PERGUNTE E
RESPONDEREMOS 554/agosto 2008
Escatologia
Os acontecimentos finais:
“ESCATOLOGIA DA PESSOA”
Por Renold Blank
Em síntese: O autor trata da morte, do purgatório, da ressurreição
dos corpos e do juízo final propondo idéias que ele procura fundamentar na
Escritura e na Tradição. Não leva na devida conta o Magistério da Igreja.
Apresenta assim uma obra imaginosa e "simpática" porque dissipa o que
possa impressionar negativamente um leitor não iniciado em Teologia.
Renold Blank é autor bem conhecido no Brasil por seus escritos
referentes a escatologia. Um dos mais expressivos do seu pensamento é
intitulado "Escatologia
da Pessoa" ([1]), adotado como manual de
estudantes em certos institutos. O livro destoa de quanto a Igreja ensina sobre
tais assuntos e merece sérias restrições, que passamos a propor. O tema central
do livro é a morte; a esta se associam, na mente de Blank, lições antropológicas, o
conceito de purgatório, os de juízo final, da ressurreição corporal, do inferno
e do céu. Tudo isto teria lugar na hora da morte do indivíduo.
1. O conteúdo do livro
Um
tema básico para R. Blank é a antropologia.
O autor julga que corpo e alma
não se separam nem são distintos entre si. A clássica concepção segundo a qual
corpo e alma são duas substâncias incompletas que se unem para realizar um todo
substancial é tida como dualista, oriunda das escolas filosóficas gregas pré-cristãs; a
matéria seria má e o espírito, por si mesmo, bom.
"Para a Bíblia, o homem é
uma unidade que não pode ser dividida em dois princípios, chamados corpo e
alma. Conseqüentemente também não é possível que, na morte, uma alma se separe
do corpo" (p. 81).
Em conseqüência, quando uma
pessoa morre, morre tudo o que ela é, não resta em vida a alma espiritual, que,
na clássica teoria, é imortal.
E, para que não haja hiato
entre a morte e a ressurreição, esta ocorre logo depois da morte, efetuando uma
personalidade idêntica à falecida, mas com forma corpórea invisível aos nossos olhos.
Já que, ao falecer, o
indivíduo entra logo na eternidade, ele presencia imediatamente o juízo final
sem ter que esperar, pois não há futuro na eternidade.
Na hora da morte, Deus dá
ocasião a cada um de afirmar sua fé e entregar-se ao Senhor; caso o indivíduo
aceite essa dádiva de Deus, ele faz aí seu purgatório, repudiando tudo o que
ele reconhece ter sido menos correto em sua vida terrestre; assim chega a
pessoa ao seu estado definitivo, configurando-se plenamente ao projeto de Deus;
em virtude dessa "metamorfose" a pessoa ganha o céu; caso não aceite
a oferta da graça divina, será o inferno. R. Blank dá a entender que a
misericórdia de Deus superará as resistências do homem, fazendo que ele aceite
a graça da conversão, sem o que lhe tocará o inferno ou a eterna separação de
Deus.
Eis em poucas palavras o pensamento de R. Blank no livro citado. Reflitamos a
propósito.
2. Analisando atentamente
Proporemos considerações sobre
a temática em foco:
2.1. Corpo e alma
Temos abordado este assunto repetidamente em PR. Façamo-lo brevemente a seguir.
A distinção entre corpo e alma
é clássica no pensamento cristão. Já os judeus distinguiam dois elementos componentes do
homem: o corpo ou eventualmente o cadáver, que era sepultado no túmulo dos
pais, e um núcleo da personalidade que sobrevivia adormecido na região
subterrânea dita kai scheol. Sob o influxo da filosofia grega, essa dualidade
passou a ser dita "corpo e alma" (soma e psyché); ambos são criaturas boas de
Deus que as fez complementares entre si. É necessário distinguir bem.
Dualismo:
dois
princípios antagônicos entre si - o que não é bíblico.
Monismo: um só princípio, como admitem Blank e sua escola.
Entre os dois extremos há a dualidade, que admite dois princípios
distintos entre si e separáveis, como corpo e alma, feitos não como antagônicos, mas
como complementares.
