PERGUNTE e
RESPONDEREMOS 017 – maio 1959
As Atitudes Ambíguas do Cardeal Antonelli
HISTÓRIA DO
CRISTIANISMO
K. K. (Rio de
Janeiro): “Que dizer do Cardeal Antonelli, Secretário de Estado de Pio IX?
Cardeal que não era padre, tomou atitudes muito ambíguas!”
Antes de se abordar o assunto proposto, parece impor-se breve advertência.
Já mais de uma vez em «P. R.» temos observado que a santidade da Igreja não
coincide com a de seus filhos, pois ela se deve ao Cristo que age no Corpo
Místico, e não aos homens que neste se acham. E — note-se bem — a indefectível
santidade de Cristo existente na Igreja tende por si a se comunicar a toda e
qualquer pessoa que se anexe ao Corpo Místico. Tende a se comunicar, sim,
mediante os ministros respectivos, pois a Igreja é um Corpo visível:
comunica-se, porém, sem se desvirtuar nem contaminar, à semelhança da santidade
do Filho de Deus, que se comunicava aos seus contemporâneos através de uma face
humana tida por vezes como escandalosa (cf. Mt 11, 6.19); Deus quis sempre vir
ao encontro dos homens, servindo-se de instrumentos aparentemente ineptos.
Contudo cada indivíduo encontra na Igreja os meios de santificação oportunos,
na medida mesma em que os deseje. «São a minha fé e o meu amor a Deus que
condicionam decisivamente o meu encontro com Cristo na Igreja, e não a fé e o
amor dos outros a Deus».
É consciente disto que o católico estuda a história da Igreja. Não pretende
averiguar unicamente manifestações de virtude, nem retorcerá os fatos para
dizer que houve santidade onde não a houve. Ao contrário, ao lado dos feitos
heróicos, que não faltam na Igreja, ele registrará os episódios, humanamente
falando, pouco lisonjeiros que se lhe apresentem. Os feitos grandiosos, o
historiador católico os considera como diretos sinais da presença de Deus em
sua Igreja; quanto às verificações sombrias, elas lhe dão o eloquente
testemunho de que realmente é Deus quem sustenta o Corpo Místico, e não a força
ou a eficácia dos homens.
Feita esta observação, voltemos agora a
nossa atenção para a figura do Cardeal Antonelli.
1. Cardinalato e
Sacerdócio
Como se sabe, a hierarquia sacerdotal na Igreja se baseia sobre os graus de
participação do sacerdócio de Cristo mediante o sacramento da Ordem. Compreende:
- quatro
ordens menores: as de ostiário (ou porteiro da igreja), leitor, exorcista
e acólito;
- três ordens maiores: subdiaconato,
diaconato, presbiterado (que se desdobra no episcopado).
O bispo é o sacerdote por excelência, participando em grau máximo do
pontificado de Cristo. O Papa (ou o bispo de Roma) não é, na linha do sacramento,
mais bispo do que o bispo de simples diocese; distingue-se deste, pelo fato de
ser o sucessor de S. Pedro e, por conseguinte, possuir jurisdição sobre a
Igreja inteira, ao passo que o simples bispo possui poderes restritos a
determinada circunscrição eclesiástica e subordinados às diretivas papais. Da
mesma forma, o arcebispo não é mais bispo do que o mero bispo, mas goza de
poderes administrativos mais amplos do que este; ele tem sob sua orientação
alguns bispos chamados sufragâneos (por isto é também dito metropolita, isto é,
titular de uma diocese matriz).
Ao lado da hierarquia sacerdotal acima referida, há uma série de títulos que
podem ser atribuídos aos membros da mesma e que designam alguma função especial
ou uma distinção meramente honorífica. Tais títulos seriam, por exemplo:
- arquidiácono, nome que outrora designava um
dos auxiliares mais eficazes do bispo, mas hoje está destituído de significado
prático;
- arcipreste (= arcipresbítero), presbítero
que dirige uma circunscrição de vários presbíteros;
- cônego, sacerdote «canonicus», isto é,
inscrito no cânon ou catálogo dos sacerdotes de determinada igreja, tendo
geralmente a obrigação de rezar o Ofício Divino no coro de tal Igreja;
- Monsenhor, distinção honorífica.
