QUEM É O AUTOR DA
EPÍSTOLA AOS HEBREUS?
PERGUNTE e
RESPONDEREMOS 064 – abril 1963
SAGRADA ESCRITURA
F. S. C. (Canoas, RS): «Quem
é o autor da epístola aos Hebreus ? Desconfio daqueles que dizem não ser São
Paulo».
A exegese contemporânea,
mesmo católica, baseando-se em sólidos argumentos, nega quase unanimemente a
tese, tão comum até os últimos tempos, de que São Paulo tenha escrito a
epístola aos Hebreus. A esta negativa nada se pode opor por parte da fé, pois,
em qualquer hipótese, se continua a afirmar que a citada epístola é a Palavra
de Deus e pertence ao cânon ou catálogo das Escrituras Sagradas.
É
preciso distinguir nitidamente entre inspiração ou canonicidade de determinado
escrito e autor humano do mesmo. A inspiração é carisma ou graça que Deus pode
outorgar a qualquer de seus servos.
Geralmente
estamos habilitados, por indícios diversos, a indicar o nome do servo de Deus
ou do autor humano do qual o Espírito Santo se quis servir para produzir
determinado escrito bíblico. Há casos, porém, em que pairam dúvidas, mesmo
insolúveis, a respeito da identidade desse autor (é o que se dá, por exemplo,
com os autores dos livros dos Reis, das Crônicas, da Sabedoria, etc.). Tais
dúvidas por si não afetam o valor inspirado ou canônico do respectivo livro
bíblico; pode-se então estudar e discutir a questão do autor humano, sem que
haja impiedade ou derrogação à fé, a menos que a Igreja se pronuncie
oficialmente sobre o problema. — Ora tal é o caso da epístola aos Hebreus:
embora a S. Igreja tenha definido a sua canonicidade ou índole inspirada, nunca
definiu ter sido S. Paulo o seu redator. Por conseguinte, este segundo ponto
fica entregue à livre pesquisa dos exegetas: assim como os medievais julgavam
ter motivos para indicar S. Paulo, os modernos (com mais razão ainda) julgam
dever negar esta posição.
A solução há de ser
deduzida a partir de argumentos de crítica literária e de testemunhos da
história; não se pode evocar alguma proposição de fé pró ou contra a
autenticidade paulina de Hebreus.
Vamos, pois, em nossa
explanação averiguar primeiramente em que consiste o problema da autoria de
Hebreus; a seguir, procuraremos a solução que mais probabilidades reúne.
1. Os dados do problema
A
questão do autor de Hebreus se apresenta assaz obscura; já nos primeiros
séculos da nossa era havia opiniões diversas a tal propósito.
Enquanto
os cristãos do Oriente atribuíam a epístola ao Apóstolo S. Paulo, os do
Ocidente até meados do séc. IV se mostraram hesitantes a respeito, tendendo
mesmo a negar a origem paulina de Hebr. Do séc. IV em diante, registrou-se
entre todos unanimidade em afirmar que S. Paulo era o autor de Hebr. Nos
últimos decênios, porém, os exegetas têm de novo focalizado o problema, sendo
que os mais abalizados negam tenha o Apóstolo redigido tal documento.
Vejamos
de perto quais as razões evocadas na controvérsia.
A. Contra a origem
paulina de Hebreus
1. Apresentam-se, antes do
mais, razões de crítica literária, das quais as principais são as seguintes:
a) O autor de Hebr se
distingue dos Apóstolos propriamente ditos, reconhecendo ter recebido a
mensagem evangélica da parte dos que a ouviram diretamente de Cristo. Cf. Hebr
2,3 : «Anunciada primeiramente pelo Senhor, a salvação nos foi depois
transmitida com toda a segurança por aqueles que a ouviram».
Obs:
Usaremos a sigla Hebr para abreviar a designação «Epístola aos Hebreus».
