PERGUNTE e RESPONDEREMOS 049
– Jan 1962
POLIGAMIA e DIVÓRCIO PARA NÃO CATÓLICOS?
SAGRADA
ESCRITURA
Divorcista
(RJ): «Diz-se que a poligamia e o divórcio
são contrários à lei natural (que é a lei de Deus,) e que a lei natural se
impõe a todos os homens.
Acontece, porém, que na Sagrada Escritura a poligamia e o
divórcio são reconhecidos pela lei de Deus (cf. Dt 24,1-4; 2 Sam 3,2-5). Dai
parece concluir-se que, na verdade, poligamia e divórcio não são contrários à
lei natural; poderiam então ser concedidos aos cidadãos não católicos».
Para
resolver devidamente a dificuldade, consideraremos em primeiro lugar as
exigências da lei natural no tocante ao matrimônio; a seguir, confrontaremos
com essas normas as disposições promulgadas por Moisés no Antigo Testamento.
1. As finalidades naturais do matrimônio
1. Auscultando
a ordem natural das criaturas, verificamos que o matrimônio (doação recíproca e
total de varão e mulher) visa, por si mesmo, duas finalidades:
a) o
objetivo primário do casamento é a geração e a procriação da prole, pois o
matrimônio é essencialmente uma instituição a serviço da vida; sua razão de ser
primordial é a propagação da espécie humana. Esposo e esposa se unem numa
terceira pessoa, que é a prole; unem-se, portanto, ultrapassando-se a si
mesmos, libertando-se de todo hedonismo ou
de toda cobiça egoísta. — A fim de facilitar o cumprimento desta tarefa, o
Criador houve por bem anexar-lhe um atrativo natural... Em consequência;
b) o
objetivo secundário do casamento é o auxilio mútuo, a complementação que esposo
e esposa prestam um ao outro na vida conjugal. Tal complementação só será sadia
se for tida como verdadeiro serviço, serviço que tenda a se concretizar num
fruto preciso ou na prole; é esta que preserva o amor conjugal de se desvirtuar
em paixão egoísta ou libertina.
2. Para
que as finalidades do matrimônio, principalmente a primeira, sejam devidamente
alcançadas, a ordem natural das coisas requer a colaboração estável (união
indissolúvel) de um varão com uma mulher (união monogâmica). De fato, o amor
total só se pode dar uma vez a um consorte ou uma consorte; tal amor não recua
diante do sacrifício, pois sabe que este é inerente a qualquer obra grandiosa;
sabe mesmo que é só pela renúncia a seus interesses egocêntricos que a criatura
humana se nobilita. Do seu lado, a educação da prole exige a permanente
conjugação de esforços dos genitores, conjugação sem a qual não há lar, não há
ambiente nem exemplo, mas apenas (na melhor das hipóteses) ensinamentos
teóricos e vazios.
Este assunto já
tendo sido explanado em «P..R.» 7/1957, não mais nos
deteremos nele. Apenas interessa irisar a conclusão decorrente: monogamia e
indissolubilidade do matrimônio são requisitos da própria Lei natural.
Eis, porém, que uma
distinção se impõe:
2. Primário e secundário na lei natural
Prosseguindo
na observação da reta ordem das coisas, os moralistas costumam distinguir entre
preceitos primários e preceitos secundários da lei natural.
1)
Preceitos
primários são aqueles sem os quais a ordem
moral ou a ética se torna totalmente vã ou impossível: tenham-se em vista, por
exemplo, a obrigação de não matar um inocente, a de não levantar falso
testemunho, a de não blasfemar contra Deus, a de não adorar falsos deuses. Tais
normas da natureza são absolutamente imutáveis, não admitindo dispensa alguma
(pois jamais uma dispensa nesses casos concorreria para o bem do indivíduo ou
da sociedade).