É nesta lista que se coloca o título de Cardeal,
sobre o qual nos devemos deter um pouco.
Cardinalis é palavra que vem
do latim cardo, cardinis, eixo, e significa o que está
ajustado ao eixo ou está fixo. Na linguagem eclesiástica primitiva, designava o
ministro devotado, de maneira estável, ao serviço de uma igreja. O termo aos
poucos foi reservado para assinalar os eclesiásticos (diáconos e presbíteros)
que exerciam funções litúrgicas ou administrativas nas igrejas de Roma, assim
como os bispos das oito dioceses que cercavam imediatamente a Cidade Eterna
(Velletri, Sta. Rufina, Porto, Albano, Tusculum, Sabina, Palestrina, Óstia).
Cada igreja com suas dependências e cada diocese atribuída a um Cardeal era
chamada «título» (titulus). O
conjunto de Cardeais (bispos sufragâneos ou suburbicários, presbíteros e
diáconos) que serviam em Roma e nos arredores, constituía o Conselho do Bispo
metropolita de Roma, ou seja, do Papa, Conselho que corresponde ao que S. Paulo
em 1 Tim 4,14 chamava «presbitério». Visto estarem muito próximos do Chefe
visível da Igreja, entende-se que se tenha acrescido notavelmente a importância
do colégio (= assembleia) de Cardeais no decorrer dos tempos.
A partir do séc. XI foram sendo criados Cardeais eminentes vultos não italianos
que se sobressaíam por sua virtude ou seu tino administrativo. Do séc. XII em
diante, os Cardeais, sendo mais e mais solicitados por afazeres da Cúria Romana
ou do governo central da Igreja, tiveram que entregar o ministério pastoral nos
respectivos títulos aos cuidados do outros bispos, presbíteros e diáconos. A
denominação «Cardeal» acabou perdendo seu sentido primitivo de pastor de almas,
para designar simplesmente um conselheiro e auxiliar do Pontífice Romano no
governo da Igreja universal. Nessa sua nova acepção, compreende-se que o
conceito de Cardeal já não implicava ordenação sacerdotal ou diaconal; para
receber o título de «Cardeal-diácono», «Cardeal-presbítero» ou «Cardeal-bispo»,
bastava na Idade Média que o candidato tivesse as quatro ordens menores. Também
não havia pré-requisitos de idade; é o que explica que nos séc. XV/XVII tenham
sido nomeados Cardeais de menos de vinte anos; o príncipe Luis de Bourbon,
filho de Filipe V (rei da Espanha, de 1700 a 1746), tornou-se Cardeal aos 8
anos, renunciando posteriormente à púrpura.
Após a promulgação do Código de Direito Canônico em 1918, requer-se que o
Cardeal seja ao menos presbítero, o que implica um mínimo de 24 anos de idade.
O número de Cardeais variou muito no decorrer da história: a princípio,
contavam-se 7 Cardeais-bispos, 25 (desde cedo, 28) Cardeais-presbíteros e 7
Cardeais-diáconos. Desde as determinações de Sixto V em 1586, o Colégio
Cardinalício consta normalmente de 70 membros, dos quais 6 trazem o título de
Cardeais-bispos, 50 o de Cardeais-presbíteros e 14 o de Cardeais-diáconos.
Estes preliminares já são suficientes para esclarecer algo da personalidade de
Antonelli.
2. A figura do Cardeal
Antonelli
1. Giacomo Antonelli nasceu em Sonnino (Itália) no ano de 1806. Filho da
pequena burguesia, herdou de seu pai o senso positivo e prático, assim como o
tino administrativo. Formou-se no Seminário Romano e na Universidade da
«Sapientia» (Roma). Consoante a sua índole própria, estudou muito mais Direito
e questões de administração do que a Sagrada Teologia. Terminados os seus
cursos, entrou na Cúria Romana, onde. conforme preconizava seu pai, exerceu
vários cargos administrativos; aos poucos foi recebendo as ordens sacras até o
diaconato (1840); não passou, porém, além deste grau da hierarquia, como
acontecia, aliás, com os prelados (e até mesmo com os Cardeais) que se
dedicavam à administração temporal; diz-se mesmo que «nunca recebeu formação
clerical propriamente dita» nem jamais se aprofundou na Teologia (P. Richard,
Antonelli, em «Dictionnaire d'Histoire et de Géographie ecclésiastiques» III.
