PERGUNTE
e RESPONDEREMOS 051 - março 1962
REENCARNAÇÃO e CRISTIANISMO
HISTÓRIA
DO CRISTIANISMO
ALBERTO
(São Paulo): «Como se diz, os primeiros
cristãos professavam a teoria da reencarnação. Foi somente em 533, num sínodo
de Constantinopla, que a Igreja imprudentemente a condenou, introduzindo a
idéia do inferno. Que houve propriamente nesse concílio de Constantinopla?»
Em
resposta, analisaremos primeiramente a doutrina das antigas fontes do Cristianismo
no tocante à reencarnação; a seguir, deter-nos-emos sobre o citado sínodo de
Constantinopla.
1. Antigos documentos cristãos e reencarnação
1.1 Sagrada Escritura.
Nem
o Velho nem o Novo Testamento dão testemunho que de algum modo insinue a doutrina
da reencarnação. Ao contrário, a Escritura professa categòricamente uma só
existência do homem sobre a terra, após a qual cada um é definitivamente
julgado : «Foi estabelecido, para os homens, morrer uma só vez; depois do que,
há o julgamento» (Hebr 9,27). Ao bom ladrão arrependido dizia Jesus: «Hoje
mesmo estarás comigo no paraíso» (Lc 23,43).
Os
principais textos bíblicos concernentes a este assunto (Mt 11,14; 17,12; Jo
1,21; 3,3; 9,1-3) já foram considerados em «P.R.» 3/1957,
qu. 8. Dispensamo-nos, pois, de os analisar novamente aqui, e passamos ao
testemunho dos antigos escritores cristãos.
1.2 Os Padres da Igreja.
Os
adeptos da reencarnação não raro proferem afirmações como a seguinte :
«A
Igreja primitiva não repele absolutamente o ensino reencarnacionista. Os
primeiros padres e, entre eles, S. Clemente de Alexandria, S. Jerônimo e
Rufino, afirmam que ele era ensinado como verdade tradicional a um certo número
de iniciados» (Campos-Vergal, Reencarnação ou Pluralidade das Existências. S. Paulo
1936, 41).
Contudo
os autores desta e de semelhantes proposições não tratam de as comprovar
citando os textos sobre os quais se apoiam; é o que tira a autoridade a tais
assertivas.
Quem,
ao contrário, investiga diretamente as obras dos antigos escritores da Igreja,
chega a conclusão bem diferente da do trecho acima transcrito. Percorramos,
portanto, os escritos dos principais Padres citados pelos reencarnacionistas
modernos.
S. Ireneu
(+202) rejeitava explicitamente a tese da reencarnação, lembrando que em nossa
memória não nos fica vestígio algum de existências anteriores; de outro lado,
advertia, a fé cristã ensina a ressurreição da carne, a qual é incompatível com
a reencarnação das almas em novos corpos (cf. Adv. haer. H 33).
Tertuliano (+220),
usando do seu estilo mordaz, opunha-se ao reencarnacionismo em famosa passagem
(«De anima» 28-35), que assim se pode resumir:
Pitágoras,
que afirma lembrar-se das suas anteriores existências, é vergonhosamente
mentiroso: asseverava, por exemplo, ter tomado parte na guerra de Tróia; como
explicar então que, depois, se tenha mostrado tão pouco valente? Pois, fugindo
da guerra, não veio ele à Itália? E, se em vida anterior foi, segundo afirmava,
o pescador Pirro, como se lhe justificará a aversão pelo peixe? (Sabe-se que
Pitágoras nunca comia peixe). E Empédocles? Não pretendeu ser peixe numa
existência anterior? Deve ser por isso que se atirou na cratera de um vulcão:
com certeza quis ser frito. É tão absurda a migração das almas para corpos de
animais que nem os próprios hereges ousaram defendê-la. — Tertuliano afirmava
outrossim que a reencarnação contraria a noção de justiça de Deus, a qual exige
que a punição afete o próprio corpo que cometeu o pecado, e não algum outro.
Clemente de Alexandria (+215) tinha a doutrina da reencarnação na conta de
arbitrária, pois nem as reminiscências no-la atestam nem a fé cristã.
