PERGUNTE e RESPONDEREMOS 046
– outubro 1961
BALAÃ E O ASNO QUE
FALOU
SAGRADA ESCRITURA
«A Sagrada Escritura ensina mesmo que o
asno tenha falado a Balaã no episódio relatado em Núm
22,22-35?»
Na travessia de Israel pelo deserto, de que
falam os primeiros livros da Bíblia, deu-se estranho episódio, ou seja, o
encontro da caravana israelita com o mago Balaã.
Abaixo resumiremos o teor do acontecimento,
para procurar definir devidamente o seu sentido.
1.
A narrativa bíblica como tal
Os judeus, caminhando pelo deserto, haviam,
com o auxílio do Senhor, conseguido debelar povos poderosos, que tinham tentado
criar-lhes obstáculos. Ora o rumor desses feitos aterrorizou o rei de Moab,
Balaque, o qual na previsão de um encontro com Israel, julgou estar ameaçada a
subsistência de sua gente. Reputando-se incapaz de conjurar o perigo pelas ar-
mas apenas, resolveu recorrer ao poder religioso: lembrou-se de um mago
residente em Petor, junto ao Eufrates, o qual lograra fama em todo o Oriente;
era Balaã. Mandou, pois, legados, portadores de ricos presentes e promessas, os
quais lhe rogaram fosse ter ao país de Moab e de lá amaldiçoasse os israelitas
acampados na vizinhança. Balaã era temente à Divindade; por isto não quis
partir sem consultar o Senhor. Após insistência, obteve licença para seguir
viagem, à condição, porém, de não proferir sobre Israel senão os oráculos que
lhe fossem inspirados do alto.
Ao viajar para Moab sobre um jumentinho,
experimentou estranha aventura: um anjo de Javé, de espada na mão, assustou o
animal, fazendo que se desviasse da estrada e entrasse nos campos; de novo
apareceu o anjo num caminho estreito, de modo que o jumento só pôde passar
atritando o pé de Balaã contra as pedras do muro; em terceira aparição, o anjo
se postou em lugar tão estreito que o asno, não podendo prosseguir, se deitou
por terra. Como Balaã espancasse veementemente o animal, «o Senhor abriu a boca
do jumento» (22,28), o qual explicou que algo de extraordinário se dera. Então
o anjo se tornou visível também ao mago e repreendeu-o por ter encetado tal
viagem; permitia-lhe, porém, continuar, renovando a condição anteriormente
expressa.
Chegando a Moab, Balaã, apesar das
insistências contrárias de Balaque, só proferiu os oráculos de bom presságio
para Israel que o Senhor Deus lhe inspirava.
A história assim descrita pelo livro
sagrado pede naturalmente algumas explicações para ser devidamente entendida.
2. A fala do asno...
2.1. Em primeiro lugar, note-se que Balaã era
pagão, não israelita. Exercia a profissão de mago ou adivinho, isto é, vivia
perscrutando os sinais que a natureza ou artifícios secretos lhe ofereciam (cf.
Núm 23,3; 24,1), sinais mediante os quais julgava perceber os desígnios da
Divindade; em troca de seus oráculos, recebia paga correspondente (cf. Núm
22,7), consoante a praxe observada no Oriente.
O
fato de que ele reverenciou o Deus de Israel, deixando-se guiar pelas suas
inspirações, não quer dizer que habitualmente Lhe prestava culto nem mesmo que
era monoteísta; apenas, tendo tido conhecimento de quanto o Senhor fizera por
seu povo desde a saída do Egito, reconhecia a existência e o poder respeitável
do Deus de Israel, e não queria incorrer no seu furor. Segundo a mentalidade
comum dos pagãos, ao lado de Javé, não deixava de admitir as divindades dos
outros povos.
O
Senhor Deus se dignou responder a Balaã, que, temeroso, antes de falar,
invocara a Divindade (o mago ter-se-á dirigido simplesmente ao Poder Divino
competente para o esclarecer no caso). Comunicou-lhe alguns dos seus desígnios
a respeito de Israel; fê-lo assim instrumento de autênticas revelações nos
oráculos que proferiu (cf. Núm 23,
7-10. 18-24;
24,
3-9. 15-24), o que não supõe necessariamente santidade na respectiva
criatura (cf. o caso de Caifás em Jo
11,50-52).