Ao contrário, S. Paulo com
muito ardor asseverava a sua missão de Apóstolo enviado diretamente por Cristo
para pregar o Evangelho. Cf. Gal 1,1: «Paulo, constituído Apóstolo não pelos
homens, nem por intermédio de algum homem, mas por Jesus Cristo...»; Gal 1,12:
«Não foi de algum homem que recebi ou aprendi o Evangelho; foi-me revelado por
Jesus Cristo».
Ora as duas posições
parecem irredutíveis uma à outra.
Isto é
confirmado pela referência que o autor de Hebr faz aos chefes da comunidade de
seus leitores: «Lembrai-vos de vossos dirigentes, que vos pregaram a palavra de
Deus. Considerai qual foi o fim de sua vida, e imitai-lhes a fé» (Hebr 13,7).
São Paulo não teria escrito tais palavras, pois ele mesmo era dirigente de
comunidades e exercia ciosamente as suas funções.
b) Hebr
carece do exórdio habitual nas epístolas paulinas, em que o Apóstolo se
apresenta aos leitores e os saúda. Donde concluem alguns exegetas que tal
documento não é uma epístola, mas um tratado teológico, ao qual foi
acrescentado posteriormente um epílogo ou fecho de epístola (cf. 13,18-25).
c) O vocabulário
de Hebr difere assaz do dos genuínos escritos de S. Paulo. De fato, dentre as
992 palavras que constituem o léxico de Hebr, 292 não se encontram nas
autênticas epístolas paulinas; a ausência de alguns desses vocábulos no «corpo
de escritos paulinos» vem a ser particularmente estranha (assim as palavras «to
hagion», santuário, que ocorre 10 vezes em Hebr; «hiereus», sacerdote, que
aparece 14 vezes em Hebr; «archiiereus», Sumo Sacerdote, 17 vezes em Hebr...).
Doutro lado, pergunta-se:
porque faltam em Hebr certos termos tão característicos de S. Paulo? Tais
seriam: «apokalypsis», revelação, e «apokalypto», revelar, 27 vezes ocorrentes
em S. Paulo; «gnosis», conhecimento, 23 vezes em S. Paulo; «gnosis»,
conhecimento, 23 vezes em S. Paulo; «dikaioo», justificar, 26 vezes em S.
Paulo; «ethnos», povo, 53 vezes em S. Paulo ; «evangelion», evangelho, 69 vezes
em S. Paulo.
d) O estilo
de Hebr é literário e mesmo clássico, o mais esmerado que ocorra no Novo
Testamento; caracteriza-se pela harmonia e pelo ritmo fluente (cf. 1,1-4;
2,2-4. 14-18; 7,20-25), ao passo que o estilo de S. Paulo é o de uma eloquência
ardente, cujas frases são não raro cortadas bruscamente, ficando incompletas;
apelos ardentes, afetividade vibrante assim se manifestam (cf. Rom 1,1-7;
2,17-21; 5,12s).
e) O modo
de citar a S. Escritura em Hebr também diverge do que é habitual em S.
Paulo. — S. Paulo muitas vezes nomeia o autor do livro que ele cita («Moisés
diz...», Rom 10,19 ; «Davi diz...», Rom 4,6 ; «Isaias diz...», Rom 10,16); caso
não indique nome, o Apóstolo recorre a fórmulas clássicas («como está escrito,
diz a Escritura, diz a Lei» ou simplesmente «está escrito...»). Ao contrário, o
autor de Hebr refere-se diretamente a Deus ou ao Espírito Santo (cf. 2,12.13;
3,7; 4,4; 7,17; 10,5.15).
f) No
terreno doutrinário propriamente dito, notam-se pontos de vista diversos
em S. Paulo e em Hebr (o que não quer dizer: oposições ou contradições).
