PERGUNTE e RESPONDEREMOS 011
— Novembro de 1958
Lei
de Moisés, Abolida ou Não?
W. G. (São João
del-Rei): “Se se afirma que a Lei de Moisés
foi ab-rogada por Cristo, porque ainda se insiste na observância dos
mandamentos do Decálogo? Mesmo entre estes, que é feito das prescrições
concernentes ao sábado e às imagens? Qual é afinal o critério para se
distinguir o que foi ab-rogado e o que ainda tem valor de lei?”
1)
Antes do mais, na solução das questões acima, será preciso lembrar que as
disposições concernentes a Israel no Antigo Testamento tinham caráter de
preparação para a vinda do Messias — por conseguinte, caráter provisório e
figurativo de realidade vindoura ainda mais rica de conteúdo. A escolha do povo
de Israel não tinha outro sentido no plano de Deus senão o de criar, em meio à
corrupção doutrinária e moral crescente através dos séculos, um núcleo de fiéis
que, nutrindo a crença e a esperança no verdadeiro Deus, se tornasse o
receptáculo e transmissor das graças messiânicas para o mundo inteiro.
2)
A fim de preservar eficazmente os israelitas da tendência a adotar os costumes
e, consequentemente, as idéias das nações idólatras que os cercavam, o Senhor
houve por bem dar-lhes, mediante Moisés, uma legislação ampla e pormenorizada,
a qual, entrando nos mais diversos setores da atividade do israelita, faria que
este vivesse obedecendo continuamente a Deus (o regime era teocrático),
recordado de que tinha uma missão religiosa a cumprir na história.
A Lei de Moisés,
ampla como era, abrangia três tipos de preceitos: 1) prescrições civis e
judiciárias, 2) prescrições rituais e litúrgicas, 3) prescrições morais.
2.1
A legislarão civil e judiciária tinha por fim isolar o povo
hebreu das demais nações, impedindo que se organizasse, política e socialmente,
como os Estados pagãos; toda a legislação civil de Israel era assim uma muralha
que, em última análise, visava proteger a religião do povo de Deus. —
Compreende-se que tais preceitos civis tenham perdido sua razão de ser logo que
veio o Messias. Com efeito, Este, qual Pastor universal, mandou os Apóstolos
convocar os povos do mundo inteiro para integrarem a família dos filhos de
Deus, abolindo desta forma o isolacionismo civil e nacional de Israel, que a
Lei de Moisés fomentava.
2.2
As leis cerimoniais e litúrgicas
de Israel tinham por objeto numerosos ritos (sacrifícios, abluções, celebrações
várias) dotados de valor simbólico e profético em relação ao Messias; assim a
circuncisão, o cordeiro de Páscoa, as festas anuais, etc. Estas instituições
anunciavam, cada qual do seu modo, o Messias vindouro; por conseguinte, é claro
que, após a vinda deste, perderam toda a sua razão de ser; cederam ao novo
culto instaurado por Jesus Cristo (cf. Hebr 5,4-6; 7,18 s; 10, 1. 14).
2.3
Quanto à legislação moral de Israel, ela compreendia uma série de preceitos de
direito natural, condensados principalmente no Decálogo (1). Este, em verdade,
não faz senão explicitar normas da lei natural, excetuado apenas o terceiro
mandamento, que é, em parte, de direito natural e, em parte, de direito
positivo divino; sim, de um lado é a lei natural que manda ao homem consagrar
algum tempo ao serviço explícito do Criador (sem, porém, determinar as ocasiões
e a frequência respectivas); foi, de outro lado, a vontade positiva do Divino
Legislador que escolheu precisamente o sétimo dia para tal fim; e,
diga-se logo, do Antigo Testamento, visando, mediante a observância do sábado,
avivar nos judeus a crença na promessa de um Messias vindouro e da obra da
Redenção que estava por se cumprir.
