PERGUNTE
E RESPONDEREMOS 018
– junho 1959
Concílios
Ecumênicos, Legislação e Autoridade
AMIGO DA FRANÇA (Rio de
Janeiro) :
“Qual o trâmite observado na celebração de um concilio
ecumênico e qual a autoridade que a este compete na vida da Igreja ?”
A legislação da
Igreja hoje em dia é muito explícita no tocante aos concílios ecumênicos (cf.
C. J. C. cân. 222-229). Das disposições que regem tais assembleias, podem-se
destacar as seguintes:
1) Quem participa de um concilio ecumênico ?
a) Por direito divino e ordinário, devem ser chamados a concilio universal todos os bispos (arcebispos, primazes,
patriarcas) residenciais, ou seja,
dotados de jurisdição atual e ordinária em determinada diocese. Esses prelados
são, sim, os sucessores dos Apóstolos que o Espírito Santo designou para na
hora presente constituírem a Igreja docente, depositária de infalibilidade
doutrinária.
Ao lado dos bispos residenciais, existem na Igreja bispos titulares. São verdadeiros bispos, portadores da
plenitude do sacramento da Ordem, aos quais não está .confiado o governo
ordinário de uma diocese; tal é o caso, por exemplo, dos auxiliares de um bispo
residencial (a diocese própria desses bispos é um bispado antigo do Oriente ou
da África, hoje ocupado por muçulmanos ou pagãos; tais bispos trabalham então
em diocese alheia como «auxiliares»). É natural e conveniente — não, porém,
obrigatório — chamar esses prelados a concilio ecumênico; uma vez admitidos na assembleia,
compete-lhes voz deliberativa.
A história dos oito primeiros concílios ensina que outrora, em vista das
dificuldades de correio e viagem, só se convocavam os arcebispos metropolitas,
os quais se encarregavam de levar ao sínodo geral alguns de seus sufragâneos
(cf. «P. R.» 17/1959,
qu. 7). Exigia-se que ao menos cada um dos Patriarcados (Roma, Antioquia,
Alexandria, Jerusalém, Constantinopla) estivesse representado no concilio;
dadas as grandes distâncias, o Patriarcado de Roma ou do Ocidente fez-se
representar nos oito primeiros concílios (celebrados todos no Oriente) quase unicamente
pelos legados do Patriarca de Roma ou do Papa. Note-se, por exemplo, que o
concilio de Calcedônia em 451 reuniu a cifra extraordinária de 630
participantes; destes, porém, apenas cinco eram ocidentais, sendo dois
provenientes da África setentrional e três legados papais, aos quais (fato
muito significativo) foi dada a presidência do concilio!
b) Pela legislação eclesiástica hoje vigente, são igualmente convocados a
concilio, com direito de voto:
- todos os Cardeais,
ainda que não possuam o caráter episcopal (cf. «P. R.» 17/1959, qu. 7);
- os Abades e Prelados
«Nullius» que tenham jurisdição ordinária sobre determinado território;
- os Abades presidentes
ou Gerais de Congregações monásticas;
- os Superiores Gerais das Ordens Religiosas.
Além desses membros efetivos do concilio, entende-se que certos teólogos e
canonistas sejam admitidos, a título de consultores e relatores, a participar
de sessões da assembleia.
2) Quem tem o direito de convocar um concilio ecumênico ?
Toca exclusivamente ao Sumo Pontífice o direito de reunir um sínodo universal.
Isto se compreende a duplo título:
a)
Todo concilio ecumênico é essencialmente uma assembleia que visa deliberar sobre
assuntos religiosos. Ora no plano da religião ninguém tem competência para
decidir autênticamente senão a Igreja que Cristo instituiu, entregando-lhe o
depósito da Revelação Divina. E dentro da Igreja ninguém tem autoridade para
obrigar os bispos do mundo inteiro a se reunir em época e lugar determinados a
fim de deliberar sobre tais e tais assuntos senão o bispo a quem Jesus confiou
a primazia entre os demais bispos, isto é, o sucessor de S. Pedro ou o Papa.
Donde se segue que somente o Papa tem o direito de convocar um concilio
ecumênico.
b)
Os Padres conciliares exercem atos de autoridade sobre a Cristandade inteira,
tornando-se juízes, legisladores e doutores para os fiéis de toda a Sta.
Igreja. Ora, essa jurisdição universal, nenhum bispo, exceto o de Roma, a tem
de per si;
donde se segue que os Padres sinodais devem necessariamente receber do bispo de
Roma os poderes que eles exercem nas reuniões do concilio. Por conseguinte é ao
Romano Pontífice, e somente a este, que toca convocar os Padres conciliares,
habilitando-os destarte a exercer suas funções sinodais.
Verdade é que a convocação dos oito primeiros concílios ecumênicos foi feita
pelos Imperadores bizantinos. Tal fato, porém, não derroga à doutrina acima.
