PERGUNTE e RESPONDEREMOS 032
– agosto 1960
Adão e Eva, Fábula?
DOGMÁTICA
P. N. (Mariana): “A história do pecado de Adão e Eva parece inventada
para explicar a morte e seus precursores (a doença, a fome, a dor...) no mundo.
Dir-se-ia, porém, que é fábula vã, pois a morte e as misérias não precisam de
explicação especial. Ou será que se encontra fora do Cristianismo algo de
semelhante à história de Adão e Eva, corroborando a noção de uma culpa
original?”
Elaboraremos nossa
resposta examinando sucessivamente dois tipos de depoimentos sobre o chamado «pecado
original»: o testemunho da razão e o da história das Religiões.
1. O testemunho da
razão
Não há dúvida, como foi dito na resposta no
3 deste fascículo, a defectibilidade faz parte das características mesmas
de qualquer criatura; esta, não possuindo em si própria a sua razão de ser
(pois «ser criado» diz «ser produzido por outrem»), não é Ser Absoluto, mas
relativo, limitado e, consequentemente, sujeito a falhar.
Na base destas verdades, muitos teólogos
afirmam que quem atualmente observa o homem e o mundo, com suas deficiências
cotidianas, não é necessariamente levado a concluir a existência de uma
catástrofe no início da história, catástrofe que teria sido a causa das falhas
verificadas hoje no universo. Estas se poderiam explicar satisfatoriamente pela
defectibilidade inerente a qualquer natureza criada.
São Tomás de Aquino, porém, embora professe
o que acaba de ser dito, julga que há no mundo ao menos sinais de provável
rebordosa inicial. Sim; quem considera não tanto as criaturas em si, mas, antes,
a Providência Divina, é levado a crer que esta deve ter, a principio, disposto
os seres de modo tal que os superiores em tudo possuíssem domínio sobre os
inferiores, e os menos perfeitos estivessem plenamente subordinados aos mais
perfeitos. Na verdade, tudo que Deus faz, traz a marca da proporção e da
harmonia. Ora não seria ilógico supor que, para conseguir tais características
no início do mundo, a Sabedoria Divina tenha, por meio de dons gratuitos,
harmonizado a diversidade de tendências das criaturas, introduzindo ordem e
colaboração entre todas. Assim teria o Criador garantido ao homem o exercício
do primado que lhe compete em relação aos demais seres visíveis. Por
conseguinte, segundo São Tomás, quem leva em conta principalmente a
Providência, é induzido a julgar que provavelmente os conflitos das criaturas
entre si (da carne, por exemplo contra o espírito, dentro do homem; dos seres
inferiores contra os superiores, no mundo) não são originários, mas devidos a
uma violação da ordem inicial; seriam uma sanção acarretada por culpa do homem
(que é naturalmente responsável pelos seres inferiores perante Deus). Assim o
observador de bom senso poderia, ao menos com certa probabilidade, concluir a
existência do pecado original de que fala a Escritura Sagrada (Gênesis 3). Cf.
S. Tomás, Suma contra os Gentios IV 52.
Na verdade, a Bíblia ensina que o Senhor Deus dotou o primeiro casal — Adão e Eva — de dons que, ultrapassando as exigências da natureza, permitiam ao homem
gozar de perfeita harmonia no seu interior (entre a carne e o espírito) e em
torno de si (as criaturas inferiores serviam devidamente ao seu rei). No estado
inicial, portanto, a criatura humana era isenta de sofrer e morrer, assim como
de outros achaques naturais; contudo, note-se que tal condição provinha de puro
dom de Deus, que destarte se dignava corrigir as deficiências naturais do ser
criado.
Abusando, porém, do
livre arbítrio (que o Senhor lhe dera para que voltasse nobremente ao seu
Autor), o homem violou a ordem estabelecida por Deus: o seu espírito
insubordinou-se contra o Supremo Bem, pretendendo encontrar em si mesmo a
felicidade; em consequência, o corpo humano já não é sujeito ao espírito, mas
tem suas concupiscências desregradas, e o mundo exterior, em vez de colaborar
com o homem, humilha-o e esmaga-o (a rocha, o mosquito, as secas e as
enchentes... são capazes de destruir a vida humana).
Dai dizer-se,
segundo a fé cristã, que as desordens atualmente registradas no mundo, embora
pudessem a rigor ser explicadas pela defectibilidade congênita das criaturas,
na realidade não são simplesmente naturais, mas resultam de uma derrocada que o
homem, pecando, infligiu a si e aos seres inferiores.
