PERGUNTE e RESPONDEREMOS 038
- fevereiro 1961
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
HISTÓRIA DO CRISTIANISMO
A. F. (São Paulo): «Como se pode
justificar a Inquisição Espanhola dentro da história da Igreja? Em particular,
a atividade do Inquisidor-Mor Tomaz de Torquemada não constitui flagrante oposição
ao espírito cristão?»
O tema «Inquisição» já foi abordado em «P.
R.» 8/1957,
qu. 9. Dissemos então que a Inquisição constitui um acontecimento complexo, que
não pode ser devidamente considerado se não se têm em vista as suas três
modalidades: a Inquisição Medieval (séc. XII/XV) a Inquisição Romana (séc.
XVI/XVII) e a Inquisição Espanhola (séc. XV/XIX).
Ao passo que a Inquisição Medieval e a
Inquisição Romana obedeceram mais ou menos ao mesmo regime, a Inquisição
Espanhola exerceu sua atividade sob a influência de fatores próprios. Visto já
ter sido estudada a Inquisição Medieval no referido artigo de «P. R.»,
limitar-nos-emos aqui ao que diz respeito à Inquisição Espanhola.
Em primeiro lugar, tentaremos reconstituir
o quadro histórico e a mentalidade que caracterizaram os inquisidores da
Espanha. A seguir, deter-nos-emos sobre a figura de Torquemada em particular.
Por fim, procuraremos formular um juízo sobre o assunto.
1.
A situação étnica e religiosa da Espanha no séc. XV
1.1. Em meados do séc. XV a Espanha apresentava uma situação
política assaz complexa.
A maior parte do
território fôra libertada da ocupação árabe (muçulmana) que desde o séc. VIII
ai se exercia. Os califas árabes dominavam apenas na região de Granada, ao sul
do país. Contudo os soberanos dos pequenos reinos da península não se entendiam
entre si, de modo que a obra da Reconquista se achava estagnada desde a tomada
de Sevilha em 1248 por obra de Fernando III o Santo.
Em 1479, os monarcas
Fernando de Aragão e Isabel de Castela, tendo-se previamente unido em
matrimônio, começaram a reinar conjuntamente sobre todo o território livre da
Espanha, pondo termo às rivalidades sangrentas que solapavam os esforços de
unificação nacional. A Espanha entrou então numa fase nova da sua história,
fase selada pela vitória das tropas de Fernando e Isabel sobre os árabes em
Granada no ano de 1492. Nesta data tendo sido extinto o último reduto árabe,
não restava mais poder estrangeiro legalmente instalado em território espanhol.
Contudo a obra de unificação estava longe de se achar consumada: não somente o
fator étnico ou racial dividia entre si a população; também o elemento
religioso diversificava os cidadãos; havia, sim, em meio à grande maioria de
cristãos da península, grupos muito influentes de judeus e de muçulmanos. Este
fato mereceu a atenção dos reis Fernando e Isabel, os quais resolveram empenhar
zelo ferrenho (inspirado, sem dúvida, por motivos nacionais, mas corroborado
por tempera religiosa) a fim de absorver ou (caso isto não fosse possível)
eliminar os elementos heterogêneos da população.
1.2.
Não se poderia, porém, descrever a ação dos monarcas contra judeus e muçulmanos
sem se reconstituir brevemente o significado destes dois grupos étnicos dentro da
Espanha medieval.
a) Os
Judeus. Durante a Idade Média foram sempre assaz numerosos no território
espanhol: «uma terça parte dos cidadãos e comerciantes de Castela», escrevia
Vincenzo Quirini, embaixador de Veneza no séc. XV; somente Toledo, a capital de
Castela, contava mais de doze mil israelitas e possuía várias sinagogas de
incontestável gosto artístico.
Nos séc. XII/XIV os judeus gozavam de
liberdade e mesmo de estima nos reinos cristãos da península. É o historiador
israelita Theodor Graetz (1817-1891) quem observa:
«Sob Afonso VIII o Nobre (1166-1214), os
judeus ocuparam funções públicas... José ben Salomão ibn Schoschan; que tinha o
titulo de príncipe, homem rico, generoso, sábio e piedoso, era muito
considerado na corte e junto aos nobres... O rei, casado com uma princesa inglesa,
tivera durante sete anos uma favorita judaica, chamada Rahel e, em vista de sua
beleza, cognominada Formosa. Os judeus de Toledo ajudaram energicamente o
monarca na sua luta contra os mouros» (Graetz, Histoire des juifs IV 118).
