PERGUNTE E RESPONDEREMOS 530 – agosto 2006
Na
presença de Deus:
QUIETISMO:
EM QUE CONSISTE?
Em
síntese: Uma atitude que se encontra nos homens
religiosos através da história é o esvaziamento da alma, que procura manter-se passiva
diante da Divindade, para que o dom de Deus realize a união dessa alma com o
próprio Senhor. Tal forma de
piedade assume modalidades diversas nas religiões da índia, na filosofia grega
e no Cristianismo. No século XVII o assim chamado "Quietismo" suscitou
sérias controvérsias, encabeçado pelo Pe. Miguel de Molinos, cujas ideias extremadas
foram condenadas pelo magistério da Igreja; Molinos, homem profundamente
piedoso, retratou-se e faleceu em paz com a Igreja.
Chama-se
Quietismo um tipo de espiritualidade que consiste em esvaziar a alma de
qualquer cogitação e desejo, para que a graça de Deus nela possa trabalhar sem
obstáculos e levá-la à perfeita união com Deus. Tal atitude foi desviada para
proposições heréticas entre os fiéis católicos do século XVII, suscitando a
condenação da Santa Sé. Nas páginas subsequentes proporemos breve histórico de
tal atitude, que tem seus antecedentes fora do Cristianismo; após o quê
consideraremos o pensamento quietista do século XVII.
1. Percorrendo
a história...
1.1.
Fora do Cristianismo
Já
o Bramanismo na índia manifestava o anseio de união ou mesmo identificação com
a Divindade, a fim de que o núcleo da personalidade humana fosse absorvido no
grande Todo mediante a renúncia a qualquer esforço para alcançar tal meta.
No
Budismo, principalmente os monges cultivam tal atitude: exercitam a meditação,
que consiste em apagar qualquer cogitação durante algumas horas afio - o que
por vezes redunda em esgotamento nervoso.
No
Ocidente, a filosofia estoica, pouco antes da era cristã, apregoava a apátheia
ou extinção de qualquer paixão ou afeto para chegar à
perfeita sabedoria. Tal estado de alma era reconhecido como algo de difícil e
raro.
No
Neoplatonismo, ao iniciar-se a era cristã, proclamava-se o êxtase tido como
"banho de luz", mediante o qual a alma chega à visão do Uno e se
funde com Ele, esvaziada de qualquer sentimento pessoal.
1.2.
No Cristianismo
A
primeira manifestação de semelhante atitude ocorre no século V entre os messalianos
ou euquitas (orantes).
Eram homens e mulheres que podiam viver em mosteiros; alguns dormiam nas praças
públicas durante o verão. Estavam impregnados da ideia de que existe uma luta
entre Satanás e o Espírito. O pecado corrompeu totalmente a natureza humana, a
tal ponto que nem o Batismo a pode regenerar. O único meio eficaz para debelar
o mal é a oração contínua, que pode atingir e extirpar as raízes do pecado
existentes na alma humana; esta pode chegar, assim conduzida, à imortalidade
feliz e à impecabilidade - o que equivale a identificar-se com a própria
natureza divina, fruto da habitação do Espírito Santo na alma do orante. A
hipótese de serem impecáveis permitia aos messalianos um comportamento
libertino. - Tal escola foi condenada pelo Concílio de Éfeso em 431.
De
passagem note-se que o termo "Messalianos" no século XI designava hereges
do Império bizantino acusados de adorar Satanael, um anjo mau, e praticar
orgias sexuais.
No
século XIV encontra-se a colônia de monges do monte Athos (Grécia), que
recorriam a métodos contemplativos semelhantes aos do Budismo. Tais monges
foram chamados "Hesicatas" (de hesychia, tranquilidade
em grego); mediante a contemplação tranquila e o olhar fixo em determinado
objeto (o umbigo) tendiam a perceber a luz divina existente nas vísceras do ser
humano; este fruto da oração era motivo de grande alegria e de
invulnerabilidade frente aos assaltos do demônio. O principal representante
dessa corrente é Gregório Pálamas, monge do monte Athos feito arcebispo de
Tessalônica (1296-1359); provocou certa polêmica por sua doutrina da divinização
da alma.