Assim, ao considerar a Lei
de Moisés ou as disposições do Antigo Testamento, S. Paulo focaliza
principalmente o aspecto moral da Lei: esta era excelente, mas não podia
santificar o homem porque a natureza humana era fraca, ainda carecente da graça
do Redentor; em consequência, o papel da Lei foi o de excitar nos judeus a
consciência de sua incapacidade para irem a Deus e, consequentemente, o desejo
do Redentor. — A epístola aos Hebreus focaliza de preferência o aspecto ritual
da Lei: apresenta-a, sim, como um código de oblações e cerimônias que figuravam
o sacrifício de Cristo, preparando assim os homens a receber o Redentor.
Além disto, nota-se que
S.. Paulo concentra todo o seu ensinamento em torno da doutrina de Jesus Cristo
crucificado e ressuscitado; tem sempre ante os olhos o sacrifício oferecido na
cruz (cf. Gal 3,1). — A epístola aos Hebreus, porém, prefere contemplar Jesus
assentado à direita de Deus Pai, sempre intercedendo por nós, após a vitória
obtida na terra. Em consequência, os leitores de Hebr são convidados a levantar
os corações para Cristo Sumo Sacerdote, que oficia no céu; S. Paulo põe, antes,
ênfase no fato de que o cristão vive em Cristo e Cristo vive no cristão (é este
um outro aspecto do mistério de Cristo e da Igreja).
2. Além das razões de
crítica interna acima recenseadas, fala contra a origem paulina de Hebr o
depoimento de autores cristãos ocidentais dos primeiros séculos.
De fato. Até fins do séc.
IV, não poucos escritores citavam a epístola aos Hebreus como documento
sagrado, canônico, mas mostravam-se incertos a respeito do redator,
atribuindo-a não raro a S. Barnabé. Assim S. Ireneu (séc. II), S. Hipólito de Roma
(+235), Tertuliano (+ depois de 220), S. Gregório de Elvira (+ depois de 392).
Outros escritores chegavam
a negar a índole inspirada ou canônica de Hebr, posição esta que se explica em consequência
de uma situação transitória provocada por certa heresia dos séculos II/III. Com efeito, os Montanistas e
Novacianos, por essa época, negavam a remissibilidade de certos pecados graves,
apelando abusivamente para Hebr 6,4-8, como se a Sagrada Escritura mesma
ensinasse não haver perdão para determinadas culpas. Visando então tirar o
valor ao argumento de tais rigoristas, alguns mestres e pregadores puseram em
dúvida a autoridade de Hebr, enumerando por vezes este documento entre os
escritos apócrifos ou não bíblicos.
Assim
fizeram Caio Romano (inicio do séc. III), S. Cipriano (+ 258), S. Optato de
Milevo (cerca de 370-375), o autor do fragmento Muratoriano (catálogo bíblico
do séc. II) e o do Cânon Mommseniano (em 360 aproximadamente). Contemporaneamente,
porém, não deixavam de se fazer ouvir vozes que reconheciam a índole canônica
ou inspirada de Hebr, embora não soubessem exatamente qual o respectivo autor
humano.
S.
Jerônimo, ainda no início do séc. IV, aludia a Hebr nos seguintes termos:
«Entre os romanos até nossos dias não é tida como carta do Apóstolo Paulo». S.
Agostinho, a partir de 409 até o fim da vida (430), citava, sim, Hebr como
escrito canônico ou inspirado, mas não a apresentava como obra de S. Paulo.
Desde meados do séc. IV, à
medida que se esvanecia o perigo do rigorismo herético, foi prevalecendo no
Ocidente a persuasão de que Hebr pertence ao catálogo sagrado. Em consequência,
os concílios de Hipona (393) e de Cartago I (397) a enumeraram entre os
escritos bíblicos, afirmando assim uma posição que se tornou unânime em toda a
S. Igreja. Quanto à autoria paulina da epístola, ela foi sendo mais e mais
professada pelos latinos a partir do séc. IV, de modo a ser comumente admitida
nos séculos seguintes até os últimos tempos.
