PERGUNTE e RESPONDEREMOS 56
– agosto 1962
MOISÉS,
ESPOSO SANGUINOLENTO?
SAGRADA
ESCRITURA
LUÍS
(Maceió): «Que quer dizer o texto de Êxodo 4, 24-26? Javé teria resolvido
matar Moisés... Séfora, então, a esposa deste, haverá circuncidado seu filho,
salvando assim a vida do Legislador... A seguir, terá declarado a Moisés : 'És
para mim um esposo
sanguinolento!' Isso tudo é assaz misterioso!»
As
dificuldades para entender a mencionada passagem se devem não somente à
concisão do estilo, mas também ao fato de estar o texto mal transmitido,
havendo variantes de leitura nos códices antigos; donde se compreende que mais
de uma elucidação é possível.
Procuraremos
abaixo propor o que há de certo e o que fica incerto em tal secção do Êxodo.
1. É
certo...
Como
ponto de partida do nosso estudo, segue-se uma tradução plausível (embora não
seja a única possível) do texto de Ex 4,24-26:
24
«Moisés, em viagem, deteve-se para passar a noite, quando o Senhor o abordou,
procurando matá-lo. 25 Séfora então tomou uma pedra afiada, cortou o prepúcio
de seu filho e fez que tocasse o sexo de Moisés, dizendo: 'Era verdade, és para
mim um esposo sanguinolento!'. 26 Assim Javé deixou Moisés. Séfora havia dito:
'Esposo sanguinolento', por causa da circuncisão».
1.1.
Já que o episódio se desenvolve em torno da circuncisão, convém antes do mais
lembrar um ou outro traço do que dissemos em «P. R.» 12/1958, qu. 5, a respeito de tal rito.
A
circuncisão consistia em um talhe de pele ou, mais precisamente, na ablação do
prepúcio. Parece ter estado em uso desde remotíssimas épocas, pois nos tempos
relativamente recentes a que se refere a Escritura Sagrada (segundo milênio
antes de Cristo, quando já havia metalurgia), ainda era praticada com lâminas
de pedra afiada (o que lembra a idade da pedra talhada); cf. Jos 5,3. Tal rito
era assaz comum entre os povos antigos, continuando até hoje em vigor na sétima
parte, aproximadamente, da população do globo. A sua origem fica sondo assaz
obscura: crê-se com verossimilhança que se tratava de um rito de iniciação ao
casamento, rito destinado a favorecer a fecundidade e o ato sexual (tenha-se em
vista o fato de que os vocábulos hebraicos que designam o genro — hathan — e o
sogro — hothen — se derivam da mesma raiz hatan, que significa circuncidar em
árabe).
Dado
que a circuncisão fosse cerimônia pré-nupcial, entende-se que os pagãos a
aplicassem geralmente aos adolescentes, e não às crianças; devia equivaler a um
ato de declaração de plena virilidade.
Visto
que tal rito era muito familiar aos antigos, o Senhor quis que servisse em
Israel para assinalar a adesão do judeu ao povo escolhido; era, pois, a marca
distintiva dos varões que aceitavam a aliança que Javé iniciara com Abraão,
prometendo a este Patriarca a bênção messiânica (cf. Gên 17,9-14).
Consequentemente, entende-se que a circuncisão entre os israelitas tenha sido
praticada na infância, ou seja, no oitavo dia após o nascimento da prole
masculina (e não na idade da adolescência).
Passemos
agora ao trecho bíblico que interessa analisar.
1.2. Narra o livro do Êxodo c. 4 que
Moisés, atendendo a um chamado de Deus, deixou a terra de Madiã e se pôs a
caminho da corte de Faraó no Egito. Em uma etapa noturna, o Senhor Deus (ou,
conforme a tradução grega dita «dos LXX», um anjo do Senhor) apareceu ao santo
varão, procurando matá-lo... Sem metáfora, esta passagem quer simplesmente
dizer que, durante a sua viagem, Moisés se viu na iminência de terrível castigo
divino: grave moléstia ou sério perigo de morte o devem ter acometido... E por
que motivo? — Embora o texto sagrado não o diga explicitamente, depreende-se
que a punição se devia ao fato de não haver sido circuncidado Gersam, o filho
de Moisés. Sim; logo que Séfora praticou tal rito, Moisés foi poupado e
recuperou o vigor.
Já
que vivera até então no território de Jetro, seu sogro, o qual não devia ter o
costume de circuncidar criancinhas, Moisés ter-se-á deixado influenciar por este
varão, omitindo a circuncisão de seu filhinho oito dias após o respectivo
nascimento; ora isto equivalia a grave transgressão de solene preceito de Javé;
não podia ser tolerado na família do futuro legislador de Israel. Justamente
para fazer que Moisés compreendesse bem a incoerência de tal situação é que o
Senhor houve por bem intimá-lo na citada etapa da sua viagem.
Consciente
disto, Séfora fez as vezes de seu marido enfermo e achacado, realizando a
circuncisão de seu filhinho. Em consequência, o Senhor fez cessar o grave
perigo que pesava sobre Moisés.
Eis o significado geral do texto de Êx
4,24-26; não deixa margem a sérias hesitações. As dificuldades começam quando
se analisam os pormenores referidos nos v. 25 e 26 (pode-se, de resto, notar
que o v. 26 falta por completo na tradução grega dos LXX). — Abordemos,
portanto, as dúvidas e suas possíveis soluções.
2. O que
fica incerto
A
primeira fonte de hesitações exegéticas é o fato de que a forma hebraica
original de Êx 4, 25s e a antiga tradução grega dos LXX não concordam entre si
na transmissão do texto.
