PERGUNTE
E RESPONDEREMOS 004 – abril 1958
Matrimônio no Epistolário Paulino
PLATÃO
(Rio de Janeiro):
“Pelas palavras de São Paulo (1 Cor 7, 7-9) parece que
o casamento só é permitido em último caso (‘se não se puderem conter’). Tem-se
a impressão de que o Apóstolo, além de proclamar que a virgindade é superior ao
matrimônio, desaconselha formalmente este último, por que ?”
Em 1 Cor 7 São Paulo tece o elogio da virgindade,
colocando-a acima do matrimônio. É esta uma das grandes novidades que o
Cristianismo veio pregar ao mundo, novidade decorrente da consciência que o
cristão tem de que, pela graça santificante, já possui em sua alma um gérmen da
vida eterna e, por conseguinte, a conduta mais conveniente e coerente é a de
quem procura antecipar neste mundo a atitude una, indivisa, dos justos na
eternidade. Em «Pergunte o Responderemos» fasc. 4/1957, qu. 7 ; fasc. 7/1957, qu. 7, foram
mais largamente expostas as razões por que São Paulo estabelecia tal hierarquia
de valores.
Agora é preciso notar que o Apóstolo, exaltando a
virgindade, de modo nenhum entendia negar quanto há de belo e positivo no
casamento. Compreende-se que no contexto de 1 Cor 7 ele o considere
predominantemente sob o aspecto de remédio da concupiscência: tinha que
apresentar o matrimônio como solução (não restava dúvida, muito digna) para os
fiéis que, entusiasmados pelo ideal da virgindade diretamente focalizado no
capítulo, não conseguissem observar devidamente a vida celibatária: não desesperassem
da salvação eterna, queria dizer-lhes o Apóstolo, mas recorressem ao
matrimônio. Contudo mesmo em 1 Cor 7 Paulo enuncia, embora brevemente, outro
aspecto (e este, positivo) do casamento: é dom de Deus.
«Bem desejaria que
todos fossem como ou mesmo sou <celibatário); mas cada um recebe de Deus um
dom gratuito, um de um modo, outro de outro» (7,7).
Neste texto, corno se vê, o matrimônio é apresentado qual
graça análoga à da virgindade. Os fiéis, portanto, que recebem o sacramento do
matrimônio, com a intenção de servir a Deus, atendendo às indigências de sua
natureza, sabem que entram num estado santo, em que encontrarão as graças não
apenas «para salvar a alma» mediocremente, mas, sim, para chegar à perfeição
cristã ou à santidade. Certamente é Deus quem distribui as vocações
particulares; qualquer chamado particular, porém, está subordinado a esta
vocação geral de todos os cristãos: ser santos ou perfeitos, fugindo de toda
mediocridade (cf. Mt 5,48).
E, para que não reste dúvida sobre o pensamento do
Apóstolo, o próprio Paulo nos fornece ainda a passagem famosa de Ef 5,22-32, em
que focaliza diretamente o matrimônio. Eis a frase culminante do texto:
«Grande é este
mistério (do matrimônio); eu o digo em vista do Cristo e da Igreja» (5,32).
Nestes termos, Paulo apresenta o matrimônio como imagem e
participação da união de Cristo com a sua Igreja união que comunicou ao
mundo a vida eterna. Em cada lar cristão, esta união se assenta e se reproduz
em miniatura, qual mistério pequeno dentro do Mistério Grande. O marido é
chamado a fazer as vezes de Cristo, a esposa as da Igreja; o que quer dizer: um
cônjuge é para o outro ministro da graça (o sacerdote que assiste ao casamento
no santuário é apenas o representante oficial da Igreja, que abençoa o
ministério dos cônjuges). E note-se bem: cada um dos cônjuges é ministro da
graça não somente ao contrair o casamento religioso, mas ainda em todo o decorrer
da vida conjugal. Destarte, o matrimônio vem a ser, à semelhança da Eucaristia,
um sacramento permanente, que só se destrói quando se extingue a respectiva
matéria, ou seja, o corpo de um dos consortes. Isto implica que os atos mais
simples da vida conjugal são acompanhados de uma graça própria de santificação;
estão longe de ser atos meramente profanos, religiosamente neutros, ou
concessões à natureza que derroguem ao ideal de santidade dos cônjuges; há, ao
contrário, uma constante comunicação de graças dos esposos entre si e com seus
filhos (cf. 1 Cor 7, 12-14). Verdade é que o estado matrimonial pode oferecer
mais seduções e perigos do que a condição virginal; contudo lembrem-se os
esposos cristãos de que, chamados por Deus às núpcias, recebem do mesmo Senhor
os auxílios necessários para superar os obstáculos respectivos e se tornarem
imagem muito viva do Cristo e da sua Igreja.
Os textos do Apóstolo, considerados todos devidamente,
permitem-nos agora formular a seguinte conclusão: embora em si ou na ordem dos
valores objetivos a virgindade seja superior ao matrimônio, o estado melhor
para cada cristão em particular é aquele para o qual Deus em seus insondáveis
desígnios o chama: matrimônio ou virgindade. Na sua vocação própria, e nesta
só, é que o Senhor reserva a cada um as graças necessárias para ser santo.
Haja, pois, como sempre houve, santos que, conforme a inspiração do Espírito
Santo, honrem a vida conjugal, e santos que honrem a vida virginal, até que o
Senhor se digne levar todos os seus fiéis às núpcias da vida eterna, para as
quais qualquer vocação aqui na terra nos encaminha.
Dom Estêvão
Bettencourt (OSB)