Eis as principais razões
que levam bons exegetas católicos modernos a controverter a origem paulina (não
o valor bíblico ou inspirado) de Hebr.
Contudo ainda há os que
defendem ter S. Paulo escrito tal carta. Recorrem aos argumentos abaixo:
B. Em favor da origem
paulina de Hebr.
1. Principalmente razões
históricas ou os testemunhos dos escritores do Oriente são aqui evocados.
Desde
remota época, houve escritores cristãos orientais que atribuíram a S. Paulo a
epístola aos Hebreus, embora não faltasse simultaneamente quem (como no
Ocidente) duvidasse dessa tese. Basta nomear entre outros, o «bem-aventurado
presbítero» do séc. II (Panteno de Alexandria?), cujo testemunho é assim
transmitido por Clemente de Alexandria: «Já que o Senhor (Jesus), Apóstolo de
Deus todo-poderoso (cf. Hebr 3,1), fôra enviado aos Hebreus, Paulo, em virtude
da sua modéstia, e por ter sido enviado aos gentios, não se apresentou no
cabeçalho da epístola como Apóstolo dos Hebreus» (testemunho consignado por
Eusébio, Hist. ecles. 6, 14, 2ss ed. Migne gr. 20, 549. 552).
Clemente
de Alexandria (+ antes de 215), segundo Eusébio (1. c.), «afirmava ter S. Paulo
escrito a epístola aos Hebreus, mas em idioma hebraico, visto que se dirigia
primariamente aos hebreus; Lucas teria zelosamente traduzido para o grego».
Como se
vê, também Clemente não nutre dúvida sobre a origem paulina de Hebr, mas
mostra-se consciente do problema dessa carta.
Não é
necessário nos detenhamos no enunciado dos diversos nomes que favorecem a tese
da autenticidade.
2. Razões literárias
ou de crítica interna também são aduzidas para demonstrar a origem paulina de
Hebr. Apesar das diferenças, há, sem dúvida, semelhanças de doutrina e
vocabulário entre Hebr e as epístolas de S. Paulo. Contudo essas semelhanças
perdem algo da sua força de argumento no nosso problema, desde que se leve em
conta a grande influência que em geral as treze genuínas epístolas de S. Paulo
devem ter exercido sobre o pensamento e o vocabulário de qualquer dos
escritores cristãos contemporâneos e subsequentes ao Apóstolo. «As iniciativas
e a autoridade de Paulo são tais que não se poderia conceber uma epístola
posterior, dotada de certa envergadura, que não lhe devesse grande parte de
seus conceitos e não se exprimisse em termos análogos... Depois do ano de 64,
ninguém podia mais falar de Cristo, da fé, da salvação, etc., sem se referir ao
menos implicitamente ao que Paulo escrevera sobre tais assuntos» (C. Spicq,
L'Epitre aux hébreux I. Paris 1952, 144).
Os
exegetas, porém, assinalam alguns pormenores de pensamento e de linguagem
particularmente significativos, dentre os quais se podem citar os seguintes:
- Cristo
é descrito como irmão dos homens (Hebr 2,11; Rom 8, 29);
- obediente até a morte (Hebr 5,8; Rom 5,19; 2
Cor 10,5; FIp 2,8);
- Jesus
não quis agradar a Si mesmo (Rom 15, 3; 2 Cor 8,9), abraçando consequentemente
o sofrimento e a morte (Hebr 12, 1-3).
- o
êxodo dos israelitas que saíram do Egito, mas não puderam entrar na Terra
Prometida por causa da sua infidelidade, é explanado no mesmo sentido em Hebr
3,7s e 1 Cor 10,1-13. «Todas essas coisas lhes aconteciam para servir de
exemplo e foram escritas para nossa orientação» (1 Cor 10,11).
- as
montanhas do Sinai e de Sião (Jerusalém) correspondem antiteticamente uma à
outra (Hebr 12,18-22; Gál 4,24-26).