Nos
séculos XIII e XIV Begardos, Beguinas e Irmãos do Espírito Livre cederam a
concepções quietistas. Foram condenados pelo Concílio de Viena (1312). O mal
dessas tendências quietistas que vamos percorrendo, é que persuadiam o devoto
de ser impecável, de modo que poderia entregar-se a práticas imorais sem
cometer falta culposa; os devotos subtraíam-se assim a toda obediência e a toda
prática ascética.
No
século XIV viveu também o dominicano Mestre Eckhart (1268-1329), que incidiu no
panteísmo, a ponto que o Papa João XXII condenou 28 de suas proposições.
Nos
séculos XVI e XVII aparecem os Alumbrados (iluminados)
espanhóis, continuadores da espiritualidade dos begardos e das beguinas.
Rejeitavam a oração vocal individual e coletiva e davam importância unicamente
à oração mental, mais valorizada do que a Missa de preceito e a
obediência aos Superiores. Tal oração mental consistia em colocar-se na
presença de Deus, estado este em que cessa a fé; tornam-se desnecessários os atos
de virtude; as faculdades da alma (intelecto e vontade) silenciam de modo que a
alma fica unicamente sob o influxo da graça e do Espírito Santo, que a levam à
perfeita união com Deus. Os Alumbrados foram fortemente contestados pela
teologia católica, de tal modo que a 9 de maio de 1623 o arcebispo André
Pacheco, de Sevilha, condenou 76 das suas proposições. Os Alumbrados se
espalharam em pequenas colônias pelo Ocidente europeu. Não faltaram aqueles que
pretenderam justificar ilícitas relações sexuais sob o pretexto de que eram
comunicações do Espírito Santo e manifestações da união com Deus.
2. No século
XVII: Miguel de Molinos
No
século XVII o Quietismo é elaborado num sistema preciso como consequência do
debate sobre predestinação e livre arbítrio do século XVI e como reação ao medo
de Deus incutido pelo protestantismo e o jansenismo; pretendia continuar a
mística dos autores espanhóis como Santa Teresa de Ávila (+1582), São João da
Cruz (+1591), germânicos (Ruysbroeck +1381) e italianos (Santa Maria Margarida
dei Pazzi). O seu expoente principal foi Miguel de Molinos (1628-1696).
Miguel
de Molinos nasceu na Espanha; foi ordenado sacerdote em 1652 e enviado a Roma
em 1663 como Procurador da causa de canonização do Venerável Francisco Simon.
Em Roma dedicou-se ao aconselhamento espiritual e conseguiu grande estima por
seus escritos de espiritualidade e mística. Estes, porém, lhe valeram denúncias
junto ao Santo Ofício, que o mandou encarcerar, para grande surpresa dos seus
seguidores. Foi processado; suas ideias foram condenadas em 1682; Molinos se
retratou em 1687, após ter sido considerado herege mediante a Bula Caelestis
Pastor do Papa Inocêncio XI.
Em
poucos parágrafos eis a sua doutrina:
Miguel
de Molinos retoma o princípio de que a vontade humana se deve esvaziar diante
da Transcendência divina; propunha o amor puro a Deus e o abandono à vontade
divina a ponto de chegar ao desinteresse absoluto de qualquer valor e até mesmo
da própria salvação. A verdadeira oração seria inspirada pela fé e dirigida
para a contemplação numa passividade total, estado este em que se calam todas
as potencialidades da alma humana. Afirma Molinos que qualquer presunção de
fazer algo em prol da sua salvação seria uma ofensa a Deus, pois a genuína
atitude do homem perante Deus há de ser a de um corpo morto; a atividade do
homem seria inimiga da graça divina e impediria o acesso à autêntica perfeição
espiritual; aniquilando-se dessa maneira, a alma volta ao seu princípio que é
Deus; é divinizada de tal modo que a alma e Deus já não
são dois seres, mas um só. Ao contemplar a Deus, a alma deve abster-se de
qualquer reflexão, pois essa seria uma ofensa a Deus. Quem entregou a Deus seu
livre arbítrio, não se deve preocupar com seus defeitos e as tentações ao
pecado. Se, independentemente de qualquer anseio da criatura, a alma humana
sente desejos carnais, sejam estes permitidos até chegar a atos sexuais; estes
atos não devem ser atribuídos ao sujeito humano, mas ao demônio, pois quem está
no estado de perfeição não pode pecar. Eis algumas das 68 proposições de
Molinos condenadas pela bula Caelestis Pastor aos
20/11/1682:
1.
