismo artístico. Propala a
separação entre às regras da arte e as normas da consciência ou da moral. Ao
artista seria lícito produzir toda e qualquer obra de arte, sem levar em conta
os ditames da ética. Cf. «P. R.» 25/1960, qu. 5, onde se encontram a
explanação e a refutação dessa atitude liberal.
Em
conclusão: o Liberalismo resumiria todas as suas expressões no seguinte
princípio: Todo homem responsável por seus atos tem o direito de fazer o que
lhe agrade, «certo ou errado», desde que os atos de tal indivíduo não
prejudiquem a sociedade.
As categorias de «certo» e «errado»,
conforme esta apreciação, são muito variáveis, de modo que ninguém pode
pretender possuir a certeza ou a verdade.
Que dizer de tais ideias?
3.
Uma reflexão
1.
Como vimos, o princípio básico do Liberalismo ensina que a liberdade é um bem
absoluto, acima do qual não há padrão; consequentemente, ao homem é lícito, com
a sua liberdade, empreender o que queira.
Ora
não é difícil verificar as falhas deste princípio. Em verdade, o homem nada tem
de absoluto, mas é um ser relativo, que só se consuma voltando ao seu Autor , o
Bem Supremo ou Deus. A liberdade, portanto, não é o Supremo Bem ou o Fim do
homem, mas é mero meio de que o homem dispõe para atingir com dignidade o seu
Fim Supremo, Deus.
Realizar
o bem é o fim do homem. Querer realizá-lo, e querer realizá-lo de maneira
consciente e nobre, eis o que a liberdade presta de grandioso ao homem.
Por
conseguinte, o cidadão não vive para gozar simplesmente da sua liberdade, mas
para utilizá-la, para pô-la ao serviço do seu ideal supremo, que é a consecução
do Sumo Bem ou Deus.
Donde
se vê que o homem recebeu, sim, a liberdade de escolher entre o bem e o mal,
entre a verdade e o erro, mas não recebeu o direito de escolher o mal e o erro.
Não; a própria natureza humana exige que o homem, para ser o que deve ser, aplique
a sua liberdade a escolher a verdade e o bem, rejeitando; o erro e o mal.
O
genuíno uso da liberdade, portanto, não implica que. o homem tenha o direito de
escolher indiferentemente entre o bem e o mal, mas apenas... que ele tem o direito
de escolher o bem com dignidade superior à de uma máquina ou de um autômato.
Donde se vê que a ninguém é lícito, em nome da liberdade professar e apregoar o
que lhe passe pela cabeça. Quem queira fazer isto, encaminha-se para a sua
ruína física e moral; ora a natureza a ninguém deu o direito de se destruir. — É
preciso, pois, que haja autoridade e guia em todo e qualquer setor em que o
indivíduo se queira lançar.
São
estas ideias que nos levam a rejeitar a mentalidade do Liberalismo como algo de
falho ou algo de nocivo à própria dignidade humana.
2. A fim de favorecer a reflexão sobre o
assunto, transcrevemos aqui algumas passagens de Fulton Sheen, que, em estilo
característico, enunciam as mesmas ideias:
«A liberdade não é o direito de fazer o que
me pareça...; ao contrário,. .. é o direito de fazer o que devo...
Essa palavrinha «dever» significa que o
homem é livre. O fogo é necessàriamente quente, o gelo é necessariamente frio,
mas o homem deve ser bom.
A liberdade não é o poder de fazer qualquer
coisa que se queira... Certamente você pode fazer qualquer coisa que lhe agrade
ou que queira. Pode roubar do seu vizinho, pode bater na sua mulher, pode
encher colchões com giletes usadas, e também matar a tiros de metralhadora as
galinhas do vizinho, mas você não deve fazer nada disso, parque, se fizesse
algo tal, se desfiguraria ou degradaria, deixaria de ser o que um homem deve
ser.
A liberdade é, pois, mais um poder moral do
que um poder físico, é um dever e não um poder.»
Mais adiante continua o autor, falando de
«espécies de liberdade» a fim de designar «verdadeira e falsa liberdade» :
«Qual é a mais elevada espécie de
liberdade? Fazer o que devo, isto é, obedecer à minha consciência e salvar a
minha alma, ou fazer tudo o que eu queira, seja bom, seja mau?