- a Lei
de Moisés era insuficiente para reconciliar os homens com Deus (Hebr 10,1-4;
Rom 3,20; 5,20; Gál 3,19). Em consequência, foi ab-rogada por Cristo (Hebr
10,4-7; Rom 10,4).
Que se
poderia concluir de tais semelhanças ? .
É o que
se verá no parágrafo abaixo.
2. A solução mais provável
Considerando os pontos de
contato entre Hebr e S. Paulo, bons exegetas modernos concluem que a epístola
aos Hebreus, assim concebida, deve ser tida como evolução homogênea e
complemento do epistolário paulino. De um lado, ficam sendo inegáveis as
divergências acidentais (não essenciais) já apontadas; em consequência julgam
os críticos que o redator de Hebr não pode ser identificado com o Apóstolo S.
Paulo. De outro lado, esse redator se mostra tão familiarizado com a mensagem
do grande Apóstolo que a própria crítica é induzida a procurá-lo no circulo dos
discípulos de S. Paulo.
«A
análise desses pontos de afinidade não prova em absoluto que um só autor tenha
escrito Hebr e o epistolário paulino, nem prova que, de dois autores, um tenha
copiado os escritos do outro. O problema é muito mais complexo, dadas as
divergências de vocabulário que acima realçamos. O que se pode concluir, é que
o redator da epístola aos Hebreus conhecia muito bem os escritos de S. Paulo;
lera-os muitas vezes, e deles se nutrira. Isto nos leva a crer que tenha sido
um discípulo do Apóstolo» (E. Jacquier, Históire des livres du Nouveau
Testáment I. Paris 1908, 465).
Tais considerações e a
conclusão que delas decorre são bem plausíveis; merecem preferência sobre a
tese que atribui, sem mais, a origem de Hebr ao Apóstolo S. Paulo. Em outros termos,
a mesma sentença pode ser assim enunciada: o Apóstolo S. Paulo é o autor (no
sentido de «principal fonte da doutrina e dos conceitos») da epístola; um
discípulo, porém, do grande Apóstolo terá sido o redator desse documento,
dando-lhe não somente o seu estilo e o seu vocabulário próprios, mas também os
traços característicos da sua formação e mentalidade.
O redator
de Hebr não foi, portanto,, um mero secretário ou, como se diria na linguagem
moderna, um datilógrafo de S. Paulo. Devia ter personalidade intelectual e
religiosa muito acentuada. Era um pensador que, mesmo ao sofrer influências do
seu ambiente, guardou a autonomia de pensamento e expressão, apresentando assim
algo de genial e contribuindo para enriquecer a teologia do Novo Testamento. Em
particular, julga-se que deve ter sido um judeu — dado que conhecia muito bem
as Escrituras do Antigo Testamento — e um judeu de Alexandria no Egito, pois
nesta cidade desde o fim da era pré-cristã se constituíra uma escola judaica de
exegese que, usando de estilo grego assaz elegante, tendia a desenvolver o
sentido místico ou tipológico dos livros do Antigo Testamento (como faz o
redator de Hebr). Dessa escola, o principal representante foi o israelita Filo
de Alexandria.
A esta altura, porém,
impõe-se a elucidação de uma dúvida que poderia surgir do confronto da
conclusão acima com ponderoso documento do magistério eclesiástico referente à
origem de Hebr.
3. E as declarações
da Pontifícia Comissão Bíblica ?
Aos 24 de junho de 1914, a
Pontifícia Comissão Bíblica (a qual não goza do carisma da infalibilidade)
respondia a três perguntas que lhe foram feitas a respeito da epístola aos
Hebreus. Tais declarações são, por vezes, interpretadas em sentido demasiado
estrito como se vedassem qualquer discussão crítica concernente à origem de
Hebr. Errônea seria esta conclusão. — Eis o que se depreende de uma análise
fiel das decisões da P. Comissão:
1) As
dúvidas e controvérsias verificadas nos primeiros séculos a propósito da
canonicidade e autenticidade de Hebr não constituem argumento suficiente para
que não se enumere tal documento no catálogo das cartas paulinas. A epístola
aos Hebreus é, pois, um documento canônico, bíblico, cujo lugar adequado no
cânon sagrado é o «corpo dos escritos apostólicos».
