PERGUNTE E RESPONDEREMOS 023
– novembro 1959
E a Bíblia Tinha Razão...
G. J. M.
(Diamantina): “Como avaliar os famosos
livros de Charles Marston: «A Bíblia disse a verdade» e de Werner Keller: «E a
Bíblia tinha razão», sendo este último considerado como um dos maiores sucessos
da literatura científico-religiosa dos nossos dias?”
Em nossa resposta
focalizaremos diretamente o livro de W. Keller; os princípios explanados
aplicar-se-ão outrossim à obra de Marston.
O volume «E a
Bíblia tinha razão» se deve a um jornalista alemão que, em viagens pelo Oriente
e o Egito, confrontou as páginas da Escritura do Antigo e do Novo Testamento
com os documentos da arqueologia, da paleontologia, assim como com as condições
geográficas e climáticas locais, concluindo finalmente haver estupenda
concórdia entre o que a Bíblia descreve e o que os dados da ciência atestam. Os
resultados das suas averiguações, ele os consignou numa obra de 440 páginas
(original alemão), à qual deu o titulo triunfante: «Und die Bibel hat doch recht!
— E, apesar de tudo (o que a crítica racionalista tem dito), a Bíblia tem
razão!»
O livro se
apresenta como eloquente apologia em favor da Escritura Sagrada e da fé cristã,
de mais a mais que o seu autor não faz profissão de determinado credo
religioso, mas, no limiar do volume, se apresenta como observador objetivo. Não
poucos leitores da obra reconhecem ter sido largamente beneficiados por ela,
corroborando a sua fé. Tendo aparecido em outubro de 1955 numa tiragem de
10.000 exemplares, a edição alemã três meses depois, ou seja, em janeiro de
1956, já estava na sua sexta tiragem, atingindo um total de 100.000 exemplares
publicados. As traduções se têm reproduzido em diversos idiomas.
Tal é o livro que
devemos agora submeter a uma apreciação serena.
1. «Prós» e «contras»
1.1. Não deixaremos
de realçar em primeiro lugar o que a obra tem de valioso.
Não há dúvida, o
estudo de Keller contribui poderosamente para se reconstituir o cenário histórico
e geográfico de muitos episódios bíblicos que até época recente eram tidos por
certos críticos como fábulas. Keller mostrou, de maneira acessível a grande
número de leitores, que de fato existem os dados de cultura humana sobre os
quais tal e tal narrativa bíblica se constrói; apontou outrossim vários
fenômenos ainda hoje verificados nas terras bíblicas, fenômenos que muito se
assemelham aos de algumas narrativas do Antigo Testamento, dando assim a ver
que a história sagrada não é tão estranha quanto parece e que o Senhor Deus não
precisava de fazer milagres inéditos para realizar várias das intervenções de
que fala a Escritura.
Na verdade, sabemos
que o Todo-Poderoso costuma servir-se de instrumentos para produzir certos fenômenos
que nos impressionam. Têm-se então fatos milagrosos não por sua substância, mas
apenas pelo modo (repentino, duradouro, fora da estação normal...) como foram
provocados. Tal terá sido o caso, por exemplo, das pragas do Egito, excetuada
apenas a última: conforme diz Keller, aluviões extraordinários dos lagos
abissínios terão comunicado às águas do Nilo um colorido pardo avermelhado,
lembrando o do sangue (donde dizer-se que as águas «se converteram em sangue»;
V. cf. Êx 7,14-24). No tempo das enchentes do rio, as rãs e os mosquitos se
multiplicam no Egito, às vezes de modo a tornar-se verdadeiras pragas.(cf. Êx
7,26-8,15); por toda a parte então seguem-se pestes de animais (cf. Êx
9,1-7)... As nuvens de gafanhotos são flagelo típico das regiões do Oriente
(cf. Êx 10,1-15). O mesmo se diga das trevas que repentinamente recobrem a
terra: devem-se ao chamsin,
também chamado simum, vento
ardente que levanta grandes massas de areia, encobrindo o sol, de modo a
produzir atmosfera escura em pleno dia (cf. Êx 10,21-23). Veja-se a propósito o
cap. 3 da II parte do livro de Keller.