Veiamos,
pois, separadamente cada uma dessas duas faces da secção bíblica.
a)
O texto hebraico
Eis
o teor do texto fielmente traduzido do hebraico:
24
«Moisés, em viagem, deteve-se para passar a noite, quando o Senhor o abordou,
procurando matá-lo. 25 Séfora então tomou uma pedra afiada, cortou o prepúcio
de seu filho e tocou os pés de Moisés com ele, dizendo: "Era verdade, és
para mim um esposo sanguinolento!'...»
No
trecho acima, a dificuldade de explicação provém principalmente da expressão
«tocou os pés».
a')
Alguns exegetas observam que a palavra «pés» é não raro, na Bíblia, um
eufemismo que designa as partes genitais (cf. Dt 28,57; Gên 49,10).
Admitindo-se que tal seja o caso também em Êx 4,25, o autor sagrado afirmaria
que Séfora tocou os órgãos genitais de seu esposo com o prepúcio de seu filho.
Isto se explicaria na hipótese de que Moisés ainda não tivesse sido
circuncidado até aquele momento; o sangue e a circuncisão do filho
substituiriam o sangue e a circuncisão do pai, e aplacar-se-ia a justa ira de
Deus.
Que
dizer de tal interpretação?
Por
mais verossímil que pareça, encontra obstáculos.
Com efeito. Pergunta-se: como chegar à
certeza de que «pés», no texto, é tomado como eufemismo, e não ao pé da letra?
Como admitir que Moisés não tivesse sido circuncidado até aquele momento? Qual
o fundamento para crer que a circuncisão do filho valia pela do pai? Se Moisés
estivesse diretamente em falta, não teria Séfora empreendido a circuncisão do
próprio Moisés, em vez da do filho? Sabe-se que Abraão circuncidou não somente
seu filho Isaque, mas também a si mesmo, embora estivesse em idade adulta (cf.
Gên 17,23). Sabe-se também que os homens de Siquém e os guerreiros de Josué
foram circuncidados como adultos (cf. Gên 34,24 e Jos 5,2-8).
Estas
considerações levam o intérprete a procurar outra explicação do texto.
b') Há autores que tomam a palavra «pés» na
sua acepção própria ou literal. Lembram outrossim que algumas traduções antigas
e abalizadas (Símaco, Teodocião, Peschitto, os LXX) entendem «tocar os pés», em
Êx 4,25, no sentido de «cair aos pés» ou «abraçar os pés». Séfora teria feito
isso, exclamando ao mesmo tempo : «És para mim um esposo sanguinolento!» Com
tal gesto, ela haveria observado que seu esposo Moisés acabava de lhe custar o
preço do sangue de seu filho; sim, o marido teria sido conservado em vida por
efeito da circuncisão ou do derramamento de sangue da criança.
Contudo
também esta hipótese fica sendo pouco provável, porque, como a anterior, supõe,
não tenha sido Moisés circuncidado. Dai o recurso a nova explicação...
c')
Moisés fôra, sim, circuncidado, mas com circuncisão meramente carnal ou ritual,
e não com uma circuncisão «de coração» (como diz o profeta Jeremias 9,26); isto
é: a circuncisão de Moisés, praticada no Egito, não teria tido valor religioso;
não terá sido a circuncisão completa e total que o Senhor Deus esperava dos
filhos de Israel; a circuncisão de Gersam tornava-se assim necessária para
assegurar a Moisés (por transferência simbólica) os benefícios da aliança com
Javé. — Tal teoria é assaz arbitrária e inconsistente. Resta então tentar o
exame de:
b)
A versão dos LXX
Em
vista dos pontos obscuros do texto hebraico, há exegetas que preferem elucidar
a passagem na base da tradução grega dos LXX, que assim se apresenta:
25
«Séfora tomou uma pedra afiada, cortou o prepúcio de seu filho, e caiu-Lhe aos
pés, dizendo ; 'Está entregue o sangue da circuncisão de meu filho!'» Falta o
v. 26.
Neste caso, o pronome obliquo «Lhe»
designaria não Moisés, mas o Senhor Deus. A Este então Séfora teria dirigido as
palavras citadas, desejando salientar que a circuncisão acabava de ser
realizada e que, por conseguinte, já não havia motivo para que Moisés
continuasse a ser ameaçado de castigo ou morte. A exclamação de Séfora
equivaleria assim a uma prece em favor de seu esposo, a fim de que o Senhor lhe
poupasse a vida. O v. 26 do texto hebraico atestaria que tal oração foi de fato
bem sucedida : «Javé deixou Moisés».
Esta
hipótese supõe naturalmente que o Senhor tenha aparecido a Moisés e Séfora sob
forma humana dotada de pés (coisa semelhante, aliás, se 16 em Gen. 16, 7-13).
Tal suposição é plausível; somente vendo a forma humana de Javé é que Séfora
podia compreender que o perigo de morte de Moisés não era meramente natural,
mas se devia a intervenção extraordinária de Deus, motivada por um pecado.
Esta nova interpretação é bem mais simples.
Recomenda-se por dispensar certas suposições que as explicações anteriores
tornam necessárias. Apenas se lhe pode objetar que se baseia não no texto
original, mas numa tradução, que, embora seja antiga, reproduz por vezes o
pensamento dos tradutores, e não o do autor da forma original.
Diante
de todas estas ponderações, fica sendo difícil optar por determinada explicação
do texto de Êx 4,24-26, de preferência a qualquer outra. Numa conclusão serena
e objetiva, dir-se-á, portanto, que é preciso renunciar a saber «demais» no
caso; ao leitor toca a liberdade de avaliar os argumentos favoráveis e
desfavoráveis de cada sentença, e formar pessoalmente o seu juízo no tocante
aos pormenores (não ao teor geral) de Êx 4,24-26.
Dom Estêvão
Bettencourt (OSB)