2.2. Eis, porém, que a figura de Balaã, embora
tenha deixado vaticínios de ótimo agouro para Israel, passou para a tradição
judaica e cristã com nota depreciativa; ficou sendo o tipo do homem avarento,
que acima de Deus estima os seus interesses próprios, materiais.
Por
que isto? Será essa a genuína face de Balaã?
O
texto sagrado o explica. Embora já antes de partir para Moab soubesse que Deus
abençoara Israel (cf. 22,12), Balaã tudo fez para não perder os ricos prêmios
que lhe prometia Balaque, caso amaldiçoasse; às instâncias do rei quis dar
resposta favorável, esperando que Deus mudasse os seus desígnios (22,18s).
Chegando à terra de Moab, não excluiu a possibilidade de amaldiçoar (22,38);
não tendo recebido licença para isto, não ousou desobedecer para não se expor
ao castigo divino consequente; mas, irritado, procurou desforra: tentou mais
tarde levar Israel à ruína, persuadindo os madianitas a seduzir o povo para a
apostasia religiosa (cf. 31,16). Em suma, as graças do Senhor foram em Balaã
sufocadas pela cobiça de vantagens temporais e pela amargura de não as ter
alcançado.
2.3. É nesta perspectiva que se deve considerar
o episódio do jumento que falou ao mago... Já que o fenômeno foi ocasionado
pelas aparições de um anjo que dificultava a caminhada, pergunta-se antes do
mais: por que terá Deus, por um emissário, impedido a viagem que Ele mesmo
pouco antes autorizara (cf. 22,20 e 22) ? O proceder se explica bem desde que
se admita que Balaã não viajava com a disposição de ânimo (docilidade às
futuras comunicações divinas) que o Senhor lhe incutira ao lhe permitir a
partida; enquanto cavalgava, o adivinho, refletindo consigo, terá tomado a
resolução de amaldiçoar em qualquer caso, a fim de não perder o salário devido
às suas fadigas. Ora uma viagem com tal propósito não podia deixar de
desagradar ao Senhor, que houve por bem chamar Balaã à ordem. A repreensão se
efetuou com o concurso de fenômenos sensíveis, aos quais o oriental, muito
impressionável, se rende com mais facilidade...
Assim entra em cena no texto bíblico o asno
que fala. Não faltaram os que lhe denegaram historicidade, considerando a
narrativa inteira como lenda, mito popular, sonho de Balaã, visão de alucinado,
etc.. Tais sentenças, como em vários outros casos, são ditadas pelo desejo de
não admitir o sobrenatural no curso dos acontecimentos.
Entre os que defendem a realidade histórica
do episódio, há quem julgue que o asno produziu realmente sons de linguagem
humana. Não é esta, porém, a única explicação possível do texto sagrado.
Conforme outros exegetas, o animal espancado emitiu os sons queixosos que Deus
lhe dirigia; em outros termos: ouvindo o asno, Balaã ouviu simultaneamente a
voz da consciência, voz de Deus no seu íntimo, à qual o censurava amargamente
por estar viajando com propósitos contrários ao Senhor ou por se haver deixado
obcecar pela perspectiva do ouro... Assim o episódio não viria a ser senão o
relato vivo e dramático da luta que, no ânimo do adivinho em viagem, se travou
entre o temor de Deus, de um lado, e a paixão da avareza, do outro lado;
somente na consciência do mago é que os berros desarticulados do animal tomaram
o vulto e o significado das palavras que o autor sagrado, visando maior ênfase,
coloca diretamente na boca do jumento. A visão e os dizeres do anjo, sobrevindo
a esse estado de alma de Balaã, terão corroborado a voz da consciência e feito
que o adivinho se rendesse finalmente à admoestação do Senhor; em consequência,
foi autorizado a prosseguir viagem.
Esta última interpretação é muito digna da
Sabedoria e da Providência divinas. Não se lhe pode opor o texto de 2 Pdr 2,15s:
«Balaã,
filho de Bosor,... amou o salário da iniquidade, mas foi repreendido por sua
desobediência: um animal mudo fez ouvir voz humana para reprimir a demência do
profeta».
É o Cardeal Meignan quem observa:
«O
apóstolo fala conforme a opinião comum dos judeus; visa o ensinamento moral,
não a realidade material dos fatos» (L'Ancien Testament. De Moïse à David,
1896, 216 n' 1).
O que acaba de ser exposto parece pôr em
suficiente evidência o sentido religioso e autêntico do episódio de Balaã,
episódio que é mais do que a história de um animal que fala!...
Dom
Estêvão Bettencourt
(OSB)