Paris 1924, 832).
Aos 11 de junho de 1847, Pio IX, que apreciava suas qualidades práticas,
conferiu ao diácono Antonelli a sagrada púrpura e confiou-lhe várias funções de
relevo na época difícil em que o movimento de unificação da península itálica
ameaçava seriamente a subsistência do Estado Pontifício, exigindo mais do que
nunca prudência e perspicácia por parte do governo papal. Em breve, o Sumo
Pontífice, que, de um lado, percebia não ter o senso político necessário para
fazer frente à situação e, de outro lado, reconhecia a incontestável dedicação
de Antonelli aos interesses da Santa Sé, resolveu em 1849 nomear Secretário de
Estado (ou primeiro ministro) este seu colaborador. De então por diante, até a
morte (1876), Antonelli exerceu tal função com denodo, empenhando nisto toda a
sua personalidade. Mostrou-se sempre tenaz defensor dos direitos territoriais
da Santa Sé, repetindo invariàvelmente o «Non possumus» («Não podemos ceder») a
todos os que de um modo ou de outro propunham ao Papa Pio IX abrisse mão das
tradições pontifícias.
Para repelir as múltiplas maquinações dos adversários, Antonelli desenvolveu
surpreendente habilidade. Possuía o dom de não se deixar afetar nem pelos
elogios nem pelas censuras, usando sempre «da mais fabulosa amabilidade» para
com os diplomatas (K. von Schloezer, Roemische Briefe. pág. 126); quando
necessário, sabia falar horas a fio sem nada dizer, isto é, sem se comprometer
nem atraiçoar. E, muito embora não se descobrisse, sabia descobrir em torno de
si o que lhe interessava.
Assim escrevia o conde de Cavour a um monarca da época:
«Não confieis tal projeto ao vosso
embaixador em Roma; ainda que este guardasse o segredo, Antonelli é tão fino
que acabaria por adivinhá-lo».
Émile Ollivier, que de perto conheceu o Cardeal Antonelli, observou :
«Ele pouco conhecia aquilo que os livros
contêm, mas era muito erudito na ciência que os acontecimentos ensinam, e,
graças ao acume de seu espírito alerta e desembaraçado, nada ignorava daquilo
que se pode adivinhar» (L’Église et l'État au Concile du Vatican I 505).
É principalmente essa sutileza de espírito que tem provocado julgamentos
diversos sobre a personalidade e a obra de Antonelli: alguns historiadores se
comprazem em exaltar a sua agilidade diplomática; outros, ao contrário, o
repreendem, tomando como herói de romances-caricaturas esse «carbonaccio
(carvoeiro, imagem que na época significava homem de fé muito simples) que
escapara de uma cova de malfeitores...». O fato é que a personalidade do
Secretário de Estado era marcante: quem visse a sua fisionomia descarnada, mas
expressiva, dotada de olhos negros e vivazes, sorriso calmo nos lábios, não a
esquecia facilmente.
2. Pergunta-se agora: que dizer diante das muitas opiniões propaladas sobre o
Cardeal Antonelli?
Em primeiro lugar, reconhecer-se-á que
faltam elementos para se proferir um juízo adequado sobre esse personagem, pois
os. documentos que lhe dizem respeito ainda não foram até hoje devidamente
explorados pelos historiadores. Contudo pode-se aquilatar ao menos um ou outro
traço de sua figura:
1) Não será a
intransigência de Antonelli perante o- movimento nacionalista italiano que lhe
merecerá a censura do historiador objetivo. Os territórios do Estado Pontifício
não somente eram legitimamente possuídos pelo Papado desde o séc. VIII, mas — o
que muito importa — constituíam como que o esteio necessário ao desenvolvimento
da missão espiritual da Igreja; não há neste mundo irradiação de vida
espiritual senão através de corpos; vão seria pretender que a Igreja exerça sua
tarefa no plano sobrenatural sem se lhe reconhecer independência no uso de
certos elementos naturais. Por isto é que nem Pio IX nem seu Secretário de
Estado, nem mesmo algum dos Pontífices posteriores, julgou poder abrir mão da
autonomia territorial da Santa Sé; cf. «P. R.» 2/1958, qu. 8.
