PERGUNTE E RESPONDEREMOS
015 – março 1959
Fundamentos da
Crisma
DOGMÁTICA
Antônio de Botucatu,
Penna e Zuleika de Belo Horizonte perguntam:
“Quais os fundamentos bíblicos do sacramento da
Crisma? Não será este uma instituição meramente humana?”
A resposta à
questão decorrerá de uma série de observações, que assim se podem concatenar:
1.
A Sagrada Escritura, tanto no Antigo como no Novo Testamento, promete a efusão
do Espírito Santo nos tempos messiânicos.
Advertência
preliminar: o Espírito ou Sopro (ruach, em hebraico) de Javé, no Antigo
Testamento, significa geralmente a força de Deus a suscitar vida e obras dignas
do Altíssimo através da história sagrada. Como se entende, os israelitas, não
tendo conhecimento do dogma da Ssma. Trindade, ainda não concebiam o Espírito
como Pessoa Divina.
Assim já nos
primórdios da criação o Espírito aparece sobre o caos do mundo como que para
acalentá-lo e nele fomentar a vida; cf. Gên 1,1. No decorrer dos tempos, o
Espírito se comunicava aos homens chamados para realizar grandes feitos: os Juízes
(cf. Jz 3,10; 6,34; 11,29), Saul (cf. 1 Sam 11,6), Moisés (cf. Núm 11,17), Davi
(cf. 2 Sam 23,2), Elias (cf. 4 Rs 2,9), os profetas em geral. Por excelência,
como se dirá mais abaixo, dever-se-ia derramar sobre a natureza humana do
Messias, chamado a ser Rei, Sacerdote e Profeta em grau eminente (cf. Is 11,2).
Na plenitude dos
tempos, a plenitude do Espírito Santo devia ser outorgada não somente a
indivíduos privilegiados, mas a todos os justos. É o que prediz muito
claramente o profeta Joel: num quadro dramático, Javé promete «derramar seu
Espírito sobre toda carne», de modo a renovar o mundo (3,1). Ezequiel, por sua
vez, anunciava a renovação interior dos fiéis mediante o Espírito de Deus como
característica da era messiânica; dando o seu Espírito ou um novo princípio de
vida aos homens, Javé os tornaria observantes da Lei Divina, portadores de
frutos de justiça e santidade, que o Espírito faria germinar à semelhança da
água que toma fecunda a terra (cf. Ez 36,26s ; 37,14 ; 39,24.29 ; Is 32,15-19;
Zac 12,10).
A efusão do
Espírito devia efetuar-se por intermédio do Messias. Este em sua natureza
humana seria cumulado dos dons do Espírito Santo, a fim de realizar a sua obra
de salvação (cf. Is 11,1-3 ; 42,1 ; 61,1).
No Novo Testamento,
Cristo aparece realmente como o depositário do Espírito Santo: sobre a sua
santíssima humanidade desceu o Espírito no dia do batismo (cf. Mt 3,16),
penetrando-a à semelhança do óleo com que se pratica uma unção; dai o nome de
Ungido (= Christós, em grego; Mashiah, em hebraico) que toca a Jesus: «O
Espírito do Senhor está sobre mim, pois que me consagrou por uma unção», diz o
Salvador no inicio da sua vida pública, citando Is 61,1 (cf. Lc 4,17-22).
E note-se como em torno
de Jesus, justamente no limiar da era messiânica, como que para assinalar a
presença do Ungido, surge um grupo de figuras ricamente agraciadas pelo Espírito
Santo: Elisabete (cf. Lc 1,41-43), Zacarias (cf. Lc 1,67), João Batista (cf. Lc
1,15), Maria Santíssima (cf. Lc 1,35), Simeão (cf. Lc 2,25-32), a viúva Ana
(cf. 2,36-38)...
Antes de sua volta
ao Pai, Jesus, confirmando as predições do Antigo Testamento, prometeu enviar a
todos os fiéis o Espírito Santo, o qual se tornaria o Advogado ou Consolador (=
Paráclito) e o Mestre interior de cada um (cf. Jo 7, 37-39; 14,16s. 26 ; Lc
24,49 ; At 1,4). Pelo Espírito e no Espírito de Deus é que haviam de viver os
discípulos de Cristo (cf. 1 Cor 12,3).