Com efeito; num ou noutro caso documentos antigos atestam que os Imperadores procederam
à convocação ou por comissão do bispo de Roma ou com o consentimento deste. Em
todo e qualquer caso, porém, consta que as assembleias convocadas pelos
monarcas civis só lograram a autoridade de concílios ecumênicos quando o Papa
lhes prestou sua adesão ou participando, por meio de legados, das sessões e
deliberações respectivas, ou aprovando posteriormente as conclusões dos Padres
sinodais; sem este reconhecimento da parte do Papa, nenhuma assembleia antiga,
por mais concorrida e solene que fosse, foi considerada concilio ecumênico.
Disso se deduz que a adesão do Sumo Pontífice a uma assembleia previamente
convocada pelo Imperador constitui o que se chama a convocação formal do
concilio, ao passo que a tarefa previamente prestada pelo Imperador em tais
casos equivale à convocação material apenas, isto é, convocação da qual não
resulta um sínodo ecumênico propriamente dito. — Entende-se que os Papas na
antiguidade tenham confiado ou ao menos deixado aos Imperadores a convocação
dos bispos a concílios; entende-se mesmo que os monarcas por iniciativa própria
tenham empreendido esta obra, pois somente o Imperador estava em condições de
prestar tarefa que exigia ampla colaboração dos exíguos serviços de correios,
locomoção e hospedagem da época.
3) Qual o protocolo observado nas sessões de um concilio
ecumênico ?
A presidência autoritativa e efetiva da assembleia compete exclusivamente ao Pontífice Romano;
se só este tem o direito de convocar os Padres sinodais, comunicando-lhes algo
de sua suprema autoridade, só ele tem também a faculdade de governar os debates
respectivos ; o Sumo Pontífice pode exercer este seu direito pessoalmente (como
Pio IX no concilio do Vaticano) ou por delegados (caso mais frequente na
história). Os imperadores bizantinos ocuparam nos oito primeiros concílios
ecumênicos a presidência de honra
ou a presidência de proteção,
funções estas que não implicavam intervenção nos debates e nas resoluções da assembleia.
É, por conseguinte, o Sumo Pontífice quem propõe as questões a ser estudadas
pelos Padres conciliares, ficando aos bispos o direito de apresentar outros
temas' prèviamente aprovados pelo Papa. Nos debates, cada um dos membros
sinodais goza de plena liberdade de se manifestar; encerrada a discussão do
tema, procede-se à votação.
As votações realizadas em concilio ecumênico não são necessariamente decididas
por maioria numérica de sufrágios (dois terços ou a metade mais um ou cifra
semelhante). Dá-se grande atenção, sem dúvida, à sentença da maioria dos
votantes; pode-se presumir que essa sentença prevaleça habitualmente como
definição conciliar. Contudo tal critério admite exceções. O que em todo e
qualquer caso prepondera, é o alvitre da parte mais sábia (pars sanior), parte
caracterizada pelo sufrágio e o apoio do Sumo Pontífice. Este, por sua
reprovação, pode destituir de todo vigor uma decisão votada pela maioria dos
membros da assembleia, e, vice-versa, aprovando e promulgando o alvitre da
minoria, pode comunicar a este a autoridade de lei universal.
Isto equivale a dizer que uma decisão conciliar jamais pode entrar em vigor se
o Romano Pontífice não a aprova; tal aprovação não lhe é meramente acidental,
mas essencial, como a cabeça não é acidental, mas essencial, para a vida do
corpo. A aprovação papal pode ser concedida antecedentemente ao concilio (caso,
por exemplo, o Papa confie instruções e poderes a legados seus) ou
concomitantemente (dado que o Papa assista pessoalmente à assembleia) ou
posteriormente (se o Sumo Pontífice houver por bem ratificar resoluções tomadas
sem a sua participação).
A respeito do número de participantes
necessário para que um concilio possa ser tido como ecumênico, nada há de
estipulado nem na praxe nem na legislação da Igreja. É certo que não se requer
a presença material de todos os bispos do mundo, pois isto seria moralmente
impossível; nem se exige o comparecimento da maioria absoluta (equivalente à
quase totalidade) dos prelados. Basta, ao contrário, que o número de bispos
reunidos represente a parte mais sábia e significativa (pars sanior) do
episcopado. Ora isto se verifica desde que os Padres sinodais estejam unidos ao
Romano Pontífice e (condição não menos importante) este os reconheça como
membros integrantes de um concilio ecumênico.
Sem tal reconhecimento do Papa, não há assembleia episcopal (por mais vultuosa
que seja) que mereça o título de sínodo universal. Apontam-se mesmo casos em
que o Sumo Pontífice desautorou decisivamente vultuosas assembleias de bispos
que se arrogavam as faculdades de sínodo ecumênico: o Papa São Leão Magno, por
exemplo, tornou vão o pseudo-concilio de Éfeso (chamado «latrocínio efésio»)
que, reunido em 449 com foros de sínodo universal e autoridade do Imperador,
visava impor à Cristandade a heresia monofisita; o Papa Estêvão III em 769
condenou o conciliábulo de Constantinopla reunido em 754 e integrado por 338
bispos iconoclastas, que o Imperador Constantino Coprônimo subjugava
moralmente; os Papas Júlio II (1503-13) e Leão X (1513-21) anularam as
resoluções do concilio de Pisa, que, frequentado por diversos Cardeais, nutria
pretensões de sínodo ecumênico.