2) As
razões literárias ou de crítica interna de Hebr não bastam por si para que se
negue a influência do Apóstolo S. Paulo na confecção desta carta, Há mesmo,
entre os escritos paulinos e Hebr, afinidade tal que se deve admitir a mesma
fonte ou a mesma origem para todos esses documentos. Contudo essa identidade de
fonte ou origem não quer dizer que S. Paulo tenha dado a respectiva forma
literária a Hebr, como se depreende do item abaixo:
3) É
perfeitamente licito, salvo ulterior juízo do magistério da Igreja, atribuir a
redação literária de Hebr a um escritor diverso do Apóstolo S. Paulo.
Assim, como se vê, a
Pontifícia Comissão Bíblica admite, para Hebr, origem paulina em sentido largo
ou, conforme dizem alguns, «autenticidade paulina indireta».
Resta
aberta aos críticos a tarefa de identificar o redator de Hebr. O parágrafo
abaixo tentará referir as sentenças dos exegetas contemporâneos mais abalizados
no assunto
4. Quem terá sido o redator?
A
resposta a este quesito é tão obscura que muitos autores se abstêm de a
procurar, desistindo portanto de aventar conjeturas sobre qualquer dos
possíveis nomes de escritores antigos. O exegeta alemão A. Oepke chega a
comparar o problema ao da «quadratura do círculo» (Das Neue Gottesvolk.
Gütersloh 1950, pág. 17).
Dentre as várias respostas
formuladas, destacaremos apenas as que se seguem:
a)
Uma das. hipóteses mais antigas indica S. Clemente, bispo
de Roma em fins do séc. I.
Este autor deixou uma
carta genuinamente sua, escrita aos Coríntios. Ora o confronto desta missiva
com a epístola aos Hebreus resulta em desabono da hipótese: Clemente não possui
a genialidade do autor de Hebr; cita e imita... mais do que aprofunda os temas.
Ademais, se Clemente de Roma fosse o redator de Hebr, não se entende que
justamente em Roma não houvesse conhecimento disto, como de fato não houve.
b)
Outra teoria antiga aponta S. Lucas Evangelista. Este
escritor reúne mais títulos de probabilidade do que o anterior: pertence, sim,
à segunda geração apostólica; foi assíduo companheiro de S. Paulo; usa de
estilo e vocabulário muito afins aos de Hebr; interessa-se pelo Templo e o
culto em Jerusalém; considera Jesus especialmente como Salvador misericordioso,
etc. — Contudo tais pontos de contato são superficiais: Lucas, no Evangelho e
nos Atos, se revela um historiador atento aos fatos concretos; não é teólogo
especulativo, ao passo que o autor de Hebr dá muito mais atenção às ideias do
que aos fatos concretos. Sírio, e não israelita, convertido do helenismo
paganizante, Lucas dificilmente teria podido assimilar o Antigo Testamento e
experimentar a simpatia pela história e as instituições de Israel que
transparece através de Hebr. A afinidade, portanto, vigente entre Hebr e os
escritos de S. Lucas se deve ao fato de que todos esses documentos dependem da
catequese paulina.
c)
Goza de certa autoridade a sentença que atribui à redação
de Hebr a S. Barnabé. Professam-na escritores antigos desde Tertuliano assim
como a maioria dos exegetas contemporâneos. Vários títulos recomendam tal tese:
Barnabé pertenceu, sim, à segunda geração cristã, como uma das figuras mais
eminentes da época dos Apóstolos. Era de raça judaica, oriundo da diáspora
helenista, ou seja, da ilha de Cipro; falava o grego desde a infância; pode
muito bem ter sido formado em Alexandria, já que frequentes eram as relações
entre Cipro e o porto de Alexandria. Acompanhou S. Paulo no apostolado em
Antioquia e na primeira viagem missionária. Além disto, era levita e, por isto,
ótimo conhecedor dos ritos e dos costumes dos israelitas.