2.
O dom do Espírito foi realmente outorgado na plenitude dos tempos por obra do
Messias.
Enquanto Jesus não
estava glorificado, o Espírito ainda não era dado, diz o Evangelista S. João
(cf. 7,37), pois na verdade o Espírito Santo devia ser enviado aos fiéis não
somente como dom do Pai Eterno, mas também como fruto da obra da Redenção (o
Espírito devia como que jorrar da Ssma. humanidade de Cristo batida ou ferida
contra o madeiro da cruz, à semelhança da água que no deserto emanou da rocha
batida pela vara de Moisés a fim de dessedentar o povo ; cf. Núm 20,7-11; 1 Cor
10,4). Consequentemente, logo depois da Ascensão os dons do Espírito Santo
começaram a se derramar sobre os fiéis.
Já no dia de
Pentecostes, após a descida do Paráclito sobre os Apóstolos, São Pedro podia
declarar que a predição de Joel se tinha cumprido sob a forma de primícias (cf.
At 2,17-21). A realização plena do oráculo devia abranger a cada um dos
cristãos em particular, como acrescentava o Apóstolo à multidão que,
impressionada pelo portento de Pentecostes, lhe perguntava o que devia fazer:
“Arrependei-vos;
que cada um de vós se faça batizar em nome de Jesus Cristo para a remissão dos
pecados; recebereis então o dom do Espírito Santo, pois em favor de vós, de
vossos filhos e de todos os que estão longe é que foi feita a promessa” (At
2,38s).
Por conseguinte,
após o dia de Pentecostes, através dos tempos, o Espírito Santo havia de ser
comunicado aos fiéis... Ora a Escritura mostra como realmente no decorrer de
sua obra missionária os Apóstolos, mediante preces e imposição das mãos,
comunicavam o Espírito Santo a todos os que abraçavam a fé (a imposição das
mãos é rito já usado no Antigo Testamento para simbolizar a aplicação ou a
transferência de um dom espiritual ; cf. Num 11,16s.24; 27, 18-20).
Três são os textos
mais importantes que a este propósito ocorrem:
a) At 8,4-25. Os Apóstolos em
Jerusalém ouviram que na Samaria o diácono Filipe anunciara o Evangelho e
batizara muitos recém-convertidos, os quais, porém, não haviam recebido o Espírito
Santo (donde se poderia deduzir que o diácono não tinha a faculdade de O
conferir). Enviaram então àquela região Pedro e João, os quais, orando e
impondo as mãos, comunicaram o Espírito Santo aos fiéis. Aconteceu, porém, que
Simão Mago, tendo presenciado o acontecimento, quis comprar do Apóstolo Pedro o
poder de dar o Espírito; ora São Pedro não lhe respondeu que não se efetuava
comunicação do Espírito, nem que esta era independente de algum rito, mas
simplesmente que o poder solicitado não podia ser adquirido a dinheiro.
b) At 19,1-7. Em Éfeso São
Paulo encontrou um grupo de doze discípulos, aos quais perguntou se já haviam
recebido o Espírito Santo. Ao saber, porém, que só tinham sido batizados no batismo
de João, completou-lhes a catequese e mandou-os batizar em nome de Cristo; a
seguir, por imposição das mãos, comunicou-lhes o Espírito Santo.
Estes dois
episódios sugerem algumas conclusões: 1) a comunicação do Espírito por meio de
preces e imposição das mãos é rito diferente do batismo, podendo este ser
administrado sem aquela; 2) o ministro do batismo nem sempre está habilitado a
proceder à imposição das mãos; esta parece reservada aos chefes da comunidade;
3) muito pouco plausível seria admitir que a comunicação do Espírito Santo
tenha sido, por instituição dos homens, associada à imposição das mãos
(criatura alguma poderia fazer que tal efeito sobrenatural dependesse de uma
cerimônia natural); é de supor, portanto, que Cristo mesmo haja instituído o
rito comunicador do Espírito Santo, rito verdadeiramente sacramental.
c) Hebr 6,1-6. O autor sagrado
propõe-se recordar aos leitores os artigos fundamentais referentes a Cristo, ou
seja, as verdades que eram ensinadas aos catecúmenos logo que entravam no seu
currículo cristão (cf. 5,11-14). Seis são esses artigos, que o Apóstolo agrupa
em três pares:
- o abandono das
obras mortas e a fé em Deus,
- a doutrina sobre
os batismos e a imposição das mãos,
- a ressurreição
dos mortos e o juízo eterno (6,1s).