4) Qual a autoridade de um concilio ecumênico ?
Pode-se
dizer que o concilio ecumênico goza da autoridade máxima e mais solene possível
dentro da Igreja, pois está habilitado a proferir fórmulas infalíveis em
matéria de fé e costumes (note-se bem o âmbito próprio dessa infalibilidade
conciliar; não abrange assuntos de ciência profana).
É preciso, porém, frisar que a autoridade de concilio não se justapõe à do
Papa, mas, ao contrário, supõe-na e dela depende. A autoridade que um concilio
exerce, quando devidamente unido ao Sumo Pontífice, este a pode exercer a sós
desde que intencione falar ex cathedra,
isto é, qual mestre da Igreja universal em assuntos de fé e de moral. É, antes,
por extensão da autoridade papal que o concilio ecumênico possui sua
autoridade. Os poderes legislativos de um sínodo universal só começam a existir
desde que o Papa os queira suscitar, convocando os Padres conciliares; só se
estende aos objetos que o Sumo Pontífice deseje propor à assembleia e só dura o
tempo que o mesmo Pontífice lhe queira assinalar (quando morre o Papa durante a
celebração de um concilio, são imediatamente suspensas as atividades deste, até
que o respectivo sucessor as queira oficialmente reencetar).
Errônea, portanto,
é a chamada «teoria conciliarista», posta em voga nos séc. XIV/XV, a qual
apregoava a supremacia do concilio sobre o Papa e a possibilidade de se apelar
para um sínodo universal contra alguma sentença do Sumo Pontífice. O
conciliarismo, oriundo por ocasião do cisma ocidental, foi formulado, à guisa
de definição dogmática, pelos Padres sinodais reunidos nas sessões 3ª e 5ª do
concilio de Constança (março e abril de 1415); apesar de tudo, não se pôde
impor à consciência da Cristandade; os teólogos e canonistas, assim como os
concílios e Papas posteriores, rejeitaram repetidamente tal concepção. Nos séc.
XVII e XVIII a Declaração Galicana de 1682, sob o rei Luis XIV da França, assim
como o famoso sínodo de Pistoia na Toscana (1786), reafirmaram o conciliarismo;
em vão, porém. Pio VI em 1794, interpretando o senso comum dos fiéis, repeliu
como herética a proposição que asseverava ser «o Pontífice Romano o Chefe
ministerial da Igreja», isto é, o chefe comissionado, portador de autoridade a ele
delegada pela coletividade dos cristãos. Após a definição do primado papal no
concilio do Vaticano (1870), tornou-se mais do que nunca evidente a
inconsistência do conciliarismo. Apenas se deve dizer que a autoridade de um
concilio ecumênico, embora não seja superior à do Papa, pode por vezes gozar de
mais prestígio e de ação mais eficaz junto aos fiéis e ao mundo não católico,
em virtude do número e das qualidades pessoais dos prelados que integram uma
tal assembleia.
É precisamente este fato que justifica a oportunidade de se convocar, em
determinadas circunstâncias da história, um concilio ecumênico. Com efeito, foi
geralmente em fases turbulentas da vida da Igreja que se reuniram os bispos do
mundo inteiro a fim de proferir mais solenemente a palavra da Verdade e da
Vida; conseguiram desta forma levar a termo definitivo controvérsias que se
protraíam durante decênios. Os concílios ecumênicos, por conseguinte, sempre
foram suscitados por situações extraordinárias da Cristandade. Ora os tempos
presentes, tão imbuídos de ateísmo e ceticismo, tão castigados pela ruína
material e a lassidão das mentes, parecem constituir uma dessas fases
particularmente árduas da história; torna-se assim muito oportuna, nos dias
atuais, a convocação de um concilio que lembre aos homens de modo mais marcante
as verdades atinentes a Cristo e à Igreja, ou seja, à salvação eterna.
De quanto acaba de ser dito, ainda se depreende não ser necessário que todos os
dogmas de fé tenham sido no passado ou venham a ser no futuro definidos por
algum sínodo universal. Tomariam, pois, atitude pouco condizente com a praxe da
Igreja os católicos que pleiteassem a definição solene, por parte de um
concilio ecumênico, de uma verdade de fé pacificamente professada pela
Cristandade. Para prover, em circunstâncias normais, às necessidades de seu
magistério, a Igreja possui o testemunho dos bispos espalhados pelo orbe e
postos em comunhão com o Romano Pontífice (desde que unânime, este testemunho é
autêntico órgão da verdade).
O concilio de Constança, em sua 39ª sessão (ainda não ecumênica), decretou que
os futuros Papas deveriam de dez em dez anos convocar sínodos universais... Vão
era tal decreto; os Papas não estão obrigados a aceitar determinações de
concílios, pois o seu poder lhes vem diretamente do Divino Fundador da Igreja e
não é sujeito ao controle de algum intermediário. De resto, em breve evidenciou-se
que pouco acertada era a decisão dos Padres de Constança — o que explica que
ela nunca tenha entrado em vigor.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)