A
Comunhão do Cálice
TIUBEANTE (São Paulo) :
“Porque é que a Igreja não dá aos fieis a comunhão do
cálice consagrado? Não mandou Jesus que todos comessem da sua carne e bebessem
do seu sangue (cf. Jo 6,34s) ?”
A S. Comunhão foi
distribuída aos fiéis sob as espécies do pão e do vinho até o séc. XII no
Ocidente cristão. No Oriente, não somente entre os cristãos cismáticos, mas
também em comunidades unidas a Roma continua-se até hoje a tradição de dar a
beber a todos do cálice, consagrado.
Desde o início, porém,
da celebração da Eucaristia, os ministros do altar muito se empenharam por
evitar qualquer derramamento ou perda das espécies do vinho ou do preciosíssimo
sangue.
Fazia-se passar
geralmente um só cálice por todos os ' comungantes : ou o cálice mesmo de que
bebia o celebrante, ou um cálice consagrado especialmente para a comunhão dos
fiéis e chamado em Roma «calix ministerialis» (caso fossem muito numerosos os
comungantes, podiam-se usar vários destes cálices). Aos poucos, o costume de
recorrer a um cálice próprio para a comunhão dos fiéis parece ter sugerido um
rito novo, que visava diminuir o perigo de profanação da sagrada espécie : a
taça dada aos leigos continha vinho não consagrado misturado com algo do
preciosíssimo sangue. Este uso parece ter entrado em vigor no Oriente, desde
época muito remota; a ele talvez aluda o concilio de Laodicéia (cerca de 380)
no seu cân. 25, cujo conteúdo não é muito claro. No Ocidente o costume é
atestado a partir do séc. XII pelos «Ordines Romani»; segundo este documento,
os acólitos (clérigos), após a comunhão do celebrante, apresentavam a este
alguns vasos com vinho, dentro dos quais o oficiante lançava parte do
preciosíssimo sangue contido no único cálice consagrado durante a Missa.
Outro expediente
utilizado para evitar profanação foi o de se fazer que os fiéis bebessem do
cálice não diretamente, mas mediante pequeno canudo («pugillaris, calamus,
fistula»); parece que até os clérigos usavam de tal recurso; podia haver grande
número desses tubozinhos.
Fora de Roma ainda outro
rito foi adotado visando a mesma finalidade que os dois anteriores : distribuía-se
aos fiéis a sagrada partícula de pão previamente mergulhada no preciosíssimo
sangue, evitando-se destarte que o cálice passasse de pessoa a pessoa. Este
costume é mencionado pela primeira vez no 3° si- nodo de Braga (675); deve-se
ter tornado muito comum no Norte da Europa. Na administração da S. Eucaristia aos
doentes, este era por vezes o único rito exequível para se dar as duas espécies
consagradas aos enfermos. Entre os orientais, mesmo entre os que estão unidos a
Roma, a praxe continua em vigor.
A partir do séc. XII,
porém, foi declinando na Liturgia latina o costume de se dar o vinho consagrado
a todos os fiéis, pois não se conseguiam evitar pequenos incidentes na
distribuição da S. Comunhão; foi, portanto, um motivo de reverência ao SSmo,
Sacramento que levou as autoridades da Igreja a dar lentamente tal passo; o
motivo ainda hoje é imperioso, principalmente nas paróquias onde grande é o
afluxo dos fiéis que muito louvavelmente querem comungar durante a Missa.
Quanto ao mandamento de
«comer da carne e beber do sangue do Senhor», consignado em Jo 6,54s, não sofre
derrogação alguma pela supressão do «cálice dos leigos». Com efeito, sob
qualquer das duas espécies consagradas, se acham presentes o corpo, o sangue, a
alma e a Divindade de Jesus Cristo. Verdade é que as palavras da consagração do
pão indicam apenas a presença do corpo, e as do vinho unicamente a presença do
preciosíssimo sangue do Senhor; acontece, porém, que o corpo de Cristo não
existe atualmente separado do seu sangue, mas a este reunido, assim como à sua
alma e à Divindade, no céu; ora Cristo se torna presente na S. Eucaristia tal
como Ele se acha na glória; como se sabe, o mesmo Jesus, presente no santuário
celeste por sua presença natural, se torna presente no SSmo. Sacramento à guisa
de substância ou segundo a modalidade própria que chamamos «sacramental» (cf.
resposta, à questão anterior). Em consequência, os fiéis que comungam apenas do
pão consagrado, não deixam de receber o sangue de Cristo juntamente com o seu
corpo santíssimo. Somente se na realidade natural, como aconteceu durante a estada
de Cristo no sepulcro, o corpo e o sangue do Senhor estivessem separados, é que
na Eucaristia as palavras de consagração do pão nos dariam apenas a presença do
corpo, e as de consagração do vinho unicamente a presença do sangue de Jesus.
De resto, enganar-se-ia
quem julgasse que nos primeiros séculos não se distribuía a S. Comunhão sob uma
espécie apenas: tal era, sem dúvida, a praxe adotada quando, logo após o
batismo, se administrava o SSmo. Sacramento às criancinhas; dava-se-lhes somente
o vinho consagrado. O mesmo acontecia na comunhão distribuída aos moribundos.
Também é claro que, quando os fiéis em dias de semana comungavam em casa
tomando as sagradas espécies que haviam trazido da igreja no domingo anterior
(caso não raro nos dois primeiros séculos), comungavam apenas sob as espécies
do pão (pois somente estas se podiam guardar facilmente em domicilio).
Embora fosse declinando,
o costume de dar a S. Comunhão sob as duas espécies manteve-se em algumas
paróquias até o séc. XIV; conservou-se ainda por mais tempo na cerimônia de
coroação de um rei ou imperador e na Missa que o Sumo Pontífice celebrava todos
os anos no domingo da Ressurreição. Em alguns mosteiros de Ordens mais antigas
o rito protraiu-se até os inícios da Idade Moderna. No séc. XV um grupo de hereges
Hussitas da Boêmia (Europa Central) fez do «cálice dos leigos», que já caíra em
desuso, uma de suas reivindicações mais acaloradas; a Santa Igreja concedeu
então a S. Comunhão sob ambas as espécies para a Boêmia no ano de 1433. Mais
tarde em 1564 o Papa Paulo IV, atendendo às instâncias do Imperador Ferdinando
I e do Grão-Duque Albrecht da Baviera, outorgou, sob certas condições, a mesma
faculdade a algumas dioceses do território germânico. As experiências, porém,
não foram satisfatórias, de sorte que o privilégio foi definitivamente revogado
na Baviera em 1571; na Áustria em 1584; e na Boêmia, assim como no restante do
orbe católico, em 1621.
A ab-rogação do «cálice
dos leigos» não prejudica em absoluto os fiéis que recebem a S. Eucaristia; vem
a ser exigência imposta polo curso mesmo dos acontecimentos à piedade dos
cristãos, que certamente não desejariam ver exposto à profanação o sacramento
do corpo e do sangue do Senhor!
Dom Estêvão Bettencourt
(OSB)