2)
Preceitos
secundários são normas muito úteis, a tal ponto
que a ordem moral não poderia subsistir, ou ao menos ficaria seriamente
comprometida, caso fossem violados de maneira geral e estável. Admitem, porém,
dispensas transitórias e raras, as quais têm inconvenientes para a observância
da moralidade, mas não a tornam de todo impossível. — Pois bem; entre os
preceitos secundários da lei natural enumeram-se o da monogamia e o da
indissolubilidade conjugal. Com efeito, a geração e a procriação da prole,
assim como o auxílio mútuo de varão e mulher, se podem obter, embora em termos
precários, mesmo sob uma legislação poligâmica ou divorcista.
Falando mais
exatamente, devemos distinguir duas modalidades de poligamia (ou de união em
que vários cônjuges são envolvidos). Existe a poliginia, união de um varão com
mais de uma mulher. Embora seja nociva às finalidades do matrimônio, não as
extingue por completo; por conseguinte, não é de todo contrária à lei natural,
mas constitui um regime matrimonial assaz imperfeito. — Existe também a poliandria,
pluralidade de maridos para uma só mulher. Este regime sempre foi tido por
filósofos e teólogos como absolutamente contrário à lei natural, pois: a)
acarreta a incerteza da paternidade, incerteza radicalmente oposta à educação
da prole; b) geralmente diminui e em breve extingue a fecundidade da única
mulher, obrigada a relações variadas e demais frequentes. — Aliás, a
poliandria, caso jamais se tenha dado na história (os autores discutem), fica
sendo algo de todo excepcional.
É
à luz destas considerações que se deve avaliar a permissão de poligamia e
divórcio no Antigo Testamento. — O Senhor Jesus, em Mt 19,8, lembrava que tais
licenças não estavam em vigor no início dos tempos, mas que, em vista da dureza
de coração do antigo povo de Israel, haviam sido outorgadas por Deus. Em
verdade, o povo de Israel, oriundo no séc. XVIII a. C. em meio a nações
moralmente rudes, compartilhava até certo grau os costumes do mundo oriental
antigo; o Senhor Deus proibia terminantemente qualquer vestígio de politeísmo
ou superstição em Israel, mas não julgou necessário remover logo as práticas
imperfeitas que Abraão herdara de seus antepassados caldeus (desde que estas
não implicassem perversão da verdadeira fé). É o que explica que a poligamia
(no sentido de poliginia, não no de poliandria) e o divórcio tenham sido
tolerados pela lei de Moisés... Tolerados, não, porém, introduzidos nem
recomendados, pois se verifica que as cláusulas de Moisés visavam até
restringir tais instituições (cf. Dt 24,1-4; Jer 3,1; Dt 17,17).
Aliás,
os judeus eram inclinados a adotar a poligamia não somente por influência do
seu âmbito de vida. Julgavam encontrar em sua própria ideologia religiosa um
estimulo possante para não se afastar do uso geral; os descendentes de Abraão
estimavam, sim, que prole numerosa era sinal de bênção divina (pois, próxima ou
remotamente, agregava o pai de família à linhagem do Messias), ao passo que
esterilidade equivalia a maldição (cf. Is 63,9 e Os 9,14; Lc 1,25).. Entende-se
então que, no caso de ser infecunda a esposa, o varão hebreu procurasse unir-se
a outra, a uma mulher livre ou à escrava da sua consorte (a prole da escrava
era considerada pertencente à patroa; cf. Gên 30, 3s. 6. 9s).
Quando
a Escritura do Antigo Testamento descreve o matrimônio ideal, apresenta-o
sempre monogâmico; tenham-se em vista o Cântico dos Cânticos e o livro de
Tobias, além dos textos de Os 1,2; 2,21s; 3,3; Is 50,1; 54,5s; 62,5; Jer 2,2;
3,1-4. Ora foi esse regime matrimonial perfeito — monogâmico e indissolúvel —
que o Senhor Jesus veio anunciar ao mundo.
Em
consequência, qualquer tentativa de restaurar a poligamia e o divórcio do mundo
antigo, após a promulgação da Lei perfeita ou do Evangelho, significa
decadência moral, ou seja, algo que de modo nenhum se poderia justificar, nem
mesmo entre não-católicos.
Fonte: Cf. E.
Bettencourt, Para entender o Antigo Testamento. Rio 1959, 134-138.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)