Renunciar a tal liberdade seria de certo modo renunciar à. própria missão
sobrenatural da Igreja, missão que homem algum confiou à Esposa de Cristo, mas
que o Senhor entregou a esta, e entregou de maneira inalienável.
2) Antonelli parece ter exercido o «papel de verdadeiro ditador» na
administração do Estado Pontifício (cf. F. Hay- ward, Pie IX et son temps 175),
cortando a iniciativa aos demais ministros e conseguindo habilmente incutir a
Pio IX a orientação política que ele, Secretário de Estado, julgava oportuna. —
Por muito verídica que possa ser esta observação, não se deixará de notar que o
hábil Cardeal nunca chegou a dominar a personalidade de Pio IX, principalmente
quando interesses religiosos estavam em causa. No setor da política,. Pio IX
permitiu ampla ação de Antonelli, pois o Pontífice se sentia tanto menos capaz
quanto mais a saúde lhe ia definhando: «Nos últimos anos de Pio IX, essa
atitude passiva se acentuou e generalizou; o velho Pontífice retirado no
Vaticano parecia viver longe do mundo, embora o dirigisse ainda por suas
admoestações e suas preces» (Richard, 1. c. 836).
Será preciso frisar que o fato de que Pio IX, destituído de gênio político,
tenha confiado a orientação temporal da Santa Sé a um Secretário de Estado
cujas atitudes são discutíveis, nada significa contra a infalibilidade papal?
Esta tem por objeto apenas pontos de fé e de moral, não excluindo possíveis
falhas do Papa em outros setores de atividade. Ademais levando-se em conta
quanto as consciências escapam à penetração dos historiadores, dir-se-á: a
figura ambígua de Antonelli ao lado da de Pio IX não implica necessariamente erro
moral na consciência do Pontífice.
3) O nepotismo ou a proteção dispensada por Antonelli a seus familiares é fato
notório e realmente lamentável. O Secretário de Estado possuía avultadas
posses, inclusive coleções de mármores e pedras preciosas, não, porém, do valor
quase fabuloso que jornais anticlericais apregoaram; conforme o ministro da
Bélgica, a importância deixada por Antonelli, ao morrer, elevava-se a «sete
milhões de francos no máximo» (despacho de 15 de novembro de 1876, Archives du
Ministère des Affaires Êtrangères de Bruxelles, St. Siège, t. XV); E. Ollivier
calcula-a em 423.000 francos-ouro. Esses bens passaram aos familiares do
Cardeal defunto, sem que algo tocasse ao Pontífice, aos pobres ou às Ordens
religiosas de que Antonelli era protetor: «Não há, nos anais do Sacro Colégio,
testamento em que os interesses eclesiásticos e piedosos tenham sido mais
esquecidos» (L. Teste, Préface au conclave 67).
Em conclusão: Antonelli deve ser tido como um dos últimos representantes de um
tipo de prelados não raro na história da Igreja a partir da Renascença até o
século passado: o prelado dado exclusivamente à administração temporal, prelado
que sob as insígnias eclesiásticas trazia mentalidade pouco sacerdotal ou
pastoral, mentalidade ambígua, por vezes inconscientemente felina, mas prelado
que, apesar de tudo, com um gênero de vida mais ou menos leviana, sabia
associar uma fé sincera (tenham-se em vista igualmente Richelieu, Mazzarino).
Houve, sim, tais prelados... O que, porém, deve impressionar o observador, não
é a sua existência, mas, antes, o fato de que desapareceram da história, sem
que a Igreja e o Cristo tenham desaparecido...
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)