Que será a
imposição de mãos aqui mencionada ? É, sem dúvida, um rito intimamente
associado ao batismo, sem, porém, se confundir com este (como a ressurreição e
o juízo final, a penitência e a fé estão intimamente unidas entre si, mas não
se identificam mutuamente). Tem por efeito (delicadamente insinuado em 6,4) dar
participação no Espírito Santo. Trata-se, como bem se crê, de rito idêntico ao
que é referido no livro dos Atos (cc. 8 e 19), de mais a mais que em Hebr 6 é
enumerado dentro da mesma série que ocorre em At 2,38s: penitência, fé,
batismo, imposição das mãos (cf. pág. 103 deste fascículo).
A alusão aos
«batismos» (no plural) significa que todo catecúmeno conhecia o valor próprio
do sacramento cristão, distinguindo-o bem do batismo de João e dos demais ritos
de ablução e purificação que estavam em uso entre os judeus.
Ora note-se que em
Hebr 6 a imposição das mãos subsequente ao batismo e comunicadora do Espírito
faz parte do fundamento (themélion) da religião cristã. O fundamento, porém,
não pode provir senão do Fundador... Donde se segue que o mencionado rito se
deve à instituição de Cristo mesmo; de resto, os Apóstolos confessavam que não
eram senão «os ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus» (1
Cor 4,1).
Eis, porém, que uma
dificuldade se põe: não se poderia dizer que a imposição das mãos na antiga
Igreja era destinada apenas a produzir dons extraordinários (glossolalia,
profecia, etc.), como se lê em At 19? As subsequentes gerações cristãs não a
terão indevidamente transformado em instituição ordinária? — A dúvida se
elucida se consideramos, de um lado, que Cristo prometeu o Espírito a todos os
fiéis, sem restrição de época; de outro lado, a imposição de mãos, enumerada em
Hebr 6 juntamente com a penitência, a fé, o batismo..., aparece como
instituição fundamental e, por isto, permanente do Cristianismo; ao contrário,
os carismas ou dons extraordinários são graças esporádicas que, na antiga
Igreja, eram dadas com frequência em vista de rápida difusão do Cristianismo;
por isto, independentemente de dons milagrosos, a comunicação do Espírito por
imposição das mãos é necessária na Igreja, destinando-se sempre a produzir o
carisma ou o dom máximo, cujos efeitos são, muitas vezes, invisíveis, a saber;
o dom da caridade (cf. 1 Cor 12,31).
3.
E quando terá Cristo instituído o rito de comunicação do Espírito?
Os teólogos propõem
mais de uma sentença sobre o assunto. A resposta mais provável, porém, parece
depreender-se das seguintes considerações.
O episódio da
descida de Cristo nas águas do Jordão (Mt 3,13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3,21s) foi em
todos os tempos considerado como uma das cenas mais importantes da vida de
Jesus. Muitos Padres e escritores antigos afirmaram ter sido então instituído o
sacramento do batismo (pois Cristo por seu contato santificou as águas),
sentença que exegetas não-católicos hoje em dia igualmente professam.
Tenha-se em vista o
texto:
“Naqueles dias
Jesus de Nazaré veio da Galiléia e foi batizado por João no Jordão. E, logo que
saiu da água, viu os céus abertos e o Espírito que, como pomba, descia sobre Ele,
e dos céus fez-se ouvir uma voz: 'Tu és meu Filho bem-amado, em Ti me comprazo'
” (Mc 1,9-11).