Em fins do séc. XIV, porém, e no decurso do
séc. XV, os israelitas tornaram-se objeto de perseguições; irritavam
profundamente o povo por suas riquezas, em grande parte arrecadadas à custa de
empréstimos a juros elevadíssimos (podiam chegar a 40%), e por seu luxo tido
como arrogante. Registraram-se primeiramente tumultos e linchamentos populares
contra os judeus, desordens estas que os reis de Castela, Navarra e Aragão
procuraram reprimir. A situação, porém, se tornou insustentável em meados do
séc. XV, quando não poucos judeus, desejosos de conservar suas posições
financeiras e políticas, pediam o batismo cristão, conservando não obstante a
fé judaica e observando, no recôndito de seus domicílios, as práticas
talmúdicas. Essa onda de conversões insinceras recrudesceu principalmente em
Castela, quando o jovem rei João II declarou os judeus incapazes de exercer
alguma função pública (1468); deram-se então milhares de conversões aparentes,
ocasionando um tipo de cidadãos que o povo chamava «Marranos» (palavra que
jogava ao mesmo tempo com a expressão semita «Maranatha», O Senhor vem, e com o
termo castelhano «marrano», leitão).
«Embora tivessem que participar dos
sacramentos, (os marranos) esforçavam-se o mais possível por se lhes
subtrair... No tribunal da penitência, não confessavam coisa alguma ou só
acusavam faltas leves; mandavam batizar seus filhos, mas, ao sair das
cerimônias, lavavam cuidadosamente as partes do corpo ungidas pelo santo
crisma. Alguns rabinos iam secretamente dar-lhes instrução... Imolavam, segundo
os seus ritos, animais e axes que lhes serviam de alimento... Só comiam carne
de porco quando constrangidos a isso» (M. Mariejol, L'Espagne sous Fernand et
Isabelle, pág. 45).
Ostentando a aparência de bons cristãos, os
marranos chegavam a ocupar elevados cargos na Igreja, infiltrando-se até mesmo
no alto clero; conta-se o caso (até que ponto será verídico?) de um bispo de
Calahorra, o qual, indo a Roma, comia carne às sextas-feiras (coisa lá
proibida), rezava em hebraico segundo rito judeu, recusava pronunciar o nome de
Cristo, e ainda espancava seus sacerdotes caso estes lhe quisessem chamar a
atenção!
A hipocrisia dos marranos era não raro
denunciada pelos seus correligionários de raça judaica que, tendo sinceramente
abraçado a fé de Cristo, haviam recebido ordens sacerdotais na Igreja ou
queriam dar provas de sua autêntica conversão. Em consequência, os marranos
chegaram a se reunir em sociedades secretas, de tipo maçônico, o que os tornava
ainda mais suspeitos e antipáticos ao povo. Este os tinha na conta de
verdadeiro perigo para o bem comum, tanto do ponto de vista religioso como do
ponto de vista civil (a causa religiosa e a causa nacional pareciam, no caso,
solidárias entre si).
b) Os
muçulmanos. Quando os árabes maometanos ocuparam a península ibérica
no séc. VIII, deram inicio a uma política de tolerância para com o povo
cristão, que cultivava o solo e que consequentemente passou a ser chamado
«moçárabe» (do árabe must'rib, «arabizado»). Diz-se mesmo que no séc. XV rara
era a família cristã que não contasse entre os seus antepassados um discípulo
de Maomé.
Nos territórios que aos poucos iam sendo
reconquistados, os reis cristãos se mostravam, por sua vez, tolerantes para com
os árabes, reconhecendo a estes liberdade religiosa. Assim é que notável
população de muçulmanos vivia nas cidades de Valença, Toledo, Sevilha, etc.,
gozando de grande influência na vida pública, pois os árabes continuavam a
usufruir das vantagens econômicas que possuíam antes da Reconquista; conseguiam
mesmo ampliar essas Vantagens mediante intenso comércio com seus correligionários
do sul da Espanha, da África do Norte e da bacia do Mediterrâneo. Eis, porém,
que no séc. XIV alguns motins de árabes prepotentes contra os governos cristãos
provocaram, da parte destes, uma série de medidas que visavam doravante conter
a influência política e social dos muçulmanos, influência que se exercia
principalmente pela indústria, o comércio e os empréstimos a juros.