«Se
tivéssemos existido antes de vir a este mundo, deveríamos agora saber onde
estávamos, assim como o modo e o motivo pelos quais viemos a este mundo»
(Eclogae XVII). Clemente notava que nunca a Igreja professara tal doutrina, a
qual só fôra sustentada por conventículos de hereges ditos «gnósticos»
(Basilidianos e Marcionitas).
São Gregório de Nissa (+394) é explicitamente citado pelos reencarnacionistas
como adepto de sua doutrina. Quem, porém, examina os escritos deste autor,
verifica que Gregório considera a reencarnação como fábula injuriosa à
dignidade humana, pois não hesita em atribuir ao homem, ao animal irracional
(ave, peixe, rã...)
e à planta o mesmo principio vital (cf. «De hominis opificio» 28).
Se,
não obstante, os reencarnacionistas modernos apelam para a autoridade de S.
Gregório de Nissa, isto se deve ao fato de que em alguns pontos foi discípulo
de Orígenes (do qual falaremos no § 2 desta resposta).
São Jerônimo
(+421) é por vezes nominalmente citado em favor da reencarnação. Contudo seria
difícil ou impossível justificar essa «procura de patrocínio» em S. Jerônimo,
pois o S. Doutor se pronunciou diretamente contrário à teoria, e isto...
precisamente ao comentar o texto (muito caro aos reencarnacionistas) de Mt 11,
14, em que São João Batista é designado como Elias:
«João
é chamado Elias, observa S. Jerônimo, não segundo a mentalidade de tolos
filósofos e de alguns hereges, que introduzem a doutrina da metempsicose, mas
pelo fato de ter ele vindo cheio da força e do zelo de Elias, como atesta outra
passagem do Evangelho» (cf. Lc 1,17).
Sto. Agostinho
(+430) é tido por Allan Kardec como um dos maiores divulgadores do espiritismo,
pois, conforme o Codificador, terá sido adepto da reencarnação. Na verdade,
Sto. Agostinho, no livro X c. 30 «De civitate Dei», mostra conhecer as
doutrinas reencarnacionistas de Platão, Plotino e Porfírio, que ele assim
comenta:
«Se
julgamos ser indigno corrigir o pensamento de Platão, por que então Porfírio
modificou a sua doutrina em mais de um ponto, e em pontos que não são de
pequenas consequências? É certíssimo que Platão ensinou que as almas dos homens
retornam até mesmo para animar corpos de animais. Esta opinião foi também
adotada por Plotino, mestre de Porfirio. Mas não lhe agradou, e com muita
razão. É verdade que Porfírio admitiu que as almas entram em sempre novos
corpos: ele, de um lado, sentia vergonha em admitir que sua mãe pudesse algum dia
carregar às costas o filho, se lhe acontecesse reencarnar-se no corpo de uma
mula; mas, de outro lado, não tinha vergonha em acreditar que a mãe pudesse
transformar-se numa jovem e desposar o seu próprio filho! Oh, quanto mais nobre
é a fé que os santos e verazes anjos ensinaram, fé que os Profetas dirigidos
pelo Espírito de Deus anunciaram,... fé que os Apóstolos apregoaram por todo o
orbe! Quanto mais nobre é crer que as almas voltam uma só vez aos seus próprios
corpos (no momento da ressurreição final) do que admitir que elas tomem tantas
vezes sempre novos corpos!» (De civitate Dei X 30).
Considerações
análogas se poderiam multiplicar caso se quisesse continuar a percorrer a
antiga literatura cristã. Isto escaparia, porém, ao intento do presente artigo.
Os dizeres de Sto. Agostinho, fazendo eco à sentença de escritores mais
antigos, principalmente dos mais evocados pelos reencarnacionistas, já bastam
para mostrar que vão seria procurar nos Padres da Igreja tutela e autoridade
para a doutrina da reencarnação. Quem, com sinceridade, observa a documentação
patrística, é levado a concluir que na realidade a Igreja antiga, longe de
ensinar a reencarnação, se lhe opôs abertamente.