O fato de que a filosofia
grega já no século V a.C. falava de corpo e alma, não quer dizer que esta
teoria seja pagã ou falsa. Ela foi incorporada ao pensamento cristão
desde cedo e recebeu de S. Tomás de Aquino a sua formulação própria derivada da teoria do
hilemorfismo. Se não há alma espiritual no homem distinta do corpo, o ser
humano é um bloco material que poderia ser assemelhado a um macaco
aperfeiçoado.
2.2. Tempo e eternidade
A alma humana que deixa o
corpo quando este não lhe oferece mais as condições de exercer suas funções
vitais, não entra na eternidade. Esta não tem entrada; é a posse simultânea de
todo o ser vivente; só Deus é eterno e vive a eternidade, porque Ele não
teve começo nem terá fim; a alma humana tem começo, mas não terá fim; ela é,
portanto, imortal e vive o chamado "evo". Este é o "tempo
psicológico", no qual há uma sucessão de atos da inteligência e da
vontade.
Aliás, às pp. 246s do seu livro, R. Blank parece cair em contradição
consigo mesmo, professando a teoria clássica dual. Com efeito, à p. 246 refere-se
aos que morrem em pecado grave sem arrependimento e diz:
"É com estas imagens que
se pode tentar descrever a situação de morte sem ressurreição em Deus".
À p. 247 lê-se: "Todo ser
humano pode vivenciar tal situação na morte, pois como ser espiritual, o âmago
da pessoa não pode morrer. Sem a ajuda de Deus, porém, esse ser interior também
não pode sair de sua situação estática de morte, onde nada mais poderá ser
mudado".
Estes dizeres afirmam que no homem existe um
ser espiritual que não morre nem ressuscita gloriosamente, mas continua a viver
afastado de Deus. A incoerência de Blank nesta passagem bem manifesta quanto distante da
realidade é o monismo "corpo-alma" professado pelo autor.
2.3. Juízo final
Se após a morte já não existe
a categoria "termo" e na eternidade não há futuro, compreende-se que,
para Blank,
o ser
humano falecido e ressuscitado já contempla, logo depois de morrer, o juízo
final da história.
Esta afirmação é totalmente
inconsistente, pois quem morre em 2008, por exemplo, como poderá contemplar
irmãos que ainda não nasceram e, por conseguinte, não têm um teor de vida a
apresentar ao Juiz universal. Este postulado errôneo é conseqüência da não
distinção entre evo e eternidade. Não cabe dentro de um raciocínio sereno
e objetivo.
2.4. Purgatório
Segundo Blank, se
alguém não consegue no decorrer desta vida realizar plenamente o projeto que Deus lhe traçou
desde toda a eternidade, na hora da morte Deus lhe dá a graça para atingir a
plena realização de sua existência.
Diz Blank:
"Na morte Deus
oferece à pessoa humana aquilo que lhe falta. Deus quer acrescentar a graça
àquilo que lhe falta; está disposto a oferecer ao homem de graça, também na
morte tudo aquilo que este lhe ficou devendo... Fica dentro da liberdade humana
aceitar ou não esta proposta" (p. 202s).
Tal graça é dada a
todos - justos e pecadores - podendo ser a graça da
conversão do pecado grave para o estado de filho de Deus. Para todos, é um
processo doloroso, pois significa a destruição definitiva do homem velho, com
seu egoísmo, sua vaidade, seu orgulho... Esta purificação nada tem que ver com
uma câmara de tortura cósmica, onde os pecadores são purificados pelo fogo ou
por outros meios.
"A última
conversão na morte é um ato doloroso, de maior ou menor intensidade. Na
linguagem tradicional, ela foi denominada o Purgatório" (p. 208s).
Quem aceita tal graça
na hora da morte vai para o céu, quem não a aceita, vai para o inferno.
Estas idéias podem ser muito belas,
mas não correspondem à doutrina oficial da Igreja, que pode ser assim resumida:
Todo pecado, mesmo
depois de perdoado pelo sacramento da Penitência, deixa no indivíduo as suas
raízes, a tal ponto que, mesmo muito arrependido, o pecador pode voltar (e
muitas vezes volta) a cometer os mesmos pecados. Ora, somos chamados a ver Deus
face-a-face -
o
que implica total pureza de alma, pois perante Deus não pode subsistir a mínima
sombra de pecado. Por conseguinte, o pecador, mesmo já absolvido, terá que
eliminar as raízes do pecado que lhe restam, ou nesta vida (mediante a ascese)
ou na vida póstuma (no Purgatório) sem fogo nem diabinhos, mas numa atitude
profunda de repúdio a qualquer traço de pecado; esta purificação é póstuma;
durará mais ou menos do evo, de acordo com o maior ou menor arraigamento do pecado.