Visando então libertar-se da coibição e do controle
dos soberanos espanhóis, não poucos maometanos abraçaram a fé católica, dando
assim origem a outro tipo de cidadãos ambíguos, popularmente denominados
«mouriscos». Convertendo-se, ao menos em aparência, os árabes passavam a gozar
dos mesmos direitos civis e religiosos que os cristãos, exceto o direito de
acesso ao episcopado (contudo no séc. XV contavam-se vários bispos espanhóis
convertidos do islamismo). Todavia as conversões interesseiras não escapavam à
observação do público, que se mostrava infenso à hipocrisia dos «mouriscos»; as
intrigas e maquinações destes, tramadas como que em sociedades secretas, vinham
a ser inegavelmente mais perigosas para o bem comum do que as atividades dos
muçulmanos confessos.
Na situação geral que
acaba de ser descrita, compreende-se que aos poucos as autoridades dos reinos
cristãos da Espanha tenham percebido a necessidade de dar busca ou «inquisição»
aos cidadãos ambíguos — marranos e mouriscos. Era, de um lado, a segurança
pública que o exigia dos poderes civis; doutro lado, já que a pureza da fé
cristã estava em jogo, também as autoridades eclesiásticas deviam mostrar-se
interessadas em tal gênero de indagação ou inquisição. Em uma palavra: para a
Espanha cristã, a luta contra a falsidade religiosa, contra as maquinações
secretas de cidadãos ambiciosos dissimulados sob rótulos religiosos, se
apresentava como questão de vida ou morte. Destarte Estado e Igreja, interesses
civis e interesses religiosos se entrelaçavam espontaneamente para dar origem
ao famoso fenômeno da «Inquisição Espanhola».
É a este que vamos agora
voltar diretamente a nossa atenção.
2.
Surto e procederes da Inquisição Espanhola
Os reis Fernando e Isabel, visando a plena
unificação de seus domínios, tinham consciência de que existia uma instituição
eclesiástica — a Inquisição — oriunda na Idade Média com o fim de reprimir um
perigo religioso e civil dos séc. XI/XII — a heresia cátara ou albigense —,
perigo ao qual bem se assemelhavam as atividades dos marranos e mouriscos na
Espanha do séc. XV.
2.1. A Inquisição Medieval, que nunca fôra muito ativa na
península ibérica, achava-se aí mais ou menos adormecida na segunda metade do
séc. XV...
Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1478 foi descoberta em Sevilha
uma conspiração de marranos, a qual, dadas as suas intenções nitidamente
anticristãs, muito exasperou o público. Então lembrou-se o rei Fernando de
pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a reavivasse sobre
novas bases, mais promissoras, confiando sua orientação ao monarca espanhol.
Sixto IV, assim
solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao qual, depois
de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos reis da Espanha
o Breve de 1o de novembro de 1478, pelo qual «conferia plenos
poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou três Inquisidores,
arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua
prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos
de idade ao menos, e de costumes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em
Teologia, doutores ou licenciados em Direito Canônico, os quais deveriam passar
de maneira satisfatória por um exame especial. Tais Inquisidores ficariam
encarregados de proceder contra os judeus batizados reincidentes no judaísmo e
contra todos os demais culpados de apostasia. O Papa delegava a esses Oficiais
eclesiásticos a jurisdição necessária para instaurar os processos dos acusados
conforme o Direito e o costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a
destituir tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse
oportuno» (L. Pastor, Histoire des Papes IV 370).
Note-se bem que, conforme este edito, a
Inquisição só estenderia sua ação a cristãos batizados, não a judeus que jamais
houvessem pertencido à Igreja; a instituição era, pois, concebida como órgão
promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como instrumento de
intolerância em relação às crenças não cristãs.
Ora, apoiados na licença
pontifícia, os reis de Espanha, aos 17 de setembro de 1480 nomearam
Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel Morillo e Juan
Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes seculares. Os monarcas
promulgaram também um compêndio de «Instruções», enviado a todos os tribunais
da Espanha, constituindo como que um código da Inquisição, a qual assim se
tornava uma espécie de órgão do Estado civil.