Eis,
porém, que a história registra o caso de Orígenes, do Origenismo e do Concílio
de Constantinopla (543), caso assaz controvertido, ao qual devemos agora voltar
a nossa atenção.
2 Orígenes, Origenismo e Constantinopla
É
o nome de Orígenes que por excelência dá ocasião a que alguns escritores
modernos asseverem, terem os antigos cristãos admitido a doutrina da
reencarnação, prosseguindo destarte uma tradição pré-cristã.
Será
preciso, portanto, considerar antes do mais
2.1.
Quem era Orígenes?
Orígenes
(185-254) foi mestre de famosa Escola Catequética ou Teológica de Alexandria (Egito)
numa época em que os autores cristãos começavam a confrontar a revelação do
Evangelho com as teses da sabedoria humana anterior a Cristo. As fórmulas
oficiais de fé da Igreja eram então muito concisas; a teologia (ou seja, a
penetração lógica e sistemática das proposições reveladas) ainda estava em seus
primórdios; em consequência, ficava margem assaz ampla para que o estudioso
arquitetasse teorias e propusesse sentenças destinadas a elucidar, na medida do
possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a tal tarefa, servindo-se da
filosofia de seu tempo e, em particular, da filosofia platônica. Ao realizar
isso, o mestre fazia questão de distinguir explicitamente entre proposições
dogmáticas, pertencentes ao patrimônio da fé e da Igreja, e proposições
hipotéticas, que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões, para
penetrar o sentido das verdades dogmáticas; além disto, professava submissão ao
magistério da Igreja caso esta rejeitasse alguma das teses de Orígenes.
Ora,
entre as suas proposições pessoais, Orígenes formulou algumas que de fato
vieram a ser repudiadas pelo magistério eclesiástico.
Assim,
inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega «psyché» (alma) de
«psychos» (frio), e admitia que as almas humanas, unidas à matéria tais como
elas atualmente se acham, são o produto de um resfriamento do fervor de
espíritos que Deus criou todos iguais e destinados a viver fora do corpo; a
encarnação das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um
abuso da liberdade ou a um pecado dos espíritos primitivos, que Deus terá
punido ligando tais espíritos à matéria. Banidos do céu e encarcerados no
corpo, estes sofrem aqui a justa sanção e se vão purificando a fim de voltar a
Deus; após a vida presente, alguns ainda precisarão de ser purificados pelo
fogo em sua existência póstuma, mas na etapa final da história todos serão
salvos e recuperarão o seu lugar junto a Deus; o mundo visível terá então
preenchido o seu papel e será aniquilado.
Note-se
bem: o alexandrino propunha tais idéias como hipóteses, e hipóteses sobre as
quais a Igreja não se tinha pronunciado (justamente porque pronunciamentos
sobre tais assuntos ainda não haviam sido necessários); não havia, pois, da
parte de Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim
de constituir uma escola teológica própria ou uma heresia («heresia» implica em
obstinação consciente contra o magistério da Igreja).
2.2.
A desgraça de Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores...
Estes atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o
magistério da Igreja as declarou contrárias aos ensinamentos da fé.
É
preciso observar outrossim o seguinte: o mestre alexandrino admitiu como
possível a preexistência das almas humanas. Ora, esta não implica
necessariamente em reencarnação; significa apenas que, antes de se unir ao
corpo, a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não se segue que se
deva encarnar mais de uma vez (o que seria a reencarnação propriamente dita).
Aliás,
Orígenes se pronunciou diretamente contrário à doutrina da reencarnação... Com
efeito; em certa passagem de suas obras, considera a teoria do gnóstico
Basilides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de S. Paulo: «Vivi
outrora sem lei...» (Rom 7,9). Observa então Orígenes: Basilides não percebeu
que a palavra «outrora» não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas
apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava
vivendo; assim, concluía o alexandrino, «Basilides rebaixou a doutrina do
Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias» (cf. In Rom VII).
Contudo
os discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a
preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a
reencarnação (que o alexandrino não chegou de modo nenhum a propor, nem como
hipótese).