A travessia do Mar
Vermelho, sugere ainda Keller (Parte III cap. 1), se terá dado por meio de um
vau que em determinadas épocas se abria (como atestam documentos arqueológicos)
e que o Senhor Deus terá tornado transitável fora das previsões comuns,
precisamente pelo espaço de uma noite, para dar passagem à caravana israelita
(note-se bem, o maravilhoso do fenômeno terá consistido na modalidade segundo a
qual se abriu a via entre as águas, não na própria abertura de passagem no
mar). Por parte da fé católica, nada se opõe a tais interpretações dos fenômenos
do êxodo de Israel, pois, como foi dito atrás, Deus costuma utilizar as leis e
os acontecimentos naturais para realizar seus desígnios acerca dos homens.
Embora estas
verificações concorram para dar às narrativas bíblicas um sentido vivo e bem
assentado na história, impõem-se contudo importantes restrições ao método e à
obra de W. Keller.
2.2. Com efeito, quem
afirma que a Bíblia tem razão porque se encontraram dados arqueológicos que
comprovam suas narrativas, deve precaver-se contra grave ilusão que daí poderia
decorrer: a ilusão de crer que a Bíblia foi escrita a fim de ensinar aquilo
mesmo que as ciências naturais ensinam, ou de crer que, quando a Bíblia alude à
natureza, à geografia e à história, alude a isso com o mesmo objetivo que as
ciências naturais visam...
As ciências
naturais intencionam, sim, descrever os fenômenos e sua evolução. Tal, porém,
não é a finalidade visada pelos autores sagrados: referem-se ao homem e ao
universo, isto é, às mesmas criaturas de que tratam as ciências naturais, não
para dizer quais as causas próximas (causas geológicas, biológicas,
antropológicas...) dos fenômenos, e, sim, para indicar qual a Causa Suprema de
todas as criaturas e o que cada uma destas vale à luz de Deus e da eternidade.
Na verdade, poder-se-ia dizer que a mensagem da Bíblia começa onde a das
ciências naturais termina; não há propriamente convergência, mas superposição
de objetivos no caso: a ciência visa explanar a «Física», isto é, o aspecto
natural e temporal, das criaturas, ao passo que a Escritura se propõe ensinar a
«Metafísica», isto é, o valor sobrenatural e eterno das mesmas criaturas. Onde
o cientista suspende seus estudos por falta de microscópio e telescópio
necessários para prosseguir a observação dos fenômenos, aí começa propriamente
a falar a Escritura Sagrada, explanando o aspecto transcendental dos mesmos
fenômenos ou dos últimos elementos da matéria (energia, elétrons, nebulosa
primitiva, etc.). É o que se poderia reproduzir pelo seguinte esquema:
«METAFÍSICA»
(aspecto transcendente da realidade): objeto da Escritura
«FÍSICA»
(aspecto
natural e empírico da realidade): objeto das ciências
Está claro que, ao
expor o sentido «metafísico» das criaturas, a Bíblia tem que aludir a um ou
outro dos aspectos da «Física» ou das ciências humanas. Tais aspectos, porém,
são acidentais na perspectiva da S. Escritura, ao passo que eles são essenciais
dentro do programa do cientista. Donde se vê que, independentemente do que as
ciências naturais forneçam para comprovar as narrativas bíblicas, estas têm sua
mensagem própria e muito importante: mensagem religiosa, teológica. É para esta
que o exegeta deve voltar primeiramente a sua atenção e a dos seus discípulos.
