Entre os vários gêneros
literários da Bíblia, a
história, por sua extenção, ocupa o primeiro lugar. Esse fato já prova quanto a
história fosse cultivada pelo antigo povo de Israel. O fato é confirmado pelas
fontes de que logo falaremos. E comparando, sob esse aspecto, a Bíblia com a
literatura dos demais povos do Oriente antigo, notaremos o lugar preeminente e
singular que cabe aos Livros Sagrados. A abundante literatura histórica que os
egípcios e os assírio-babilônios,
os dois povos mais
poderosos e evoluídos da antigüidade,
nos transmitiram, consiste
quase toda em documentos, tais como as inscrições dos soberanos, onde se narram
com intenção e estilo laudatórios, as façanhas dos mesmos. Mais tarde, entre os
babilónicos, surge o gênero,
menos oficial e mais
literário, da crônica que registra, ano por ano, os acontecimentos mais
importantes. Nenhum povo, porém, nos legou, como os israelitas, uma série de
escritos que, reunidos, formam como que uma história nacional desde as origens
até os tempos do cristianismo; tampouco quadros históricos de períodos
particulares comparáveis aos dos Juízes e de Samuel.
Rigorosamente falando, devia figurar entre os livros
históricos grande parte do Pentateuco, assinaladamente o Gênesis; estas partes, porém, devido à sua estreita relação com a legislação
mosaica, formam um só corpo com o nome de lei.
Os escritos históricos da Bíblia propriamente ditos Livros
históricos, pela
matéria e pelos caracteres internos, são divididos em três categorias:
V Josué, Juízes, Rute,
Samuel e Reis
relatam a história do povo
de Israel desde a conquista da Palestina até o exílio na Babilônia (586 a.C.);
2-
as Crônicas
e Esdras-Neemias
retomam essa mesma história
sob pontos de vista particulares desde o reino de Davi (as
idades precedentes, desde as origens do homem, estão, como que resumidas, no
princípio 1Crôn 1-9
em tábuas genealógicas) até
à formação da sociedade judaica depois do retorno do exílio (cerca de 430
a.C.);
3? os livros de Tobias, Judite
e Ester
ilustram alguns episódios notáveis dos últimos séculos (VII-V a.C); nos
dois livros dos Macabeus narra-se a resistência dos judeus contra o jugo dos selêucidas e a reconquista
da soberania política (séc. ii a.C).
A série dos livros históricos Josué-Reis,
considerados como grupo autônomo, os hebreus chamam-nos
"Profetas
anteriores", formando com os "Profetas posteriores" (Isaías,
Jeremias, Ezequiel e os
Doze menores) a segunda classe ("os Profetas") da sua Bíblia
tripartida. Os livros históricos contidos na série Crônicas-Macabeus
recebem apreciações
diversas dos hebreus. A maioria deles admitem no seu cânone as Crônicas,
Esdras-Neemias e Ester, mas colocam-nos,
com os restantes Livros
Sagrados, na terceira classe dos "Escritos".
Essa divisão é antiga (atesta-a
já S. Jerônimo no
"Prólogo Galeato" ou prefação à sua tradução de Samuel
e Reisj,
não, porém, primitiva. Nos
manuscritos da antiquíssima tradução grega dos LXX, e nas listas (cânones) das
igrejas ou escritores cristãos, os livros das Crônicas
e, com diferença de ordem,
os outros, são anexados aos precedentes Reis com o título comum de "histórias". Os dois dos
Macabeus nas Bíblias latinas apareciam habitualmente no fim do Antigo
Testamento, mas a conveniência da matéria e razões práticas persuadem-nos, seguindo, além disso, o exemplo de tradutores modernos católicos, a não
separá--los do grupo dos outros livros de caráter narrativo,
e o leitor os encontrará, quase em ordem cronológica, depois de Judite.