Os
principais defensores destas idéias, os chamados «origenistas», foram monges
que viveram no Egito, na Palestina e na Síria nos séc. IV/VI. Esses monges,
como se compreende, levando vida muito retirada, entregue ao trabalho manual e
à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia; admiravam Orígenes
principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas
em que o alexandrino mostrou realmente ter autoridade); não tendo, porém,
cabedal para distinguir entre proposições categóricas e meras hipóteses do mestre,
os origenistas professavam cegamente como dogma tudo que liam nos escritos de
Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e buliçosos quanto
mais simples e ignorantes.
A
tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas,
encontrou decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham
como contrária à fé. Um dos testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza
(+518), autor do «Diálogo sobre a Imortalidade da alma e a ressurreição», em
que se lê o seguinte raciocínio:
«Quando
castigo meu filho ou meu servo, antes de lhe infligir a punição, repito-lhe
várias vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça
para que não recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, que estipula... os
supremos castigos, não haveria de esclarecer os culpados a respeito do motivo
pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de suas faltas,
dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para
que serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só
contribuiria para irritar o réu e levá-lo à demência. Uma tal vitima não teria
o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem ter consciência de haver
cometido alguma falta?» (ed. Migne gr. t. LXXXV 871).
Sem
nos demorar sobre este e outros testemunhos anti-reencarnacionistas do séc. V,
passamos imediatamente à fase culminante da luta origenista.
Na
realidade, a corrente dos origenistas ou o origenismo na primeira metade do
séc. VI provocou famosa celeuma teológica.
Como
se terá desenrolado?
2.3.
No inicio do séc. VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da
Palestina, tendo como principal centro de propagação o cenóbio dito da «Nova
Laura», ao sul de Belém: aí gozavam de apreço as doutrinas referentes à
preexistência das almas, à reencarnação e à restauração de todas as criaturas
na ordem inicial ou na bem-aventurança celeste.
Em
531, o abade São Sabas, que, com seus 92 anos de idade, se opunha enèrgicamente
ao origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador para a
Palestina devastada pelos samaritanos, assim como a expulsão dos monges
origenistas. Contudo alguns dos monges que o acompanhavam, sustentaram em
Constantinopla opiniões origenistas; regressou à Palestina, para ai morrer aos
5 de dezembro de 532.
Após
a morte de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu, invadindo até mesmo o
mosteiro do falecido abade (o cenóbio da «Grande Laura»); em consequência, o
novo abade, Gelásio, expulsou do mosteiro quarenta monges. Estes, unidos aos da
Nova Laura, não hesitaram em tentar tomar de assalto a Grande Laura. Por essa
época, os origenistas (pelo fato de combater uma famosa heresia cristológica
dita «monofisitismo») gozavam de prestigio mesmo em Constantinopla, tendo sido
dois dentre eles nomeados bispos: Teodoro Askidas, para a sede de Cesaréia na
Capadócia; e Domiciano, para a de Ancira.
Com
o passar do tempo, a controvérsia entre os monges da Palestina se tornava cada
vez mais acesa, exigindo em breve a intervenção de instância superior. Foi o que
se deu em 539 : num sínodo reunido em Gaza, o origenismo foi denunciado ao
legado papal Pelágio. Este voltou a Constantinopla na companhia de monges de
Jerusalém encarregados pelo Patriarca desta cidade de pedir ao Imperador o seu
pronunciamento contra o origenismo. A petição foi de fato transmitida, logrando
o almejado êxito: Justiniano, Imperador, comprazia-se em disputas teológicas;
de bom grado, portanto, escreveu um tratado contra Orígenes, de tom
extremamente violento, equiparando as sentenças do alexandrino aos erros dos
pagãos, maniqueus e arianos; concluía com uma série de dez anátemas contra
Orígenes, dos quais especial atenção merecem os seguintes :
«1. Se alguém
disser ou julgar que as almas humanas existiam anteriormente, como espíritos ou
poderes sagrados, os quais, desviando-se da visão de Deus, se deixaram arrastar
ao mal e por este motivo perderam o amor a Deus, foram chamados almas e
relegados para dentro de um corpo à guisa de punição, seja anátema.