Caso se encontrem documentos que ilustrem a queda dos muros de Jericó ou as
guerras dos israelitas contra os cananeus ou episódio bíblico semelhante, o
exegeta agradecerá ao cientista tal documentação; nunca, porém, se julgará
obrigado a «forjar» teorias e hipóteses aptas a colocar uma narrativa bíblica
no plano das descrições profanas, como se esse «forjar» fosse trabalho de
importância decisiva para se dizer que a Bíblia tem razão. O exegeta bem
orientado sabe de antemão que não há contradição entre ciência e fé e que, por
conseguinte, quando os autores sagrados desceram ao plano dos cientistas, não
cometeram falhas (desde que os seus dizeres sejam entendidos dentro das regras
do gênero literário que adotaram; muitas vezes bastava-lhes falar de maneira
pré-científica, popular, geralmente aceita entre os homens não imbuídos de
técnica); o exegeta, porém, sabe que os hagiógrafos geralmente versavam num
plano superior ao dos estudiosos da natureza e que, consequentemente, as
coincidências com as afirmações destes são de certo modo acidentais.
Pois bem, a posição
que Keller mediante o seu livro poderia sugerir, é a que acabamos de censurar:
seria a posição de quem pensa estar obrigado a encontrar documentos profanos
que comprovem os quadros bíblicos à luz da razão humana, como se não houvesse
outra mensagem, e mensagem muito mais importante, a deduzir das páginas
sagradas» O sentido sobrenatural, teológico da S. Escritura se esvaneceria em
consequência dessa posição exegética.
2. O concordismo
2.1. A atitude que
acima apontamos como inadequada, toma tecnicamente o nome de concordismo, nome
que por si já indica quanto ela tem de pouco plausível: é a tendência a
estabelecer, por vezes de maneira artificial e pouco convincente, concórdia
entre as narrativas bíblicas e as ciências naturais, como se necessariamente
aquelas e estas visassem descrever o mesmo objeto do mesmo ponto de vista (isto
é, a face externa, empírica da realidade).
Um dos casos mais
típicos de concordismo é o que se refere à interpretação das elevadas cifras
dos «anos de vida» dos Patriarcas bíblicos (cf. Gên 5 e 11): Adão teria vivido
930 anos, Matusalém 980, Henoque 355, Lameque 777 anos, etc. Somando essas
cifras, os concordistas pretendem afirmar, em nome da Bíblia, que do primeiro
homem até Cristo decorreram cerca de 5000 anos apenas; já que esta proposição
entra em conflito com evidentes dados da ciência, procuram resolver a
dificuldade ora asseverando que faltam alguns poucos nomes nas tabelas genealógicas
de Gên 5 e 11, nomes que, se fossem acrescentados, permitiriam a plena
concórdia..., ora asseverando tratar-se, nessas tabelas, de anos lunares, o que
reduziria um pouco a extraordinária longevidade dos Patriarcas, etc. — Essas
explicações pressupõem que o autor bíblico tenha intencionado, à semelhança do
cronista profano, atribuir valor matemático, de.cronometria, aos mencionados
números. Ora este pressuposto é totalmente errôneo. O autor sagrado estava
longe de querer descrever o mesmo objeto que um cronista; mediante os números
que ele utilizou, ele visava apenas designar qualidades ou predicados dos
Patriarcas nomeados, isto é, os predicados da venerabilidade e da autoridade
que, para um oriental antigo, eram simbolizados por veneranda velhice.
Desista-se. portanto, de fazer «concórdia» entre a cronologia profana e a
pretensa cronologia bíblica, em Gên 5 e 11; esta pretensa cronologia bíblica
nos dois capítulos do Gên simplesmente não existe; o hagiógrafo visava em tais
secções a «Metafísica» ou a Filosofia religiosa, não a «Física» ou a história
profana concernente a Adão, Matusalém, Henoque, Lameque, etc. Cf. «P. R.» 17/1959, qu. 5.