Contudo também esta
sentença apresenta seus pontos obscuros:
Sabe-se que Barnabé se
separou de S. Paulo no inicio da segunda viagem missionária (por volta do ano
de 50; cf. At 15,36-39); não se tem notícia de que haja voltado para perto do
Apóstolo. Ora a epístola aos Hebreus parece ter sido redigida pouco antes do
ano de 70; em Antioquia Barnabé fez concessões às observâncias judaicas (cf. Gal
2,13), mostrando assim estranha independência em relação a S. Paulo; conforme
Gál 2,9 e At 11,22-24, S. Barnabé se entregou ao apostolado entre os gentios;
não pertenciam, portanto, ao temário de sua pregação habitual os assuntos
abordados em Hebr (daí estranhar-se tivesse escrito tal epístola); em Licaônia
usaram da palavra Paulo e Barnabé, de tal modo que o povo, impressionado,
identificou S. Paulo com o Deus da Palavra, Hermes (cf. At 14,12). Não seria
isto indício de que Barnabé não possuía dons de eloquência, dons que se devem
supor no redator de Hebr?
d) Alguns comentadores
modernos, ao ler a epístola aos Hebreus, se lembram do diácono e primeiro
mártir S. Estêvão, impressionados pelos traços de semelhança existentes entre
Hebr e o sermão de S. Estêvão em At 7: ambos estes documentos percorrem a
história de Israel para mostrar que, rejeitando Cristo, os judeus renegaram o
seu passado e desviaram a linha de suas tradições, que os devia normalmente
levar a Jesus Cristo como a seu complemento. O percurso, em ambos os casos, se
detém nas mesmas etapas: Abraão, José, Moisés, Josué. Em ambos os documentas,
lê-se até a tradição rabínica segundo a qual a Lei foi transmitida a Moisés
pelos anjos e o tabernáculo de Deus na terra foi construído à semelhança de um
modelo celeste (cf. At 7, 38. 44 e Hebr 2,2; 8,5).
Todavia
S. Estêvão morreu cedo demais (antes da conversão do próprio S. Paulo em 36)
para poder ser tido como autor de Hebr. Dos pontas de contato indicados apenas
se pode concluir que a apologia de S. Estêvão perante o Sinédrio se tornou
fonte básica da apologética paulina e cristã dos primeiros séculos; por
conseguinte, terá exercido influência notável sobre Hebr.
e) Outras sentenças se
têm feito ouvir, sem fundamento sólido, em favor do diácono Filipe, profeta,
taumaturgo, evangelizador do Sul da Palestina (cf. At 21,8); ..." em favor
de Aristião, a quem se atribui o epilogo do Evangelho de S. Marcos (como se houvesse
afinidade entre Hebr e Mc 16, 9-20); ... em favor de Priscila e de seu marido
Aquila, casai judeu muito chegado a S. Paulo...
f) Finalmente, depois de
ponderadas todas as hipóteses dos exegetas, a mais plausível parece ser a que
atribui Hebr a Apolo de Alexandria. Com efeito. A respeito deste personagem
refere S. Lucas:
«Chegou
a Éfeso um judeu chamado Apolo, natural de Alexandria, homem eloquente e muito
versado nas Escrituras. Fôra instruído no que se refere ao caminho do Senhor,
e, dotado de espírito ardoroso, falava e ensinava com exatidão a respeito de
Jesus, embora só conhecesse o batismo de João. Começou a falar
desassombradamente na sinagoga. Quando Priscila e Áquila o ouviram, levaram-no
consigo e expuseram-lhe com exatidão o caminho do Senhor. Como desejasse
dirigir-se à Acaia, os irmãos o animaram e escreveram aos discípulos de lá para
que o recebessem. Chegando, prestou, pelo dom que possuía, grande serviço aos
que tinham abraçado a fé, porque refutava vigorosamente os Judeus em público,
demonstrando que Jesus é o Cristo» (At 18, 24-28).