A conversão do pecador pode ocorrer
imediatamente antes da morte, mas não após a morte.
Blank não se refere às impurezas que
impedem de ver Deus face-a-face; encara o purgatório de modo diferente da visão
clássica, preocupado que está com a afirmação de que há salvação para os mais
endurecidos pecadores, que na hora da morte recebem a graça do
"purgatório" por Blank concebido.
2.5. Juízo de Deus
Ao falar de Deus como Juiz, R. Blank imagina-o sempre
misericordioso e pronto para perdoar. Na verdade, muitos textos bíblicos abonam
esta concepção (ver SI 51; 103; Os 11...), mas não se podem esquecer outras
passagens bíblicas em que o Senhor exerce a justiça (cf. entre outros segmentos
os capítulos de Jr 1 -17, em que o Senhor prediz a vinda dos babilônios a Judá
para punir o povo idólatra).
Com outras palavras diz Blank: "Na morte, o homem se
encontra com Deus... Jesus, porém, é aquele que sempre interveio em nome de
todos os que fracassaram, Aquele que veio para salvar, e não para condenar,
Aquele que exige de seus discípulos que eles perdoem sempre" (p. 179).
Mais, diz o autor: "O grito pela justiça é motivado pela atitude farisaica... É muito interessante constatar
que o grito pela justiça divina se ouve sempre na boca dos piedosos, nunca dos
pecadores. São sempre os bons cristãos, os que freqüentam as missas dominicais,
os fiéis aos mandamentos e as leis que exigem justiça" (p. 186).
É o fato de Deus ser
Amor-Justiça que dissipa a idéia de Deus ser "Papai Bonachão", o Deus socorrista, o Deus que abona a permissividade dos costumes.
2.6. Inferno
Eis
como Blank
conceitua
o inferno:
"Situação impossível e
contraditória em sua essência. Uma morte viva consciente, sem a mínima
possibilidade de poder providenciar uma saída pelos próprios recursos,
entorpecido e fixado em si mesmo.
São imagens paradoxais que
contêm exatamente os elementos daquilo que as transcrições tradicionais chamam
de "inferno" (p. 246).
Blank pergunta se existe realmente
alguém em estado de pecado endurecido que se condene a ficar longe de Deus.
Enfatiza o amor de Deus, que não deveria suportar o sofrimento de uma criatura
sua por tempos sem fim. Pergunta também se a justiça de Deus não é diferente daquela dos homens
(haja visto a parábola de Mt 20, 1-16, que na verdade não quer insinuar diferente
conceito de justiça).
Em suma, o autor diz
tudo o que pode para insinuar que os pecadores mais empedernidos podem chegar a
salvação na hora da morte.
2.7. Céu
Céu é plenitude da
vida, reencontro com os parentes e amigos falecidos, marcado pela união íntima
com Deus. Blank é sóbrio e correto ao falar do céu. Apenas se lhe pode observar
que seria mais adequado falar da visão de Deus face-a-face como primeira fonte
de bem-aventurança e, só depois, mencionar o reencontro com familiares e
amigos.
O livro termina
recomendando a responsabilidade de cada indivíduo frente ao curso da história
universal. É preciso "que o amor seja posto em prática em vez de ideologia
de ameaça" (p. 318).
3. Conclusão
O livro de R. Blank é
todo inspirado pelo desejo de dissipar o medo que freqüentemente as pessoas têm da
morte e do além; a intenção é muito boa, mas para atingir tal efeito, não é
necessário construir uma nova escatologia imaginosa e infundada na Escritura e
na Tradição (por mais que Blank queira assim fundamentá-la).
Os fundamentos de Blank são
1) a não distinção entre
corpo e alma, separáveis entre si e
2)
a não aceitação de um meio-termo entre tempo e eternidade chamado
"evo". Ora a razão filosófica exige estas duas distinções e não
somente a fé as propõe. Com efeito, a fé as professa conforme Carta da
Congregação para a Doutrina da Fé publicada e comentada em PR 238/ 1979, pp. 399ss e PR 239/1979, pp. 456ss.