Esta conclusão é
agora ilustrada mediante:
2.
O testemunho da história das Religiões
Muito chama nossa
atenção o fato seguinte: os povos antigos geralmente professam que a morte e as
misérias neste mundo não são algo de originário, mas, sim, consequências de uma
desordem introduzida pelo homem ao transgredir as leis de Deus.
Ora o fato de que os homens localizados nas
mais desconexas regiões do globo, detentores hoje de uma cultura que
corresponde aproximadamente à dos albores da humanidade, professem idêntica
concepção a respeito da morte e do seu significado, insinua que já a
professavam quando se achavam reunidos numa só população, antes de se
dispersarem. Esta observação não deixa de dar novo esteio à doutrina bíblica segundo
a qual Deus não fez o mal nem a morte, mas estes infortúnios entraram no mundo
em consequência do pecado; tal ensinamento parece, consequentemente, pertencer
ao patrimônio das noções primordiais do gênero humano e só se explica
devidamente se de fato corresponde à realidade histórica.
Naturalmente, cada tribo primitiva deu à
narrativa do primeiro pecado seu colorido próprio, caracterizado pelo ambiente
de vida e pela mentalidade particular de tal ou tal clã; não é esse colorido,
variável de povo a povo, que interessa ao presente estudo, mas é a mensagem
doutrinária assim transmitida. Essa mensagem, em última análise, faz eco à da
Escritura Sagrada (Gên 3), corroborando-a estupendamente.
Não há dúvida, o
confronto do texto bíblico com os documentos pagãos dá a ver que a Escritura
conservou a mensagem primitiva revestida talvez de um ou outro símbolo (a fruta
a significar o preceito divino; a serpente a representar o demônio...);
conservou-a, porém, isenta de qualquer corrupção da superstição e do
politeísmo. Fora de Israel, a mensagem foi envolvida em aberrações da
religiosidade decadente.
Passamos, portanto, a enunciar algumas das
narrativas dos povos primitivos referentes à origem da morte no mundo.
1) Em New South
Wales (Austrália) várias tribos afirmam que os primeiros homens foram
destinados a não morrer. Contudo era-lhes proibido aproximar-se de certa árvore
oca, em que abelhas selvagens tinham feito a sua colmeia. No decorrer do tempo,
as mulheres cobiçaram o mel da árvore proibida, até que, belo dia, uma delas,
desprezando as admoestações dos homens, tomou do seu machado e o arremessou
contra o tronco; imediatamente saiu deste uma enorme coruja. Era a Morte, a
qual de então por diante circula livremente sobre o mundo e reivindica para si
tudo que ela possa tocar com as asas.
2) Os pigmeus
referem que Deus (Mugasa) a princípio criou dois rapazes e uma jovem, com os
quais vivia amigavelmente na floresta, como pai com seus filhos, num lugar de
toda bonança: nada faltava aos homens, nem tinham que recear por alguma
perspectiva de morte. Mugasa apenas lhes proibira que procurassem ver a sua
face. Habitava uma tenda, diante da qual diariamente a jovem tinha que
depositar lenha para o fogo e um jarro de água. Um dia. porém, a moça, vencida
pela curiosidade, escondeu-se atrás de uma árvore, ficando à espreita do
"Pai", que havia de aparecer. De fato, ela o pôde ver, quando estendia
o braço reluzente de ornamentos a fim de apanhar o jarro. A menina alegrou-se
então profundamente e guardou o segredo do ocorrido. Mugasa, porém, percebera a
desobediência. Chamou os três irmãos à sua presença e lhes censurou a falta,
predizendo-lhes que havia de os deixar; para o futuro, a indigência e a morte
pesariam sobre eles. Os prantos do grupinho humano não conseguiram deter a
sentença; certa noite Mugasa partiu rio acima, e não foi mais visto. Quanto ao
primeiro filho que nasceu à mulher, morreu apôs três dias de existência...