Os Inquisidores entraram
logo em ação, procedendo geralmente com grande energia. Parecia que a
Inquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos soberanos
espanhóis, os quais procuravam atingir criminosos mesmo de categoria meramente
política.
Em breve, porém,
fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos Inquisidores.
Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Espanha,
mostrando-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia em seu reino e
baixando instruções de moderação para os juízes tanto civis como eclesiásticos.
Merece especial destaque neste particular o
Breve de 2 de agosto de 1482, que o Papa, depois de promulgar certas regras
coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes :
palavras:
«Visto que somente a caridade nos torna
semelhantes a Deus..., rogamos e exortamos o Rei e a Rainha, pelo amor de Nosso
Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é característico ter
sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes para com
os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e
imploram a misericórdia!»
Contudo, apesar das frequentes admoestações
pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se tornando mais e mais um órgão
poderoso de influência e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto,
basta lembrar o seguinte: a Inquisição no território espanhol ficou sendo
instituto permanente durante três séculos a fio. Nisto diferia bem da
Inquisição Medieval, a qual foi sempre intermitente, tendo em vista
determinados erros oriundos em tal e tal localidade. A manutenção permanente de
um tribunal inquisitório impunha avultadas despesas, que somente o Estado podia
tomar a seu cargo; foi o que se deu na Espanha: os reis atribuíam a si todas as
rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens confiscados) e pagavam
as respectivas despesas; consequentemente alguns historiadores, referindo-se à
Inquisição Espanhola, denominaram-na «Inquisição Régia»!
A fim de completar o
quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor característico do mesmo.
Os reis Fernando e
Isabel visavam corroborar a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo de Roma... Conceberam então a idéia de
dar à instituição um chefe único e plenipotenciário — o Inquisidor-Mor —, o
qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo,
propuseram à Santa Sé um religioso dominicano, Tomaz de Torquemada («a
Turrecremata», em latim), o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado
Inquisidor-Mor para todos os territórios de Fernando e Isabel. Procedendo à
nomeação, escrevia o Papa Sixto IV a Torquemada:
«Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o
rei e a rainha de Castela e Leão, nos suplicaram para que te designássemos como
Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim como no
principado da Catalunha» (Bullar. Ord. Praedicatorum III 622).
O gesto de Sixto IV só se pode explicar por
boa fé e confiança. O ato era, na verdade, pouco prudente...
Com efeito, a concessão
benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos avanços destes:
os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor já não foram nomeados
pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo com critérios nem sempre
louváveis). Para Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de
nomearem os Inquisidores regionais, subordinados ao Inquisidor-Mor.
Mais ainda: Fernando e
Isabel criaram o chamado «Conselho Régio da Inquisição», comissão de
consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que a controlar os
processos da Inquisição; gozavam de voto deliberativo em questões de Direito
civil, e de voto consultivo em temas de Direito Canônico.
Uma das expressões mais típicas da
autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o famoso processo que os
Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza,
de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas
que durante dezoito anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o venerável
prelado, opondo-se a legados papais, ao Concilio ecumênico de Trento e ao
próprio Papa, em meados do séc. XVI.
Frisando ainda um particular, lembraremos
que o rei Carlos III (1759-1788) constitui outra figura significativa do
absolutismo régio no setor que vimos estudando. Colocou-se peremptoriamente
entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem
de Roma sem licença prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas
de proscrição de livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um processo sem
permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a 12 horas de Madrid;
só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou,
declarando:
«O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu
lho concedo; aceito agora os agradecimentos do tribunal; protegê-lo-ei sempre,
mas não se esqueça ele desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer
tentativa de desobediência» (cf. Desdevises du Dezart, L'Espagne de 1'Ancien
Régime. La Société lOls).
A história atesta outrossim como à Santa Sé
repetidamente decretou medidas que visavam defender os acusados frente à dureza
do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da
Inquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal
eclesiástico.
Assim aos 2 de dezembro de 1530, Clemente
VII conferiu aos Inquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os
delitos de heresia e apostasia; destarte o sacerdote poderia tentar subtrair do
processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse
animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo
Papa Clemente VII mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que,
acabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e patrões, poderiam
conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1546, Paulo III
declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as
dignidades eclesiásticas. Aos 18 de janeiro de 1556, Paulo IV autorizava os
sacerdotes a absolver em confissão sacramental os mouriscos.