Outro exemplo de
concordismo versa sobre a interpretação do «hexaémeron» ou dos «seis dias» da
criação, em Gên 1, 1-2, 4. Verificando que o mundo não apareceu feito ao cabo
de uma semana, os concordistas asseveram que os seis dias são períodos longos
ou indefinidos, que eles fazem corresponder a seis eras geológicas de que falam
as ciências naturais; e assim julgam chegar a estupenda concórdia... Na
verdade, não percebem que o autor sagrado não queria em absoluto descrever as
fases de formação do mundo e do homem; mencionando a criação dentro de seis
dias de trabalho e um de repouso, visava referir não uma tese de geologia, mas
incutir um preceito de moral religiosa, isto é, a lei da observância do sábado;
queria, sim, dar fundamento e autoridade a esta, apresentando a semana de um
operário humano como que consagrada e santificada desde o início do mundo pelo
próprio Deus. O Criador, por tal motivo, é concebido poeticamente a produzir o
mundo dentro do currículo de uma semana! — Mais uma vez desista-se de concórdia
artificial no caso, e leve-se em conta a finalidade puramente teológica, não
cosmológica, visada pelo texto bíblico...
2.2. Por fim, será
preciso frisar que o critério para se admitir ou não uma das interpretações
naturalistas que os autores modernos costumam dar aos fenômenos bíblicos
(pragas do Egito, travessia do Mar Vermelho, maná do deserto, queda dos muros
de Jericó, etc.), o critério, dizemos, não é nem o «medo» dos milagres ou do
sobrenatural (a existência destes não «espanta» o exegeta católico) nem também
o «gosto» do maravilhoso ou o desejo de contemplar a Onipotência de Deus a se
manifestar continuamente através da história sagrada. Não, nem racionalismo nem
mística preconcebidos poderão servir de normas de orientação para o exegeta;
este interpretará o texto bíblico norteando-se primariamente por critérios
literários e filológicos, pois a Bíblia é, segundo o seu primeiro aspecto, um
documento literário, redigido conforme as leis do estilo e do expressionismo
orientais e, como tal, ela tem que ser abordada (Pio XII na enc. «Divino
afflante Spiritu» lembrava que toda interpretação teológica da S. Escritura há
de se basear estritamente no sentido literal do texto bíblico). O exegeta sabe
que, procedendo dessa maneira objetiva, destituída de preconceitos
(preconceitos ditados ou pelo «medo» dos milagres ou pelo «gosto» do
maravilhoso), chegará sempre a conclusões aptas a fomentar a edificação e a
piedade. Para tirarmos um proveito espiritual da leitura da Bíblia, não é preciso
que de antemão ditemos aos estudiosos quais as proposições de piedade ou de
ciência natural a que eles devem chegar, mas deixemo-los trabalhar sem
preconceitos, à luz da filologia e da Revelação bíblicas em geral, e certamente
os resultados obtidos redundarão em sólido alimento da piedade.
Em consequência destes
princípios, verifica-se que não se podem de antemão nem condenar
nem aprovar as interpretações naturalistas que Werner Keller e outros autores
modernos dão a certos fenômenos bíblicos. Apenas de antemão se reconhecerá que
Deus, conforme a sua sabedoria, se pode ter servido (como. aliás, costuma
servir-se ainda hoje) de causas segundas ou de agentes naturais, para se
manifestar aos homens. Se de fato se serviu de tais causas segundas em tal ou tal
episódio bíblico, é esta uma questão que se há de estudar caso por caso,
analisando o estilo de cada texto bíblico em particular.
Keller parece
exagerar por vezes a busca de interpretações naturais para alguns episódios
escriturísticos, como, por exemplo, a aparição da estrela aos magos (cf. Mt
2, 2-9). Em vez de procurar na história profana um fenômeno semelhante ao
que narra o S. Evangelho (procura sutil e pouco convincente), reconheça-se no
caso, com a maioria dos bons exegetas, tratar-se de fenômeno realmente
milagroso; cf. «P. R.» 3/1958,
qu. 9.
Eis
as observações que se poderiam fazer à obra do famoso jornalista alemão: é
trabalho em vários pontos louvável, o qual, porém, acarreta o perigo de se
obliterar o ponto de vista próprio e a mensagem principal, perene, da Escritura
Sagrada.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)