3) Os Bagandas da
África Central contam que Kintu, o primeiro homem, depois de ter superado
vários testes, obteve a licença de se casar com Nambi, uma das filhas de Mugulu (o Céu ou o Alto). O pai da donzela deixou
que ela viesse com seu consorte para a terra, trazendo ricos presentes, entre
os quais uma galinha; ao despedir-se do casal, mandou que se apressassem por
sair, aproveitando o fato de que o irmão de Nambi, chamado Warumbe (a Morte)
estava fora de casa; recomendou-lhes, outrossim, que não voltassem para apanhar
o que quer que tivessem esquecido. Durante a caminhada, porém, Nambi verificou
que chegara a hora de dar de comer à galinha; já que esquecera o milho,
consentiu então em que Kintu voltasse à casa para buscá-lo. Mugulu, o pai, ao
rever o genro, irritou-se pela desobediência; Warumbe (a Morte), estando de
novo em casa, fez questão de acompanhar Kintu; toda resistência tendo sido vã,
a Morte desceu com o casal para a terra, onde até hoje habita com os homens.
4) Graciosa é a
história que contam os japoneses: o príncipe Ninighi se enamorou pela princesa
«Florescente como as flores». O pai da jovem, que era o Deus da Grande
Montanha, consentiu em seu casamento, e deixou-a partir com sua irmã mais velha
«Alta como as rochas». Esta, porém, era tremendamente feia, de sorte que o
noivo a mandou voltar para casa. Em consequência, o velho Deus amaldiçoou o
genro, e declarou que sua posteridade seria frágil e delicada como as flores!
5) Os «Bataks» de
Palawan (ilhas Filipinas) contam que o seu deus costumava ressuscitar os
mortos. Todavia certa vez os homens o quiseram enganar, apresentando-lhe um
tubarão enfaixado como um cadáver. Quando a Divindade descobriu a astúcia,
amaldiçoou os homens, condenando-os a ficar sujeitos ao sofrimento e à morte.
6) No território,
de Uganda (África) os «Masab referem que um dos seres divinos ou Demiurgos deu
a um homem a seguinte ordem: todas as vezes que morresse uma criança, deveria
remover o cadáver dizendo: «Homem, morre e vem de novo à vida! Lua, morre, e
desaparece definitivamente!». Essas palavras produziam o efeito de ressuscitar.
Um dia, porém, o dito comissário da Divindade, posto diante de uma criança que
não lhe pertencia, houve por bem desobedecer, invertendo os dizeres da famosa
fórmula. Quando na vez seguinte repetiu a frase certa sobre um de seus próprios
filhos, verificou que ela perdera o seu poder. De então por diante acontece
que, quando a Lua morre, ela volta à vida, ao passo que o homem, caindo nas
garras da morte, é por esta detido.
7) Por fim, deve-se
mencionar a crença numa era de inocência e felicidade anterior aos tempos
presentes, crença professada frequentemente pelos aborígenes da América.
Os Índios de
Cheyenne, por exemplo, falam de uma época paradisíaca, em que os homens,
moralmente puros como eram, não usavam vestes e caminhavam em meio a campos
férteis; guerra, enchentes e fome terão sucedido a tal fase da história, a
ponto de dominar atualmente o mundo. A morte, nas narrativas semelhantes a
estas, é muitas vezes apresentada como consequência de uma culpa moral ou de um
pecado; é o que se verifica, em particular, nas tradições dos esquimós.
Os egípcios
professavam a existência de uma idade de ouro no inicio da história, idade em
que o Deus Sol governava soberanamente o orbe e não havia nem pecado nem
espíritos malignos; revoltando-se contra Deus, os homens teriam perdido a
felicidade original. Haja vista, por exemplo, a narrativa intitulada
«Destruição do gênero humano»: o Deus Solar, Ra, caracterizado pelo seu amor ao
bem, reinava em tempos remotos sobre os deuses e a humanidade. Envelheceu,
porém, e os homens começaram a tratá-lo irreverentemente; Ra então mandou-lhes
seu próprio olho sob a forma da deusa Hator, a fim de os destruir. Ora Hator
não hesitou em provocar tremenda carnificina humana, que a divertiu durante um
dia inteiro. Ao fim deste, Ra compadeceu-se e resolveu salvar do total
extermínio a estirpe dos homens. Recusou-se contudo a habitar doravante sobre a
terra, retirando-se consequentemente para o céu.
Como foi dito, as «histórias» que acabam de
ser referidas, não nos interessam aqui pelas figuras infantis ou fantasistas
que apresentam, mas, sim, pela mensagem que em todas elas, de algum modo, se
repete: a morte e seus precursores (as desgraças) não são originários na história
do gênero humano, mas nela entraram sub-repticiamente por terem os homens
violado a ordem de coisas estabelecida por Deus. — Ora é justamente isto o que
o livro do Gênesis ensina... A convergência de depoimentos dificilmente se
explicaria se não correspondessem à realidade histórica.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)