Compreende-se que a
Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes
mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o
que se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em consequência de uma revolução,
o Imperador Napoleão I, intervindo no governo da nação; aboliu a Inquisição
Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1808. O rei Fernando VII, porém,
restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam
colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do
absolutismo de Fernando VII, restabelecendo o regime liberal no país, um dos
primeiros atos das Cortes de Cadiz foi a extinção definitiva da Inquisição em
1820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma
situação humilhante para a Sta. Igreja.
Interessa-nos agora
focalizar de mais perto
3.
A figura de Tomaz de Torquemada.
Tomaz de Torquemada nasceu em Valladolid
(ou, segundo outros, em Torquemada) no ano de 1420. Fez-se Religioso
dominicano, exercendo por 22 anos o cargo de Prior do convento de Santa-Cruz em
Segóvia. Já aos 11 de fevereiro de 1482 foi designado por Sixto IV para moderar
o zelo dos Inquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou
Primeiro Inquisidor de todos os territórios de Fernando e Isabel.
Extremamente austero para consigo mesmo, o
frade dominicano passou a usar de semelhante severidade nos seus procedimentos
judiciários. Dividiu a Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham
como sedes respectivas as cidades de Sevilha, Córdova, Jaen e Villa (Ciudad)
Real. Em 1484 redigiu, para uso dos Inquisidores, uma «Instrução», opúsculo que
propunha normas para os processos inquisitoriais, inspirando-se em trâmites já
usuais na Idade Média; esse libelo foi completado por dois outros do mesmo autor,
que vieram a lume respectivamente em 1490 e 1498.
O rigor de Torquemada foi levado ao
conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como dizem algumas fontes
históricas, pensou então em destituí-lo de suas funções; só não o terá feito
por deferência à corte da Espanha. O fato é que o Pontífice houve por bem
diminuir os poderes de Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores
munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de junho de 1494).
Quanto ao número de vítimas ocasionadas
pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas pelos cronistas são tão
pouco coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto. O
historiador J. A. Llorente (1817/18), por exemplo, no tomo I da sua «Histoire
critique de l'Inquisition d'Espagne», atribui a Torquemada 8.800 sentenças de
morte (das quais 6.500 terão sido executadas apenas «em efígie», ou seja, sobre
um boneco representante do réu); além disso, Torquemada haverá proferido 90.000
sentenças de infâmia, prisão perpétua, confiscação de bens, exclusão dos cargos
públicos, etc.. —-Ora no tomo IV da mesma obra o mesmo autor fornece outras
cifras!...
Como quer que seja, Tomaz de Torquemada
ficou sendo, para certos escritores, a personificação da intolerância
religiosa, varão de mãos sanguinolentas e foco de terror para toda a Espanha.
Os historiadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa maneira de
conceituar o Inquisidor-Mor; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada,
julgam muitos que este Religioso foi em consciência movido por sincero e
ardente amor à verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida pelos
falsos cristãos; daí o zelo extremado com que procedeu, incutindo, sem dúvida,
espanto aos seus súditos. A retidão de intenção de Torquemada ter-se-á
traduzido de maneira pouco feliz.
De resto, o seguinte episódio contribui
para desvendar outro traço, menos conhecido, da alma do frade dominicano.
Em dada ocasião, foi levada ao Conselho
Régio da Inquisição a proposta de se impor aos muçulmanos ou a conversão ao
Cristianismo ou o degredo para o estrangeiro. Torquemada, então, opôs-se
veementemente a essa medida, pois queria conservar o princípio, sempre em vigor
na Cristandade, de que a conversão à verdadeira fé não pode ser extorquida pela
violência; a Inquisição deveria, por conseguinte, restringir sua ação aos
cristãos apóstatas; estes, e somente estes, em virtude do seu Batismo, tinham
um compromisso com a Santa Igreja. Como se vê, Torquemada, no fervor mesmo do
seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto.
Exerceu suas funções até a morte, aos 16 de
setembro de 1498.
4.
Conclusão
Após quanto acaba de ser
considerado, parecem muito oportunas as palavras de Daniel-Rops (autor católico
que não deixa de ser por vezes mordaz):
«A respeito do que foi realmente a obra da
Inquisição Espanhola, só se pode falar usando de extrema prudência. Nesse
setor, a imaginação popular muito tem divagado» (L'Église de la Renaissance et
de la Réforme I 265).