É necessário aniquilar as faculdades da alma.
6.
Chama-se via interna aquele estado em que a alma não conhece nem luz nem amor
nem resignação. Nem a Deus devemos procurar conhecer mediante nossas faculdades.
7.
Não deve a alma pensar nem em prêmio nem em punição nem no paraíso nem no
inferno nem na morte nem na eternidade.
11.
Quando alguém concebe dúvidas sobre a retidão do seu comportamento, não queira
refletir sobre tal questão.
15. Não se deve
pedir a Deus coisa alguma nem se lhe devem agradecimentos, pois uma e outra
atitude é ato da vontade própria.
28. O tédio a
respeito dos valores espirituais é uma atitude boa, pois assim se purifica o
amor próprio.
38.
A cruz das mortificações voluntárias é
tarefa pesada e estéril; por isto não deve ser praticada.
39.
As obras virtuosas e os atos de penitência
praticados pelos Santos não têm eficácia para provocar o desapego das
criaturas.
57. Pela
contemplação chega a alma ao estado de não mais pecar nem mortal nem venialmente.
59. A via interna
(a vida espiritual) dispensa a confissão, os confessores, as dúvidas de
consciência, os teólogos e os filósofos".
O
Quietismo se propagou pela França com o Bispo Fénelon, Madame de Guyon e outros
adeptos, que abrandaram várias de suas proposições extremadas.
3.
Refletindo...
Proporemos
seis considerações.
1) Não existe
oposição entre a glória de Deus e a salvação da criatura; desejar aquela
implica outrossim desejara esta. Escreve Santo Ireneu (+202 aproximadamente):
"A glória de Deus é que o homem viva, e a vida do homem é a visão de
Deus". Quanto mais belo é o artefato, tanto mais exaltado será o Artesão.
2) É
indispensável a ascese ou mortificação das paixões. Já São Paulo dizia que mortificava
o seu corpo e o reduzia à servidão, considerando o empenho com que os atletas
se esforçam por conquistar no estádio uma coroa perecível; cf. 1Cor 9, 27. Está
claro que o empenho do cristão por chegar à perfeição espiritual não é
independente da graça de Deus, mas é suscitado e sustentado pela graça divina,
sem perda do livre arbítrio do homem. "Sem mim nada podeis fazer" (Jo
15, 5). A graça move a criatura sem lhe tirar a liberdade.
3) Mais
uma vez se verifica que o rigorismo extremado pode levar, sob pretextos envernizados,
ao extremo oposto ou à libertinagem. "A virtude está no meio. In médio virtus",
diziam os antigos; ela está entre dois extremos (no caso, entre o ascetismo
aniquilador e a libertinagem) sem deixar de ser muito intensa e profunda nesse
seu lugar intermediário.
4) Não
há dúvida, a prática do silêncio interior (domínio sobre a imaginação e a
memória) é indispensável, não, porém, a ponto de destruir os bons anseios da
criatura.
5) A
santidade é, sem dúvida, a meta indiscutível, à qual deve aspirar todo cristão.
Compreende três etapas: a vida purgativa, a iluminativa e a unitiva.
6) Todo
ser humano está sujeito ao pecado, e pode cair nele, ainda que sejam faltas
leves ou semideliberadas. Somente a Virgem Maria recebeu o privilégio de não
pecar, como declarou o Concílio de Trento:
"Se
alguém disser que o homem, uma vez justificado, não pode mais pecar nem perdera
graça, e que, por conseguinte, aquele que cai e peca, e cai nunca foi
verdadeiramente justificado: ou, ao contrário, que pode, em toda a sua vida,
evitar todos os pecados, até os veniais - salvo por especial privilégio de
Deus, como a respeito da Bem-aventurada Virgem Maria ensina a Igreja - seja anátema"
(Decreto Cum hoc tempore n°
23).
Donde
se vê que a impecabilidade apregoada pelos quietistas é um ideal utópico. Diz
muito sabiamente S. Ambrósio (+397): "Pecar é comum a todos os homens;
arrepender-se é próprio dos Santos". Ou ainda o famoso escritor inglês
Chesterton: "O Santo é um pecador que reconhece o seu pecado".
Estêvão Bettencourt O.S.B.