Apolo era, pois, judeu e,
por conseguinte, bom conhecedor das Escrituras e dos costumes de Israel. Mas
também era helenista, muito versado na oratória grega e, em particular, na
sabedoria de Alexandria, sua cidade natal. Ora estas duas características
parecem marcar radicalmente o escritor de Hebr. Ademais era um apologista,
arguto para discutir e para refutar os judeus, como também revela ser o redator
de Hebr. Qual bom estilista e orador, Apolo (como faz justamente o redator de
Hebr) devia evitar tudo que fosse expressão vulgar ou capaz de melindrar seus
ouvintes e leitores:
Note-se
como em Hebr 13,22 o autor sagrado, terminando a sua exortação, com delicadeza
e urbanidade pede aos leitores que a recebam benevolamente. Para ele, a vida
cristã é um estilo ou uma atitude de alma (13,5), que a graça de Deus torna bela
(5,14; 10,24; 13,9.18). Dedica estima especial à honra e ao brio de caráter:
assim incute a fidelidade à tradição venerável dos Pais, c.11,... a necessidade
de nos tornarmos dignos da assembleia celeste, 12,22s, podendo a apostasia
constituir um motivo de escândalo particularmente grave, 10,36-39.
Apoio deve ter gozado de
grande autoridade e prestígio entre os primeiros cristãos, à semelhança do que
se dava com o redator de Hebr; por isto, em Corinto alguns fiéis o queriam
indevidamente fazer chefe de partido, assemelhando-o a Pedro e Paulo, colunas
da Igreja (cf. 1 Cor 1,12; 3,4-6; 4,6); Apolo não tinha, pois, temperamento
para ser mero secretário ou repetidor.
Vários outros pontos de
contato se poderiam assinalar ; embora cada qual de per si pareça de pouca
monta, o seu conjunto não deixa de ter força persuasiva. Por
isto com boa probabilidade de acerto pode-se admitir tenha Apolo, de fato, sido
o feliz e nobre redator de Hebr.
A
título de complemento, diga-se que o autor sagrado deve ter tido em vista uma
comunidade de judeus convertidos ao Cristianismo nos primeiros tempos mediante
a pregação de S. Estêvão e exilados em virtude da perseguição que se seguiu ao
martírio deste santo; deviam ter emigrado para o litoral da Síria e da
Palestina (Cesaréia ou Antioquia?).
Eram
antigos sacerdotes israelitas, que, com grande apreço, se recordavam das
cerimônias que eles haviam celebrado no Templo de Jerusalém; como cristãos,
participavam de um culto relativamente simples, ficando ademais sujeitos a maus
tratos e ódio da parte de seus compatriotas. O contraste os afligia, de mais a
mais que Cristo, retardando a sua segunda vinda, parecia haver esquecido os
seus; daí o desânimo e as dúvidas de fé que os invadiam... Ora, para os
corroborar na crença e na coragem é que o redator de Hebr lhes terá escrito a
sua palavra de exortação (cf. 13, 22), impregnada de eloquência e entusiasmo:
quis mostrar-lhes como o antigo culto israelita tendia, essencialmente a se
consumar em Cristo; em consequência, era mesmo necessário que se entregassem à
mensagem cristã e vivessem da fé, regime normal para todos os justos (cf.
10,38). — O lugar da redação terá sido a Itália, entre os anos de 65/67, ou
seja, antes /da queda de Jerusalém, pois justamente o culto que se continuava a
Celebrar na Cidade Santa ainda devia estar atraindo os destinatários de Hebr.
Dom Estêvão
Bettencourt (O.S.B.)