Eis dois aspectos da liberdade, pois alguém
se faz santo pela mesma vontade pela qual se pode tornar um demônio.
Este é o problema : Qual é a mais alta
forma de liberdade ?
Decerto, fazer o que devemos é mais alta
forma de liberdade do que fazer o que queremos, porque a primeira termina no
perfeito desenvolvimento da nossa personalidade, ao passo que a última termina
em sua escravização.
Por exemplo, o homem deve ser sóbrio, e não
se entregar demais ao hábito da bebida. Suponhamos, porém, que diga : 'Sou
livre, portanto, nada de proibições nem... de restrições puritanas; por isto
beberei quanto quiser'. Depois de algum tempo, tal homem fica escravizado à
bebida; em lugar de fazer o que lhe agrada, bebe não por prazer, mas para
evitar o desprazer de não beber. Tendo agido mal, sua vontade permanece ainda
livre para escolher o que é bem,, mas ele não é mais livre para fazê-lo. Todas
as forcas de resistência foram vencidas e sua liberdade acaba em escravidão. O
erro que cometeu, é o erro que o mundo moderno está cometendo: pensar que
liberdade significa independência da lei, e que infringir as leis de Deus é uma
forma de afirmação de personalidade. O que devemos meter em nossas cabeças,
como cidadãos, como pais de família e como educadores, é que liberdade não
significa ilegalidade. Pelo contrário, a liberdade é condicionada pela
obediência à lei. Liberdade fora da lei não existe, só existe liberdade dentro
da lei... Por exemplo, um aviador só tem liberdade de voar se submeter-se à lei
da gravidade, isto é, deve agir dentro da lei e não fora dela. Tente agora dar
uma prova de afirmação da personalidade, e atire-se do Empire State Building e
verá que num minuto terá perdido toda liberdade — até a de viver... Esqueça a
finalidade de uma navalha e use-a para abrir latas de tomates, e estragará a
navalha porque esqueceu sua finalidade...
Assim se dá com a lei moral; somos
verdadeiramente livres quando obedecemos à finalidade ou à lei para a qual
fomos criados, finalidade que é o desdobramento e o desenvolvimento de nossa
personalidade através de nossa eterna felicidade com Deus. Temos liberdade de
ignorar a lei moral, de beber, de roubar, de ser adúlteros, de sacudir os
punhos com ódio, assim como temos liberdade de ignorar a lei da gravidade, mas
cada vez que a ignoramos, ou diminuímos ou destruímos a nossa liberdade.
Alcança-se a liberdade real, agindo não fora da lei, mas dentro dela.
...Deus implantou na natureza humana e em
Sua Igreja as leis que nos permitem realizar a finalidade da vida e atingir os
mais altos objetivos de nossa personalidade. Essas leis não são represas que
detêm o progresso; são diques que impedem que as águas do egoísmo e da
concupiscência invadam a terra. Se eu obedecer ou fizer o que devo, serei
livre. Se desobedecer ou fizer o que quiser, estarei agindo contra os mais
altos interesses de minha natureza. Cada vez que peco, sou menos homem em razão
disso, tal como a máquina em cujo uso se violam as instruções do fabricante é
menos máquina.
Pecar, que é o desprezo da finalidade e da
lei da vida, não é prova de liberdade; é o começo da escravidão, porque, como
disse Jesus Cristo, 'todo aquele que comete o pecado, é escravo do pecado* (Jo
8,34)» (O problema da Liberdade. Rio de Janeiro 1945, pág. 3742).
3.
Uma vez refutado o princípio básico do Liberalismo, verifica-se
consequentemente quanto são errôneas as concretizações ou aplicações do mesmo
nos diversos setores da Filosofia, da Religião, da economia, etc. Por isto não
nos demoraremos na consideração direta de tais aspectos. Apenas aqui
lembraremos que a S. Igreja nos últimos anos, ao conceber as suas relações com
o Estado e com outros credos religiosos, mais e mais propugna a tolerância ou o
«caso de hipótese» de que já Leão XIII se fez arauto; cf. «P. R.» 36/1960, qu.
6.
Dom Estêvão Bettencourt (O.S.B.)