Como se vê, no
episódio acima o Evangelista distingue dois atos sucessivos: a ablução ou o
contato de Jesus com as águas, e a descida (poder-se-ia dizer: a unção) do
Espírito que se deu quando o Senhor emergiu e que sagrou aos olhos do mundo
Jesus como Rei, Sacerdote e Profeta dos tempos messiânicos (cf. Lc 4,18 ; At
10,18). Ora a cena que inaugurou a vida pública de Cristo é certamente tipo do
que se dá em toda iniciação cristã (o cristão é, sim, um outro Cristo); na base
desta observação distinguir-se-ão também dois atos no processo da iniciação
cristã: a ablução do catecúmeno e a descida do Espírito Santo, ou seja, o
sacramento do batismo e o da confirmação (embora estes dois ritos tenham sido
frequentemente administrados durante a mesma função litúrgica na antiguidade, o
livro dos Atos dá testemunho de que também podiam ser separados por certo
intervalo de tempo). — Em conclusão, pergunta-se : Cristo, na cena inaugural de
sua vida messiânica deixando entrever o batismo e a unção dos fiéis por
comunicação do Espírito Santo, não terá ao mesmo tempo instituído esses dois
ritos sagrados? Enquanto Jesus não estava glorificado (cf. Jo 7, 37-39), o
sacramento da crisma não podia ser apresentado de maneira mais concreta; era
preciso que viesse a solenidade de Pentecostes para que se pudesse explicitar
todo o conteúdo da cena do Jordão.
Resta, porém, ainda
uma questão atinente à matéria do sacramento.
4.
Se a Sagrada Escritura refere que a comunicação do Espírito se fazia por
imposição das mãos, como se justifica a unção hoje praticada juntamente com
aquela?
Não há dúvida, é sentença comum entre os
teólogos que a matéria próxima do sacramento da confirmação consta de imposição
das mãos, impressão do sinal da cruz sobre a fronte do cristão e unção com óleo
sagrado.
Há autores que
querem justificar tal sentença dizendo que os Apóstolos efetuavam a unção
juntamente com a imposição das mãos, mas que S. Lucas, cioso de brevidade nos
Atos dos Apóstolos, quis mencionar apenas um dos dois ritos. Tal explicação não
deixa de parecer um tanto artificiosa. Reconheça-se o silêncio da Escritura,
sem formular alguma interpretação a respeito. O fato é que do séc. III em
diante os escritores (Tertuliano, em 200 aproximadamente; Hipólito Romano, em
220...) atestam a prática da unção. Pois bem, tenha estado em vigor entre os
Apóstolos ou não, esta era sugerida por textos da S. Escritura mesma que
apresentam o Espírito Santo como o Bálsamo, e a comunicação do Espírito como a
unção com que são agraciados o Redentor e os remidos (daí os nomes de Cristo =
Ungido, e cristãos...).
Assim notem-se,
além do trecho de Lc 4,18 (citado à pág. 102 deste fascículo), os dizeres de S.
Pedro em At 10,38: “Deus ungiu (Jesus de Nazaré)] com o Espírito Santo e
poder»; o que quer dizer: o Pai derramou sobre a santíssima humanidade de Jesus
a plenitude dos dons do Espírito Santo, de sorte que o Redentor, como homem,
vivia continuamente sob o impulso do Espírito de Deus. A ideia, aliás, de que o
Salvador seria o Ungido por excelência se deriva da noção de que Ele se
tornaria eminentemente Rei, Sacerdote e Profeta e, por conseguinte, deveria
receber uma unção, como os reis e sacerdotes a recebiam no Antigo Testamento
(cf. 1 Sam 10,ls; Ex 29,30). No que diz respeito aos cristãos, observe-se que
os Apóstolos apresentam a comunicação do Espírito como sendo «a unção que
provém do Santo» (1Jo
2,20.27; cf. 2 Cor 1,21).
Foram essas
concepções que sugeriram aos antigos chefes das comunidades cristãs
simbolizassem a comunicação do Espírito Santo não somente mediante a imposição
das mãos, mas também mediante uma unção com bálsamo sagrado; o cristão
reproduz, sim, a vida do Cristo; é, espiritualmente, um «ungido». — A praxe da
unção, desde que promulgada pela voz oficial da Igreja, goza de indiscutível
autoridade para o católico, pois não é necessário que todos os ritos do culto
estejam explicitamente delineados nas páginas da Sagrada Escritura (a respeito
da Tradição como fonte da Revelação, veja-se «P. R.» 7/1958,qu.
2).
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)