(1) Seja aqui
recordada a distinção que voltará ainda nas páginas seguintes, entre lei
natural (ou direito natural) e lei positiva ou direito positivo): ao passo que
aquela é promulgada pela própria natureza, esta
é manifestada por uma declaração ou um decreto explicito do legislador, seja do
Legislador divino (donde se tem a lei positiva divina), seja do legislador
humano (donde a lei positiva humana).
A legislação
natural é imutável, pois está fundada sobre a natureza das coisas, que não se
muda. Ao contrário, a legislação positiva é mutável e ab-rogável, pois depende
da livre vontade do legislador, que procura interpretar e aplicar a lei natural
de acordo com as exigências contingentes do bem comum.
No caso acima
dir-se-á: as leis civis rituais de Israel pertenciam ao direito positivo
divino, enquanto a legislação moral ou o Decálogo era de direito natural.
Ora, sendo o
Decálogo (feita a ressalva acima) uma explicitação direta do direito natural,
isto é, de exigências ditadas pela natureza humana mesma, entende-se que não
tenha sido ab-rogado por Cristo; nem o podia ser, a menos que o Legislador
Divino quisesse entrar em contradição consigo mesmo, retratando pela sua
revelação positiva (no Evangelho) o que tivesse ordenado pela revelação
natural. As prescrições do Decálogo eram, por conseguinte, obrigatórias já
antes de Moisés e não deixam de ter seu vigor ainda em nossos dias; serão
sempre atuais enquanto se propagar sobre a terra a natureza humana com suas
notas essenciais (é por estas que o Criador fala). O Senhor Deus, no Antigo
Testamento, promulgando explicitamente os mandamentos do Decálogo, visava
apenas facilitar ao homem (tendente ao vício em consequência do pecado de Adão)
o reconhecimento da voz da natureza e impedir que esta fosse ofuscada pelas
paixões. Verifica-se mesmo que, longe de ab-rogar os preceitos naturais do
Decálogo, Jesus Cristo se dignou aprofundar o seu sentido e valor, incutindo
observância mais profunda e exata dos mesmos; o Salvador lembrou-nos, por
exemplo, que a castidade não consiste apenas em uma conduta exterior (não
cometer adultério), mas significa primariamente uma atitude interna da alma
(nem sequer desejar adultério); da mesma forma, dizia-nos o Senhor, a caridade,
a justiça, a veracidade, etc. têm que se arraigar primeiramente no íntimo do
cristão para poder transparecer na sua conduta externa (cf. Mt
5,17-48). Além disto, a fim de favorecer o fim colimado pelos preceitos do
Decálogo, o Senhor Jesus propôs os chamados «conselhos evangélicos», ou seja, a
renúncia espontânea a bens lícitos em vista de se conseguir mais desembaraçada
união com Deus (cf. Mt
19,3-29).
É por isto que o
código de moral cristã continua a urgir a observância do Decálogo.
3.
Mas, feitas estas observações, ainda restam abertas as questões particulares
concernentes ao dia do Senhor (sábado ou domingo?) e ao uso de imagens sagradas
entre os cristãos.
3.a) Quanto à
primeira dúvida, ela se dissipa à luz do que acima foi dito com referência ao
terceiro preceito do Decálogo; os cristãos observam o que neste se deriva da
lei natural, dedicando periodicamente algum tempo (um dia) ao serviço direto de
Deus; o dia de guarda dos cristãos, porém, não ó mais o sábado (ou o sétimo dia
da semana judaica) prescrito na Antiga Lei, pelo óbvio motivo que se segue: o
sábado foi escolhido pelo Divino Legislador de Israel de acordo com o grau de
Revelação religiosa que os israelitas possuíam; está claro que, para estes, o
dia do repouso ou da interrupção dos trabalhos servis devia ser o dia em que,
conforme a linguagem figurada do Gênesis, Deus mesmo entrara no seu repouso,
isto é, o sétimo dia após seis dias de trabalho que recordavam a criação do
mundo; o sábado judaico, portanto, evocava as origens da história sagrada e
excitava o anelo à plenitude dos tempos marcada pela vinda do Messias; era
essencialmente função da espiritualidade do Antigo Testamento; observando-o, o
judeu vivia a sua vida mística tão intensamente quanto possível dentro dos
moldes da Revelação pré-cristã.