Quase todos os livros históricos da Bíblia indicam, ainda
que parcamente, uma ou mais fontes escritas donde tiraram o material e às quais
remetem o leitor para maiores e mais amplas informações (Num
21,14 o livro das batalhas do Senhor; ib., 27
os poetas). Tornam-se mais freqüentes nos livros seguintes, especialmente nos Reis
e Crônicas.
Desde os primeiros tempos
da monarquia (2Sam 8,16),
entre outros oficiais do
rei encontramos um "monitor" ou "chanceler" encarregado de registrar os acontecimentos do reino (cf.
1Rs 11,41). Daí o encontrarem-se
freqüentemente alusões a tais memórias dos reis de Judá e de Israel desde 1Rs
14,19-29 até 2Rs
24,5. O autor das Crônicas
cita escritos de vários profetas:
Samuel, Natan, Gad (1Crôn
29,29), Aia, Ado (2Crôn
9,29), Semeia, Jeú, Hozai (ib. 12,15;
20,34;33,19). O primeiro deles
provavelmente é o livro canônico
de Samuel;
os outros se perderam, excetuando-se,
talvez} alguma parte incorporada aos livros canónicos dos
Reis.
Comparando-se as passagens paralelas dos livros das Crônicas
e dos Reis
— quer os Reis
tenham servido de fonte ao redator das Crônicas
ou quer ambos haurissem duma
fonte comum — observamos que a fonte geralmente é transcrita literalmente
conforme os hábitos da historiografia semítica, numa época que não
conhecia os direitos de propriedade literária. Nesse caso, o autor sagrado,
apropriando-se das palavras da fonte, torna-as expressão do seu próprio
pensamento e, através do carisma da inspiração divina, que não se opõe ao uso
de fontes profanas, imprime-lhe o selo da sua infalibilidade.
Pode acontecer que o autor sagrado julgue útil citar um
documento como notícia interessante deixando, porém, quanto à exatidão dos
fatos, a responsabilidade pela afirmação ao autor primitivo. Isto pode-se
sempre admitir no caso de citação explícita, isto é, com a expressa designação da fonte, como nas cartas
citadas em Esdras 4,7-16;
IMac 12,5-23; 2Mac
11,16-38. Não havendo indicação da
fonte, e, portanto, quando a citação é implícita, requer-se maior circunspecção. Para se afirmar que o autor
sagrado não garante a verdade do que refere, a Pontifícia Comissão Bíblica (13
de fev. de 1905) exige duas condições,
duas provas com argumentos sólidos: V que o autor inspirado realmente cite um
documento ou uma palavra de outrem; 2° que não pretenda
responsabilizar-se
pelo conteúdo da citação, mas deixá-lo
no seu valor original.
Para apreciar devidamente os livros históricos do Antigo
Testamento é mister levar em conta a finalidade dos autores sagrados, bem como
o espírito que os animava ao escreverem seus livros. Os escritores bíblicos não
pretendem escrever história propriamente dita, nem narrar para satisfazer a
sede de saber. Eles querem evidenciar a mão de Deus no dirigir a sociedade
humana segundo as altas finalidades de sua Providência, especialmente de acordo
com a religião e com a salvação do gênero humano. A sua historiografia é
religiosa e não profana. Daí a escolha, sensível de modo especial, nos livros
dos Reis e
das Crônicas, de poucos fatos dentre a enorme quantidade de acontecimentos
que, mesmo limitando-se à Palestina, decorreram nos largos tempos abrangidos
pela sua narrativa; enquanto se atribui um papel importante aos profetas,
ministros e porta-vozes de Deus, junto do seu povo. Segue-se que não devemos
esperar dos hagiógrafos
um quadro completo da sociedade
israelita da época. Apesar disso oferecem sempre excelente material para a
reconstrução da história profana, completando os dados transmitidos pelos
documentos extra-bíblicos, principalmente as inscrições cuneiformes dos reis
assírios e babilónicos,
onde se registram muitos fatos e
personagens dos livros dos Reis.