5. Se alguém disser
ou julgar que, por ocasião da ressurreição, os corpos humanos ressuscitarão em
forma de esfera, sem semelhança com o corpo que atualmente temos, seja anátema.
9. Se alguém disser
ou julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá fim.
e que se dará uma restauração («apokatástasis», reabilitação) dos demônios,
seja anátema.»
Os
outros anátemas interessam menos, pois se referem a erros cristológicos.
Justiniano
em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menas de
Constantinopla, a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos
bispos vizinhos e dos abades de mosteiros próximos igual pronunciamento.
Assim
intimado, Menas reuniu logo o chamado «sínodo permanente» (conselho episcopal)
de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas
contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto:
«1. Se alguém crer
na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas
(que é geralmente associada àquela), seja anátema.
2. Se alguém disser
que os espíritos racionais foram todos criados independentemente da matéria e
alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se
a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram
unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser
que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e que
se tornaram o que eles hoje são por se terem voltado para o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser
que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram
dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em consequência
chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal
tiveram como partilha corpos frios o tenebrosos, tornando-se o que chamamos
demônios o espíritos maus, seja anátema».
O
papa Vigílio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses anátemas.
Como se vê, tal condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla
reunido cm 543. e não, como se costuma dizer, pelo II concilio ecumênico de
Constantinopla, o qual só se realizou em 553. Neste concilio ecumênico, a
questão da preexistência e da sorte póstuma das almas humanas não voltou à
baila; verdade é que Orígenes ai foi condenado juntamente com alguns hereges
por causa de erros cristológicos (cf. anátema XI proferido pelo mencionado
concilio ecumênico). Os historiadores recentes rejeitam a opinião de autores
mais antigos segundo os quais o II concilio ecumênico de Constantinopla se
teria ocupado com a doutrina origenística concernente à preexistência das almas.
Em
todo e qualquer caso, não houve condenação de Orígenes em 533, como afirmam
certos escritores reencarnacionistas modernos, os quais por sua pouca
meticulosidade se mostram destituídos de autoridade para tratar do assunto.
2.4.
Na verdade, a doutrina da reencarnação deve ser tida como positivamente
condenada pela Igreja não sòmente na base dos testemunhos dos Padres
anteriormente citados neste artigo (os quais representam o magistério ordinário
da Igreja), mas principalmente por efeito das declarações explicitas do II
concilio ecumênico de Lião (1274): «As almas... são imediatamente recebidas no
céu», e do concilio ecumênico de Florença (1439) : «As almas... passam
imediatamente para o inferno a fim de aí receber a punição» (Denzinger,
Enchiridion 464. 693).
Quanto
à doutrina do inferno, ela está contida na Sagrada Escritura e sempre foi
professada pelos crislfios; cf. «P. R.» 3/1957, qu. 5. Errôneo, portanto, seria
dizer que ela se deve a algum concilio do séc. VI.
2.5.
Em conclusão, observamos o seguinte:
a)
a doutrina da reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva, na Igreja Católica
(atestam-no os depoimentos dos antigos escritores cristãos aqui citados);
b)
após Orígenes (séc. III), ela foi professada por grupos particulares de monges
orientais, pouco versados em Teologia, os quais se prevaleciam de afirmações
daquele mestre alexandrino, exagerando-as (daí a designação de «origenistas»);
c)
mesmo dentro da corrente origenista, a teoria da reencarnação nao teve a voga
que tiveram, por exemplo, as tesos da preexistência das almas e da restauração
de todas as criaturas na bem-aventurança inicial;
d)
por isto as condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o
origenismo versaram explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da
restauração das almas (o que naturalmente implica na condenação da própria tese
da reencarnação, na medida em que esta tese depende daquelas doutrinas e era
professada pelos origenistas) ;
e)
a doutrina da reencarnação foi rejeitada não sòmente pelo magistério ordinário
da Igreja desde os tempos patrísticos, mas também pelo magistério
extraordinário nos concílios ecumênicos de Lião II (1274) e de Florença (1439).
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)