Eis, porém, que
Cristo veio ao mundo como Autor de nova criação, por assim dizer, ou como
Restaurador do gênero humano, o qual terminou sua obra no dia subsequente ao
sábado judaico no silêncio do sepulcro para se manifestar, apresentando ao
mundo a nova criatura (cf. 2
Cor 5,17), logo após o dia de guarda dos judeus. Em consequência, os
Apóstolos e as subsequentes gerações cristãs entenderam que o dia do Senhor é
atualmente o dia posterior ao antigo sábado; compreenderam que o domingo é o
dia escolhido pela lei positiva de Deus no Novo Testamento, para se cumprir o
preceito natural do culto do Senhor (cf. At
20,7; 1
Cor 16,2; Apoc
1, 10). Não se entenderia que os cristãos continuassem a observar o sábado,
símbolo da primeira criação e da ordem de coisas pré-cristãs, depois que o
Autor do mundo se dignou recriar o homem e o universo, dando consumação ao seu
plano no dia seguinte ao sábado. Mais amplas considerações sobre esta questão
se poderão encontrar em «P. R,» 1/1958, qu. 9.
3.b) Quanto à
proibição do Decálogo referente ao uso de imagens, note-se que ela figura no
texto sagrado do Antigo Testamento unicamente para assegurar o culto ao único
Deus ou o monoteísmo em Israel; já que os judeus viviam cercados de povos que
adoravam figuras feitas por mãos humanas, a Lei de Moisés quis preservá-los de
tal erro, vedando-lhes a confecção de qualquer imagem.
Chama-nos a
atenção, porém, o fato de que o próprio Deus, no Antigo Testamento mesmo, não
hesitou em derrogar a esta proibição, ora mandando que seu povo ornasse a arca
da Aliança e o templo de Jerusalém com estátuas de querubins esculpidas em
madeira (cf. Êx. 25,17-22; 3 Rs 6,29s), ora ordenando a confecção da serpente
de bronze (cf. Núm 21,8s). A proibição de se usarem imagens, imagens que
serviriam para elevar o espírito dos Fiéis a Deus, era evidentemente de direito
positivo e contingente; estava longe de se derivar das exigências da natureza
humana como tal. Esta, ao contrário, tende a galgar a contemplação das
realidades invisíveis mediante a observação das coisas visíveis. Compreende-se
então que, uma vez passado o perigo de politeísmo e idolatria, havendo o
governo humano chegado à maturidade de espírito, o próprio Deus tenha suspenso
a lei positiva do Antigo Testamento que vedava a fabricação de imagens; é o que
a Tradição cristã entendeu desde os seus primeiros tempos, estimulada
principalmente pelo fato de que Deus tomou face humana, bem sensível, na
Encarnação. Os cristãos podem fazer (e fazem) uso reto e profícuo de figuras
sensíveis, pondo-as, de acordo com a índole de sua natureza psicossomática, a
serviço do seu espírito sequioso de Deus, do único Deus.
Eis aqui uma
passagem do Papa São Gregório Magno (+604) que bem atesta o valor catequético
das imagens nas igrejas:
«A imagem é para os
analfabetos aquilo que a letra é para os que sabem ler; mediante as imagens os
analfabetos aprendem o que devem imitar; as imagens são o livro de leitura dos
analfabetos» (ep. IX 105, ed. Migne lat. 77, 1927).
Em conclusão,
verifica-se que os cristãos observam o preceito do Decálogo referente ao
monoteísmo, preceito que dimana da lei natural mesma, sem estar presos à
sobrecarga positiva (não fazer imagens) que a Lei de Moisés acrescentou a tal
mandamento; o acréscimo positivo tinha sua razão de ser no regime do Antigo
Testamento; carece, porém, de fundamento no estado de coisas do Novo
Testamento, em que já é lícito dar plena satisfação à índole psicossomática da
natureza humana.
Também este assunto
já foi abordado em «P. R.» 4/1957, qu, 4.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)