Já em «P. R» 8/1957, qu. 9 procuramos formular um juízo sobre a Inquisição
como tal. Referimos agora a quanto aí foi dito. Evitando repetições, aqui
lembraremos que, para conceituar devidamente essa instituição, é preciso
distinguir entre as normas que a regiam, e as atitudes práticas dos oficiais
encarregados de executar tais normas.
Os oficiais terão
cometido abusos, cedendo ora à sua própria fraqueza humana, ora à ingerência
excessiva do poder civil (frisemos que somente o Senhor Deus pode dizer até que
ponto foram eles em consciência culpados de desmandos). A Santa Igreja, Esposa
de Cristo sem mancha nem ruga (cf. Ef 5,27), com a qual nenhum de seus membros
se identifica plenamente, é a primeira a apontar e lamentar os abusos
inquisitoriais que se tenham cometido em seu nome. Por conseguinte, o proceder
repreensível de certos Inquisidores não deve surpreender o estudioso nem, por
outro lado, depõe contra a santidade da Igreja, pois em absoluto não foi inspirado pelas diretivas oficiais
da Esposa de Cristo. Analisando essas diretivas, verificamos, sem dúvida, que
parecem estranhas a um observador moderno; eram, porém, perfeitamente
justificadas à luz dos princípios e da mentalidade geral que norteavam os
cristãos dos séc. XI-XVI.
Para eles, com efeito, a alma era uma realidade;
a fé, considerada como esteio da vida da alma, constituía um verdadeiro bem,
constituía mesmo o principal dos bens de que alguém podia e devia usufruir na
«Cidade de Deus». Por conseguinte, qualquer ameaça infligida à verdade da fé
representava a seus olhos um aos mais graves delitos concebíveis, delito contra
o qual não se deveria proceder com menos rigor do que contra o homicídio e os
escândalos morais...
Estes princípios, professados durante toda
a Idade Média, foram particularmente aguçados pelas circunstâncias históricas
em que se viu o povo espanhol em fins do séc. XV e no decorrer do séc. XVI: a
causa religiosa ou o bem da fé parecia então repousar sobre a causa nacional ou
a unificação da Espanha. A luta contra os árabes e judeus, principalmente
quando estes se dissimulavam falsamente sob o título de cristãos, devia então
aparecer como autêntica obrigação de consciência (não interessa aqui elucidar
até que ponto tal consciência estava bem formada ou não; importa apenas
reconstituir a maneira subjetiva como as consciências cristãs do séc. XVI
deviam ver a Inquisição Espanhola, pois sabemos que a moralidade, boa ou má, de
uma ação é diretamente avaliada pela consciência subjetiva de quem age). É justamente
o ponto de vista da consciência subjetiva dos homens de Espanha que Daniel-Rops
assim formula: «Certo é que o povo espanhol não somente aceitou, mas quis e
louvou a Inquisição qual manifestação de fé ardente até o heroísmo» (ob. cit.
266).
E, para não nos alongarmos em considerações
teóricas, citamos aqui um testemunho que constitui eloquente confirmação das
palavras de Daniel-Rops e de quanto acabamos de ponderar:
Um estrangeiro, ou seja, o embaixador
Quirini, de Veneza, escrevia a propósito da situação na Espanha:
«Ainda que não fosse por outro motivo, já
em virtude da Inquisição, o rei Fernando e a rainha Isabel mereceram junto de
Deus e dos homens um louvor eterno» (citado por Daniel-Rops, ob. cit. 266 n.
31).
O
estudioso contemporâneo talvez não diga o mesmo.. . Lembre-se,
porém, de que as diversas gerações humanas só podem ser adequadamente julgadas
à luz dos elementos próprios que concorriam para formar o seu espírito. E, consequentemente,
procure entender a Inquisição como o homem de outrora a entendia; assim
escandalizar-se-á menos e aproveitará mais do estudo da história!
Principalmente, porém, tenha por certo que a famigerada instituição não depõe
contra a santidade da Igreja, pois não foi Esta quem moveu os homens aos
abusos. Passada a celeuma da Inquisição, a Igreja continua a ser a Esposa de
Cristo sem mancha nem ruga, na qual cada um se santifica ainda hoje, desde que
obedeça à sua voz, independentemente da santidade ou dos vícios dos irmãos na fé!
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)